Fonte: Almas Devotas
Retirado do livro
Pe. de La Colombière
Excertos
Livro de 1934 - 54 págs
(Em breve este livro estará no Alexandria Católica)
Para conhecer a vida de São Cláudio de La Colombière CLIQUE AQUI
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Uma das verdades mais bem estabelecidas e das mais
consoladoras que jamais nos tenham sido reveladas é que, com ressalva do
pecado, nada nos sucede na terra senão porque Deus o quer; é Ele quem dá as
riquezas e é Ele quem envia a pobreza; se estais doente, Deus é a causa do
vosso mal; se haveis recuperado a saúde, foi Deus quem vo-la restituiu; se
viveis, é unicamente a Ele que deveis tão grande bem; e quando a morte vier
terminar a vossa vida, será da mão Dele que recebereis o golpe mortal.
Mas, quando os maus nos perseguem, é então a Deus
que o devemos imputar? Sim, cristãos ouvintes, é ainda a Ele que deveis então
acusar unicamente do mal que sofreis. Ele não é causa do pecado que comete o
vosso inimigo, maltratando-vos, mas é causa do mal que esse inimigo vos faz
pecando. Esse homem injusto é como uma torrente que, do alto dum rochedo, vem
despenhar-se num vasto campo. Não é o lavrador que dá a essa torrente rápida o
movimento que a arrasta, mas é o lavrador quem, ora rompendo um dique, ora
tapando um valado ou levantando uma represa, lhe faz entrar as águas num campo
antes que em outro, quer pretenda adubar, quer pretenda desolar por esse meio
aquele campo. Ou se preferis, aquele mau homem é nas mãos de Deus como um
veneno nas mãos dum artista hábil: não foi o artista que deu àquela erva ou
àquele mineral a virtude maligna que lhes é própria, mas foi ele quem as
misturou na beberagem que vos apresenta, quer tenha o intento de vos dar a
morte, quer talvez o de vos restituir a saúde. Assim, não foi Deus quem inspirou
ao vosso inimigo a má vontade que tem de vos prejudicar, mas foi Ele quem lhe
deu o poder, foi Ele quem fez voltar sobre vós a malícia daquela pessoa, quem
dispôs as coisas de tal sorte que ele se tenha achado em estado de perturbar o
vosso repouso, que o tenha efetivamente perturbado.
O Senhor quis que caísseis na cilada, já que não a
evitou, já que prestou mesmo mão aos que vo-la armavam; é Ele que vos entrega
sem defesa aos vossos inimigos, e foi Ele que dirigiu, por assim dizer, todos
os golpes que eles vos desfecharam. Não duvideis: se recebeis alguma chaga, foi
o próprio Deus quem vos feriu. Quando todas as criaturas se ligassem contra
vós, se o Criador não quisesse, se se lhes não juntasse; se lhes não desse
tanto as forcas como os meios de executar os seus maus desígnios, nunca o
conseguiriam: Não teríeis nenhum poder sobre
mim se ele vos não fosse dado do alto, dizia o Salvador do mundo a Pilatos.
Nós podemos dizer outro tanto aos homens como aos demônios, mesmo às criaturas
que são privadas de razão e de sentimento. Não, vós não me afligiríeis, não me
prejudicaríeis como fazeis, se Deus não vo-lo tivesse ordenado; é Ele quem vos
envia, é Ele quem vos dá o poder de me tentardes e de me fazerdes sofrer: Não
teríeis nenhum poder sobre mim, se ele não vos tivesse sido dado do alto.
Se de quando em quando meditássemos seriamente este
artigo da nossa crença, não seria preciso mais para abafar as nossas
murmurações em todas as perdas, em todas as infelicidades que nos acontecem.
Era o Senhor que me tinha dado todos aqueles bens, foi Ele mesmo quem mos
tirou; não foi nem aquela parte, nem aquele juiz, nem aquele ladrão quem me
arruinou, não foi aquela mulher que me denegriu a reputação com as suas
maledicências; se esse menino morreu, não foi nem por ter sido maltratado, nem
por ter sido mal servido; foi Deus, a quem tudo aquilo pertencia, quem não me
quis deixar fruir dele por mais tempo.
É, pois, uma verdade de fé que
Deus conduz todos os acontecimentos de que a gente se queixa no mundo; e,
demais, não podemos duvidar de que todos os males que Deus nos manda nos sejam
utilíssimos: não podemos duvidá-lo sem suspeitar a Deus de carecer de luz para
discernir o que é vantajoso.
É prova dum orgulho insuportável, diz são Basílio,
que nos próprios negócios a gente não necessita de tomar conselho de ninguém, e
que tem por si mesmo bastante prudência para escolher o melhor partido. Mas, se
nas coisas que nos dizem respeito qualquer outro vê melhor do que nós aquilo
que nos é útil, que loucura pensar que o vemos melhor do que Deus mesmo, Deus
que é isento das paixões que nos cegam, que penetra o futuro, que prevê os
acontecimentos e o efeito que cada causa deve produzir! Sabeis que os acidentes mais molestos têm às vezes
felizes consequências, e que, ao contrário, os sucessos mais favoráveis podem
finalmente terminar em funestos desfechos. É mesmo uma regra que Deus observa
assaz comumente, ir aos seus fins por vias inteiramente opostas às que a
prudência humana costuma escolher.
Na ignorância em que estamos do que deve acontecer
no futuro, como então ousamos murmurar daquilo que sofremos pela permissão de
Deus! E mesmo por simples vantagens deste mundo, quantos exemplos não temos
desse proceder! Vendem José, trazem-no em servidão, lançam-no numa prisão: ele
se aflige das suas desditas aparentes, aflige-se com efeito da sua felicidade,
pois são outros tantos degraus que o elevam insensivelmente ao trono do Egito.
Saul perdeu as mulas de seu pai, tem que as ir buscar muito longe e muito
inutilmente: é muito tempo e muito trabalho perdido, é certo; mas se essa mágoa
o aflige, jamais houve pesar tão desarrazoado, visto que tudo aquilo só foi
permitido para o conduzir ao profeta que o deve ungir da parte do Senhor, para
ser o rei de seu povo. Qual não há de ser a nossa
confusão, quando comparecermos perante Deus, quando virmos as razões que Ele
terá tido de nos mandar essas cruzes que nós tão mal lhe agradecemos! Eu lamentei a perda daquele
filho único morto na flor da idade: ai! Se Ele tivesse vivido ainda alguns
meses, alguns anos, teria perecido da mão dum inimigo, teria morrido em pecado
mortal. Eu não me pude consolar do rompimento daquele casamento: se Deus
tivesse permitido que ele se concluísse, eu iria passar os meus dias no luto e
na miséria. Devo trinta ou quarenta anos de minha vida àquela doença que sofri
com tanta impaciência. Devo a minha salvação eterna àquela confusão que me custou
tantas lágrimas. Minha alma estaria perdida, se eu não tivesse perdido aquele
dinheiro. Com que nos embaraçamos, cristãos ouvintes? Deus se encarrega da
nossa direção, e nós estamos na inquietude! Abandonamo-nos à boa fé dum médico
porque supomos que ele entende da sua profissão; ele ordena que vos façam as
operações mais violentas, às vezes até que vos abram o crânio com o ferro: ali,
que vos furem o corpo; aqui que vos cortem um membro para deter a gangrena que
poderia enfim chegar até ao coração; a gente sofre tudo isso, fica-lhe
agradecido, recompensa-o liberalmente, porque julga que ele não o faria se o
remédio não fosse necessário, porque julga que cumpre fiar-se na sua arte; e
não queremos fazer a mesma honra ao nosso Deus! Dir-se-ia que desconfiamos da
sua sabedoria e que tememos que ele nos transvie! Que? Entregais vosso corpo a
um homem que se pode enganar e cujos menores erros vos podem tirar a vida, e
não vos podeis submeter à conduta do Senhor!
Se nós víssemos tudo o que Ele
vê, quereríamos infalivelmente tudo o que Ele quer; haviam-nos de ver pedir-lhe
com lágrimas as mesmas aflições que tratamos de desviar pelos nossos votos e
pelas nossas preces. Por isto, é a nós todos que Ele diz nas pessoa dos filhos
de Zebedeu: Nescitis quid petitis; homens cegos, a vossa ignorância me
faz pena, não sabeis o que me pedis; deixai-me cuidar dos vossos interesses,
conduzir-vos à fortuna; Eu conheço o que vos é necessário, melhor do que vós
mesmos; se até aqui eu tivesse levado em conta os vossos sentimentos e os
vossos gostos, já estaríeis perdidos sem recurso.
Mas quereis, cristãos ouvintes, quereis ficar
persuadidos de que em tudo o que Deus permite, em tudo quanto vos sucede, não
tem Ele em mira senão as vossas verdadeiras vantagens, a vossa felicidade
eterna? Fazei um momento de reflexão sobre tudo o que Ele há feito por vós.
Estais agora na aflição: pensai que quem é o autor dela é Aquele mesmo que quis
passar toda a sua vida nas dores para vo-las poupar eternas; que é Aquele cujo
anjo está sempre ao vosso lado, velando por sua ordem sobre todos os vossos
caminhos, e se aplicando a desviar tudo o que vos possa ferir o corpo ou
manchar a alma; pensai que quem vos expõe a essa pena é Aquele que nos nossos
altares ora incessantemente e se sacrifica mil vezes ao dia para expiar os
vossos crimes e aplacar a cólera de seu Pai, à medida que O irritais; que é
Aquele que vem a vós com tanta bondade no sacramento da eucaristia; Aquele que
não tem prazer maior do que conversar convosco, do que se unir a vós. Que ingratidão,
após tamanhas provas de amor, desconfiar ainda Dele, duvidar de se é para nos
prejudicar ou para nos fazer bem que Ele nos visita! Mas Ele me fere
cruelmente, faz pesar a Sua mão sobre mim. E que temeis duma mão que foi
transfixada, que se deixou pregar na cruz por vós? Ele me faz andar por um
caminho espinhoso. Se não há outro para ir ao céu, ai de vós, se preferis
perecer para sempre a sofrer por um tempo! Não foi esse mesmo caminho que Ele
seguiu, antes de vós e por amor de vós? Achais acaso Nele um espinho que Ele
não tenha marcado, que não tenha enrubescido com o seu sangue?
Ele me apresenta um cálice cheio de amargura. Sim,
mas pensai que é o vosso Redentor que vo-lo apresenta; amando-vos tanto quanto
vos ama, poderia resolver-se a tratar-vos com rigor se não houvesse uma
utilidade extraordinária ou uma urgente necessidade? Ouvistes falar daquele
príncipe que preferiu expor-se a ser envenenado, a recusar a bebida que seu
médico lhe receitara, porque reconhecera sempre naquele médico muita fidelidade
e muito apego à sua pessoa; e nós, cristãos ouvintes, nós recusamos o cálice
que Nosso Divino Mestre nos preparou Ele próprio, atrevemo-nos a ultrajá-lo até
esse ponto! Rogo-vos não esquecerdes esta reflexão; ela basta, se me não
engano, para nos fazer aceitar, para nos fazer amar as disposições da vontade
divina que nos parecem mais incômodas, e nos conformarmos desse modo com essa
vontade suprema; é, aliás, assegurar infalivelmente a nossa felicidade, mesmo
desde esta vida.
Eu suponho, por exemplo, que um cristão está
liberto de todas as ilusões do mundo, pelas suas reflexões e pelas luzes que
recebeu de Deus; que reconhece que tudo não passa de vaidade; que nada lhe pode
encher o coração; que aquilo que há desejado com mais afã é muitas vezes fonte
dos mais mortais pesares; que a gente custa a distinguir o que nos é útil e o
que nos é contrário, por isto que o bem e o mal estão quase por toda a parte
misturados, e porque aquilo que ontem era o mais vantajoso é hoje o pior; que
os seus desejos só fazem atormentá-lo; que os cuidados que emprega para lograr
êxito o consomem e até lhe prejudicam às vezes os desígnios, ao invés de os
adiantar; que, ao cabo de tudo, é uma necessidade que a vontade de Deus se
cumpra; que nada se faz senão por suas ordens, e que Ele nada pode ordenar a
nosso respeito que não nos reverta em vantagem.
Após todas essas vistas, suponho ainda que ele se
lance nos braços de Deus como às cegas; que se lhe entregue, por assim dizer,
sem condição e sem reserva, inteiramente resolvido a confiar Nele para tudo, e
nada mais desejar, nada mais temer, numa palavra, nada mais querer senão aquilo
que Ele quiser; digo que, desde esse momento, essa feliz criatura adquire uma
liberdade perfeita, que não pode mais nem ser molestada nem constrangida; que
não há autoridade, não há poder na terra que seja capaz de lhe fazer violência
ou de lhe dar um momento de inquietação.
«Como me quereis obrigar a fazer o que eu não
quero? dizia um santo homem cujos sentimentos são referidos. Seria preciso
poder constranger o próprio Deus, para me pôr no caso de fazer algo contra
minha vontade; porque, enquanto Deus fizer tudo o que quiser, eu não posso
deixar de ser perfeitamente livre, visto que só quero o que Ele faz. Deus quer
que eu adoeça? Pois a moléstia me é mais agradável do que a saúde; que eu seja
pobre? Pois eu não queria ser rico; que eu seja o repúdio de todos? Consinto
que toda a gente me despreze, fundo toda a minha glória nos seus desprezos.
Importa que eu viva aqui ou alhures, que eu passe os meus dias no repouso ou na
trica dos negócios, que morra na flor ou no declínio da idade? De tudo isso eu
não poderia dizer o que gosto mais; mas, desde que Deus tiver feito a sua
escolha, e me tiver feito conhecer para que lado pende o seu coração, o meu seguirá
esse pendor, e achará nele a sua felicidade.»
Mas não é uma quimera um homem em quem os bens e os
males fazem uma igual impressão? Não, não é uma quimera; conheço pessoas que
estão igualmente contentes na moléstia e na saúde, nas riquezas e na indigência;
algumas conheço mesmo que preferem a indigência e a moléstia às riquezas e à
saúde.
De resto, não há nada tão verdadeiro como o que vos
vou dizer: tanta submissão temos à vontade de Deus, tanta condescendência tem
Ele para com as nossas vontades. Parece que, desde que a gente se
apega unicamente a lhe obedecer, Ele próprio só cuida de nos satisfazer: não só
ouve as nossas preces, mas até as previne; vai buscar até no fundo do coração
aqueles mesmos desejos que a gente trata de sufocar para lhe aprazer, e os
realiza, cumula-os, excede-os todos.
Enfim a ventura daquele cuja vontade é submissa à
vontade de Deus é uma ventura constante, inalterável, eterna. Temor algum lhe
perturba a felicidade, porque acidente algum a pode destruir. Eu mo represento
como um homem sentado num rochedo no meio do oceano: vê virem a ele as mais
furiosas vagas sem ficar atemorizado, acha prazer em considerá-las e contá-las,
à medida que elas se lhe veem quebrar aos pés; quer o mar esteja calmo ou
agitado, quer o vento empurre as ondas para um lado ou para outro, ele fica
igualmente imóvel, porque o lugar em que se encontra é firme e inabalável.
Vem daí essa paz, essa calma, esse semblante sempre
sereno, esse ânimo sempre igual que notamos nos verdadeiros servos de Deus. Que
razão não tendes, almas santas, de ser sem inquietações? Achastes na vontade do
vosso Deus um retiro inacessível a todas as desditas da vida; elevaste-vos
muito acima da região das tempestades: não há dardo que possa chegar até lá.
Não podeis temer nem os homens nem os demônios. Façam o que fizerem, suceda o
que suceder, sereis sempre felizes, ou então o próprio Deus deixará de sê-lo.
Resta ver como é que poderemos atingir essa
venturosa submissão. Isto só se pode fazer, senhores, pela experiência
frequente dessa virtude; e por isto que as grandes ocasiões de praticá-la são
raras, todo o segredo consiste em aproveitar as pequenas,
que são diárias, e cujo bom uso em breve nos porá em estado de sustentar os
maiores revezes sem sermos abalados. Não há ninguém a quem cada dia não
aconteçam cem pequenas coisas contrárias aos seus desejos e inclinações, seja
que no-las atraia a nossa imprudência ou nosso pouco espírito, seja que elas
nos venham da inconsideração ou da malignidade alheia, seja enfim que
constituam um puro efeito do acaso ou do concurso imprevisto de certas causas
necessárias. Toda a nossa vida é semeada dessas sortes de espinhos, que nos
nascem incessantemente debaixo dos pés, que produzem no nosso coração mil
frutos amargos, mil movimentos involuntários de ódio, de inveja, de temor, de
impaciência, mil pequenas mágoas passageiras, mil ligeiras inquietações, mil
perturbações, que, ao menos por um momento, alteram a paz da alma. Escapa-nos,
por exemplo, uma palavra que não quiséramos ter dito, dizem-nos outra que nos
ofende, um criado vos serve mal ou com vagarosidade, uma criança vos incomoda,
um estorvante vos faz parar, um estouvado vos encontrou, um cavalo vos cobre de
lama, faz um tempo que vos desagrada, a vossa obra não vai como desejaríeis, um
pequeno móvel se quebra, uma roupa se mancha ou se rasga; eu sei que não há aí
em que exercer uma virtude bem heroica, mas digo que seria o bastante para
adquiri-la infalivelmente se o quiséssemos; digo que todo o que estivesse
alerta para oferecer a Deus todas essas contrariedades, e para aceitá-las como
ordenadas pela sua providência, esse homem, além de adquirir por essa prática
grande número de méritos, além de se dispor insensivelmente a uma união muito
íntima com Deus, seria ainda, em pouco tempo, capaz de aguentar os mais tristes
e os mais funestos acidentes da vida.
A este exercício, que é tão fácil, e não obstante
mais útil para nós e mais agradável a Deus do que vos posso dizer, pode-se
ajuntar ainda outro. Embora as grandes desgraças não aconteçam todos os dias,
pode-se a gente oferecer a Deus todos os dias para aturá-las quando lhe
aprouver. Se Deus vos quisesse tirar ou aquele filho ou aquele marido, se
permitisse que perdêsseis aquele processo ou aquele dinheiro que colocastes,
precisaríeis duma grande forca de espírito para suportar esses golpes tão
rudes. Não sabeis ainda qual será a vontade Dele sobre esses pontos;
preveni-lhe as ordens, e desde agora submetei-vos a tudo quanto Ele resolveu
fazer; renunciai com frequência em sua
presença a todos os desejos que podeis ter de aumentar ou de conservar os
vossos bens, a vossa saúde, a vossa reputação, e protestai-lhe que estais
pronto a lhe sacrificar tudo. Pensai todos os dias, desde a manhã, em tudo
quanto vos pode suceder de mais molesto durante o curso do dia. Pode suceder
que no correr do dia tragam a notícia dum naufrágio, duma bancarrota, dum
incêndio; talvez que antes da noite recebais alguma afronta pesada, alguma
sangrenta confusão; talvez que a morte vos roube a pessoa do mundo que mais amais;
não sabeis se vós mesmo não morrereis subitamente e duma maneira trágica.
Aceitai todas essas desgraças no caso que praza a Deus permiti-las, coagi a
vossa vontade a consentir nesse sacrifício, e não vos deis trégua enquanto não
a sentirdes disposta a querer ou a não querer tudo o que Deus pode querer ou
não querer.
Enfim, quando uma dessas desditas se fizer
efetivamente sentir, em lugar de perderdes tempo em vos queixardes ou dos
homens ou da fortuna, ide lançar-vos prontamente aos pés do Divino Mestre, para
lhe pedir a graça de suportar com constância aquele infortúnio. Um homem que
recebeu uma chaga mortal, se é prudente, não corre atrás de quem o feriu. Vai
primeiro ao médico que o pode curar. Mas quando, em tais conjunturas,
buscásseis o autor dos vossos males, seria ainda a Deus que cumpriria ir, pois
só Ele lhes pode ser a causa.
Ide, pois, a Deus, mas ide prontamente, ide na
mesma hora, seja o primeiro de todos os vossos cuidados: ide levar-Ihe, por
assim dizer, a flecha que Ele vos atirou, o flagelo de que se serviu para vos
provar. Beijai mil vezes as mãos do Vosso Senhor crucificado, essas mãos que
vos feriram, que fizeram todo o mal que vos aflige. Repeti-lhe muitas vezes
estas palavras que Ele próprio dizia a seu Pai no forte da sua dor: Senhor,
faça-se a vossa vontade, e não a minha. Eu vos bendigo mil vezes, eu vos
dou graças de que as vossas ordens se cumpram sobre mim; e quando estivesse em
meu poder resistir-lhes, eu continuaria a me submeter a elas. Aceito esta
calamidade em si mesma como em todas as suas circunstâncias; não me queixo nem
do mal que sofro, nem das pessoas que me causam, nem do modo por que ele veio
até mim, nem da conjuntura do tempo ou do lugar em que ele me surpreendeu ;
estou certo de que o quisestes sob todos esses pontos de vista, e gostaria mais
de morrer do que de me opor no que fosse à Vossa Vontade: Fiat voluntas
tua... Sim, meu Deus, em tudo o que quiserdes de mim, hoje e por todos os
tempos, no céu e na terra, faça-se essa vontade, mas faça-se na terra como se cumpre
no céu.
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