DESTAQUE
Esse é o psicodrama controlado pelo Kremlin que hoje produz uma ruptura no mundo civilizado. Essa brecha é a possibilidade de anexar um país, ou um pedaço de país, menosprezando o direito internacional. Esse é o fato novo e cria um precedente detestável.
O fato de a Rússia ter sequestrado a Crimeia (...) abriu uma terrível
caixa de Pandora. Após essa data, 16 de março de 2014, as fronteiras cessam de
ser sagradas. O "golpe da Crimeia" poderá se reproduzir aqui ou
acolá, no mundo ocidental, na Rússia ou na China. Aliás, é por isso que, na ONU,
os chineses, em vez de aprovarem como fazem quase sempre a posição da Rússia,
preferiram se abster.
É provável que aproveite a
primeira ocasião para criar novos problemas na parte da Ucrânia de língua russa,
usando todas as armas à disposição nessa nova Guerra Fria inaugurada pelo golpe
de Sebastopol.
*** * ***
O trator Putin
Gilles Lapouge
O Estado de S.Paulo
PARIS - Não foi nenhuma surpresa: a
Crimeia votou maciçamente a favor de sua anexação à Rússia. A bem da verdade,
já há alguns dias a disputa entre a Rússia e o Ocidente deixara de nos brindar
fatos surpreendentes desde que, após o triunfo dos rebeldes pró-Europa e
democratas da Praça Maidan, em Kiev, o líder russo Vladimir Putin decidiu
resolver a situação e começou a fazer um jogo cujas regras os ocidentais
desconheciam, ou pelo menos se recusavam a conhecer.
Essas regras eram as da força, da
mentira, do cinismo, do ardil, da má-fé. O russo tinha alguns trunfos. De
início, o mistério, porque as decisões saíam bruscamente. E, em seguida, a
rapidez, porque Putin e seu bando reagiam imediatamente quando os ocidentais,
atolados em seus regulamentos, sua moral e seus escrúpulos, estavam sempre
atrasados.
Havia sempre algo de patético nesse
confronto. Putin avançava seus peões às ocultas, sem pedir conselho a ninguém,
sem avisar quem quer que fosse. Os "democratas" ocidentais faziam
conferências, convocavam entrevistas para anunciar aos russos o que pretendiam
fazer, caíam em contradição, produziam uma enorme cacofonia, preocupavam-se em
realizar reuniões em todas as partes da Europa e da América para harmonizar os
pontos de vista dos presidentes da Letônia, da Itália e de Chipre. Aliás,
devemos acrescentar também o de Barroso, que reina sobre a União Europeia, em
Bruxelas, e de alguns outros de "miolo mole".
Esse é o psicodrama controlado pelo
Kremlin que hoje produz uma ruptura no mundo civilizado. Essa brecha é a
possibilidade de anexar um país, ou um pedaço de país, menosprezando o direito
internacional. Esse é o fato novo e cria um precedente detestável.Evidentemente, os russos rejeitam tal argumento, lembrando aos
ocidentais que Kosovo, região que pertenceu à Iugoslávia e depois à Sérvia,
também decretou, como a Crimeia fez no domingo, sua independência em fevereiro
de 2008 (confirmada em 22 de julho de 2010). Esse processo foi aceito e
encorajado pela comunidade internacional e ratificado pela Corte Internacional
de Justiça, em Haia. "Não há a menor relação com o caso", diz o
jurista Pierre Hassner. "Em Kosovo, houve a repressão sérvia, crimes em
massa contra a humanidade, a instauração, em junho de 1999, de um protetorado
internacional sob a égide da ONU."
O fato de a Rússia ter sequestrado a
Crimeia (a bem da verdade, com o consenso entusiástico da população da Crimeia
que é de língua russa) abriu uma terrível caixa de Pandora. Após essa data, 16
de março de 2014, as fronteiras cessam de ser sagradas. O "golpe da
Crimeia" poderá se reproduzir aqui ou acolá, no mundo ocidental, na Rússia
ou na China. Aliás, é por isso que, na ONU, os chineses, em vez de aprovarem
como fazem quase sempre a posição da Rússia, preferiram se abster.
A prudência de Pequim é eloquente: e
se o Tibete, uigures e outras minorias chinesas seguirem o exemplo da Crimeia e
se desligarem do império chinês? Agora, o Ocidente pretende fulminar com
sanções. Atingir a Rússia em sua economia, adotar sanções contra alguns
responsáveis de segundo escalão (evidentemente, não Putin).
A ideia é que, com uma guerra
comercial, a Rússia tem mais a perder do que o Ocidente. Exato. Mesmo no que se
refere ao gás, a Rússia pode prejudicar o fornecimento da Europa (a Alemanha é
muito vulnerável), mas o que fará então com seu gás, ou seja, com seu principal
trunfo econômico? Não será fácil deflagrar essa guerra econômica e ela só
produzirá seus efeitos no longo prazo.
No que se refere a um ponto, Putin
não conquistou seus objetivos. A grande ideia que incendiou a Praça Maidan, em
Kiev, era impedir que a Ucrânia se aproximasse da UE. Nos planos de Putin, a
Ucrânia deveria constituir o elo mais forte de sua União Eurasiática, que ele
quer criar para compensar o desaparecimento do império soviético e por uma
parte dos russos.
O sucesso dos insurretos da Praça
Maidan e a fuga vergonhosa dos dirigentes ucranianos pró-russos destruíram esse
grande sonho. Putin contra-atacou brilhantemente fincando garras na Crimeia.
Ele, porém, não considera o jogo encerrado. É provável
que aproveite a primeira ocasião para criar novos problemas na parte da Ucrânia
de língua russa, usando todas as armas à disposição nessa nova Guerra Fria
inaugurada pelo golpe de Sebastopol.
E não lhe falta a capacidade de
perturbar, como mostra a questão do Irã ou da Síria. Poderíamos acrescentar o Polo Norte, assim que ele se livrar das suas
geleiras, mas também as zonas frágeis do Oriente Médio e da África. Tudo será
ocasião para Putin humilhar o Ocidente.
*Gilles Lapouge é correspondente em
Paris.
Nenhum comentário:
Postar um comentário