Como é possível, mediante uma “imposição” pontifícia autoritária (a palavra “impor” é de Marco Politi, um dos mais respeitados vaticanistas), exigir que se aceite a diluição da própria autoridade papal? Contradição notória: como é possível um Papa fazer isso sem recorrer ao seu poder soberano?
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Ala tradicionalista da Igreja condena abertamente
mudanças promovidas pelo Pontífice.
Fonte: O Globo
Fonte: O Globo
FERNANDO EICHENBERG
CORRESPONDENTE
29/9/2013
PARIS - Não é raro o Papa Francisco deixar sua sala de trabalho na
Residência de Santa Marta, na Cidade do Vaticano, tirar uma moeda do bolso e se
servir de um café expresso na máquina instalada no corredor. Em mais de seis
meses de pontificado, o sucessor de Bento XVI manteve seus austeros hábitos de
cardeal franciscano, renunciou aos aposentos papais no Palácio Apostólico e a
tradicionais símbolos do vestuário do cargo, como os sapatos vermelhos ou a
cruz de ouro (ele usa uma de prata).
No discurso, o novo Pontífice demonstrou uma maior abertura às
transformações das sociedades modernas, na rejeição de uma ingerência
espiritual na vida pessoal, e criticou a “obsessão” da Igreja por temas como o
casamento homossexual, o aborto ou os contraceptivos. A Igreja “dos pobres e
para os pobres” do Papa Francisco tem suscitado entusiasmo entre fiéis, mas
também desaprovação e severas críticas por parte de setores católicos
conservadores.
Para o italiano
Marco Politi, um dos mais respeitados vaticanistas, está em curso “uma
verdadeira revolução”, num processo gradual de “desmontagem de uma Igreja
imperial” em que o Papa era o monarca absoluto e a Cúria romana, o centro de
dominação. O analista aponta uma firme intenção de Francisco em impor o
“princípio de colegialidade” pela implementação de um mecanismo de consulta
com os bispos para decidir sobre as mudanças necessárias à Igreja.
— Por isso que já ocorre uma resistência das forças conservadoras, não
somente na Cúria, mas na Igreja. Mas até este momento, no escalão superior, os
cardeais e bispos conservadores não falam abertamente contra o Papa, deixam as críticas mais furiosas aos sites
na internet. Vemos em diferentes partes do mundo sites muito agressivos
contra o Papa, acusando-o de populista, demagógico, pauperista, de não querer
exercer o primado absoluto de Pontífice romano — nota Politi.
‘Enganador em turnês demagógicas’
O blog “Messainlatino.it”, que prega a renovação da Igreja “na esteira
da tradição”, denunciou uma “real e verdadeira crise de identidade” do
Pontífice por causa de uma de suas notórias declarações no voo de retorno à
Itália da viagem ao Rio de Janeiro, onde participou da Jornada Mundial da
Juventude (JMJ): “Se uma pessoa é gay, busca Deus e tem boa vontade, quem sou
eu para julgá-la?”, disse Francisco. O site tradicionalista diagnosticou como
“um sinal tangível de um extravio existencial que faz literalmente tremer os
nervos e o coração dos fiéis”, e indagou de forma irônica: “Perdoe o atrevimento, vós não sois, talvez, o ‘Papa’? Não tendes,
talvez, as chaves para abrir e fechar o Reino dos Céus?”.
Conservadores
americanos reunidos no “Tradition in Action”, site baseado em Los Angeles que
defende as “tradições católicas”, acusaram Francisco de ser um “enganador” que
organiza “turnês demagógicas” em “estilo miserabilista”. Para o “Tradition in
Action”, o Pontífice procura “dessacralizar os símbolos do papado a fim de
aboli-los”. O site criticou seu gesto de retirar o solidéu para colocá-lo sobre
a cabeça de uma menina: “Deste modo, quer parecer como um velho vovô que brinca
com a sua netinha e, ao mesmo tempo, demonstrar que os símbolos do papado são
inúteis”.
Bertone fora do caminho
Para o
“Corrispondenza Romana”, setores da Igreja estão sendo controlados por “uma
minoria de frades rebeldes de orientação progressista”. O site “Una Fides”
censurou missas celebradas no Brasil em que sacerdotes distribuíram a
eucaristia em copos de plástico: “O Senhor, um dia, pedirá contas pelos
inumeráveis sacrilégios cometidos por milhões de crentes, milhares de
sacerdotes, centenas de bispos, dezenas de cardeais e talvez até por alguns
Papas.” Já a publicação americana “National Catholic Register” definiu a
eleição de Jorge Mario Bergoglio como Papa como “mais um acréscimo à pilha das
recentes novidades e mediocridades católicas”.
Para Marco Politi, haverá mais oposição entre bispos e cardeais no mundo
do que dentro da Cúria, onde grande parte de seus integrantes estava decepcionada
com a ineficácia administrativa de Bento XVI e com o autoritarismo do cardeal
Tarcisio Bertone, secretário de Estado do Vaticano.
— Não podemos saber como tudo vai evoluir, mas é certo que à medida que
o Papa avançar em suas reformas, o movimento de resistência por parte dos
conservadores será cada vez mais forte — avalia.
Para o posto de Bertone, o segundo na hierarquia da Santa Sé, foi
nomeado o arcebispo Pietro Parolin, “um homem de grande experiência, que não
tem uma atitude ideológica, mas de atenção para a realidade contemporânea”, diz
Politi. O vaticanista lista, ainda, algumas mudanças importantes já feitas ou
sinalizadas pelo Papa: o saneamento do Banco do Vaticano, com tolerância zero
para as contas opacas; a criação do grupo de trabalho constituído de oito
cardeais para refletir e elaborar propostas de reformas na Cúria, a comunhão
para os divorciados recasados ou a ascensão de mulheres a postos de decisão na
hierarquia da Igreja.
— Uma de suas
decisões que provocaram bastante ruído em Roma foi a demissão do prefeito da
Congregação do Clero, o cardeal Mauro Piacenza (substituído por Beniamo
Stella), responsável pelas centenas de milhares de padres no mundo — acrescenta
Politi. — Era muito conservador, e contra qualquer mudança na lei do celibato.
Esta troca é um sinal claro de que o Papa não quer um conservador num
posto-chave como este.
‘A instituição irá se defender’
Para o sociólogo francês Olivier Bobineau, especialista em religiões no
Instituto de Ciências Políticas de Paris (Sciences-Po) e autor de “O império
dos Papas — uma sociologia do poder na Igreja”, haverá um limite para as
reformas de Francisco. Na sua opinião, o Pontífice já deu sinais de abertura,
simplificou o protocolo hierárquico e poderá alterar o “clima e o ambiente” na
Igreja, mas terá enormes dificuldades se desejar promover transformações mais
profundas.
— A primeira coisa que ele teria de fazer é mexer no edifício
hierárquico. Mas nem João XXIII conseguiu fazê-lo. A instituição irá se
defender. Há padres e bispos que amam este poder hierárquico, e vão tentar
conservá-lo por todos os meios. Não se pode sair de uma estrutura católica que
remonta ao século V. Há 1.500 anos é assim. Um só homem não pode mudar isto.
Bobineau acredita que o Papa centrará seu Pontificado nas mensagens de
amor e pelos pobres e em mudanças de estilo:
— Em sua recente entrevista à revista dos jesuítas, ele disse que as
reformas estruturais e organizacionais são secundárias. Ele sabe. Seria necessário explodir tudo. Ele está no topo de uma
estrutura hierárquica que em algum momento vai lhe impor limites. Quanto mais
ele empurrar no sentido de mudanças, mais sofrerá resistências dos
conservadores — prevê.
Entre 1º e 3 de outubro, o Conselho de oito cardeais se reunirá com o
Papa para preparar um documento de trabalho com propostas de reformas na Cúria.
No dia 4, Francisco visitará, pela primeira vez como Papa, Assis, a cidade do
santo que inspirou o nome de seu pontificado.
— A expectativa é de que fará um discurso bastante forte sobre a pobreza
na Igreja — arrisca Politi.
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