Fonte: Permanência
Régine Pernoud
Como em todas as épocas, a criança da Idade Média vai à escola. Em
geral, à escola da paróquia ou do mosteiro próximo. Com efeito, todas as
igrejas possuem uma escola. O Concílio do Latrão, em 1179, torna essa obra
obrigatória, e é comum ainda hoje, na Inglaterra, país mais conservador que o
nosso, encontrar reunidas igreja, escola e cemitério. Acontecia também do
ensino ser assegurado por fundações senhoriais. Rosny, vilarejo das margens do
Sena, tinha, desde o início do século XIII, uma escola fundada em 1200 pelo
senhor local, Guy V Mauvoisin. Às vezes trata-se também de escolas simplesmente
privadas: os habitantes de uma propriedade se associam para pagar um mestre
encarregado do ensino das crianças. Um pequeno texto engraçado nos conservou a
petição de alguns pais pedindo a dispensa de um professor que, não tendo
conquistado o respeito de seus alunos, chega a ser por eles espetado com os
estiletes, com os quais se escrevia em tabuinhas cobertas de cêra – eum pugiunt grafionibus.
Mas os privilegiados são, evidentemente, os que podem freqüentar as
escolas episcopais ou monásticas, ou ainda as capitulares, pois os capítulos
das catedrais estavam também submetidos à obrigação de ensinar, pelo mesmo
Concílio do Latrão[1]. Algumas delas adquirem,
na Idade Média, um brilho particular, como a de Chartres, de Lyon, ou de Le
Mans, onde os alunos ensinavam tragédias antigas; a de Lisieux, onde, no início
do século XII, o próprio bispo gostava de vir ensinar; a de Cambrai, da qual um
texto citado pelo erudito Pithou nos faz saber que foram estabelecidas para o
bem do povo na gerência de seus negócios temporais.
As escolas monásticas tiveram, talvez, mais fama ainda, e os nomes de
Bec, de Fleury-sur-Loire, onde foi educado o rei Roberto o Piedoso, de
Saint-Géraud d'Aurillac, onde Gerbert aprendeu os primeiros rudimentos das
ciências que iria elevar a tão alta perfeição, vêm naturalmente à lembrança,
como ainda a de Marmoutier, perto de Tours, de Saint-Bénigne, de Dijon, etc. Em
Paris encontra-se, desde o século XII, três séries de estabelecimentos
escolares: a Escola Notre-Dame, ou grupo de escolas do bispado, cujo cantor da scola assume a direção para as classes
menores e o chanceler do bispado para as classes avançadas; as escolas das
abadias como Sainte-Geneviève, Saint-Victor ou Saint-Germain des Prés; e as
instituições particulares abertas por mestres que obtiveram licença para
ensinar, como Abelardo.
A criança era admitida com sete ou oito anos, prolongando-se os estudos
preparatórios para a Universidade por cerca de dez anos, como hoje. São os
dados registrados pelo Pe. Gilles Muisit. Os meninos estudavam separados das
meninas que, em geral, tinham escolas à parte, em menor número, talvez, mas
onde os estudos eram, em muitos casos, de nível elevado. A abadia de
Argenteuil, onde foi educada Heloisa, ensinava às meninas as Sagradas
Escrituras, letras, medicina e até cirurgia, sem falar no grego e hebreu
ensinados aí por Abelardo. Em geral, as pequenas escolas davam a seus alunos
noções de gramática, aritmética, geometria, música, teologia, que lhes permitia
alcançar os estudos universitários. Parece também que algumas davam também
algum estudo técnico. A Histoire
Literaire cita, por exemplo, a escola de Vassor, na dioceses de Metz, onde,
além de aprender as Sagradas Escrituras e as letras, trabalhava-se o ouro, a
prata e o cobre[2]. Os mestres eram quase
sempre ajudados pelos mais velhos e pelos melhores alunos, como acontece ainda
hoje no «ensino mútuo»:
C'étoit ce belle chose de plenté d'écoliers:
Ils manoient ensemble par
loges, par soliers,
Enfants de riches hommes et
enfants de toiliers
|
Como era bonito todos aqueles escolares
Juntos em suas classes, nas salas
Filhos de ricos com filhos de pobres
|
Quem escreve isso é Gilles le Muisit, em suas lembranças de infância; de
fato, nesta época, as crianças de todas as «classes» da sociedade eram
instruídas juntas, como mostra a célebre história de Carlos Magno castigando os
filhos dos barões que eram preguiçosos, ao contrário dos filhos de servos e dos
pobres. A única distinção estabelecida era no custo do ensino, sendo ele
gratuito para os pobres e pago para os ricos. A isenção de taxa de estudo podia
prolongar-se por toda a duração da época escolar, incluindo o acesso ao
mestrado, como mostra o Concílio do Latrão, já citado, que proibia aos
dirigentes das escolas de «exigir dos candidatos ao professorado remuneração
para conceder a licença».
Aliás, na Idade Média, quase não há diferenças na educação das crianças
de diversas condições. O filho de qualquer pequeno vassalo são educados na sede
senhorial com os filhos do suserano; os dos ricos burgueses passam pelo mesmo
aprendizado que os do último artesão, se pretendem assumir um dia a loja
paterna. É por isso, sem dúvida, que se multiplicam os exemplos de grandes
personagens saídos de famílias humildes: Suger, que governou a França durante a
Cruzada de Luiz VII, é filho de servo; Maurice de Sully, bispo de Paris que fez
construir Notre-Dame, era nascido de um mendigo; São Pedro Damião, em sua
infância, cuidava de porcos, e uma das mais brilhantes luzes da ciência
medieval, Gerbert d'Aurillac, também era pastor; o Papa Urbano VI era filho de
um pequeno sapateiro de Troyes, e Gregório VII, o grande Papa da Idade Média,
filho de um pastor de cabras.
Por outro lado, muitos dos grandes senhores foram letrados e tiveram
educação como a dos clérigos: Roberto o Piedoso compunha hinos e seqüências
latinas; Guillaume IX, príncipe da Aquitania, foi o primeiro trovador
conhecido; Ricardo Coração de Leão nos deixou poemas, como também os senhores
de Ussel, de Baux, e muitos outros. Isso sem falar dos casos excepcionais, como
o do rei de Espanha, Alfonso X, o Astrônomo, que escreveu poesias, obras de
Direito, estabeleceu progresso notável nas ciências astronômicas da época,
redigindo suas Tábuas Alfonsianas, deixando também vasta crônica sobre as
origens da História da Espanha e uma compilação de Direito Canônico e de
Direito Romano que formaram o primeiro Código de Direito de seu país.
Os alunos mais capazes seguem, naturalmente, para a Universidade. Eles a
escolhem segundo sua especialidade. Em Montpellier, medicina: desde 1181,
Guilheme VII, senhor da cidade, conferiu a qualquer pessoa, de qualquer lugar
que viesse, a liberdade de ensinar esta arte, desde que apresentasse garantias
de seu saber. Orléans se especializou em Direito Canônico, como Bolonha em
Direito Romano. Mas já então, nada se comparava com Paris, onde o ensino das artes
liberais e da teologia atraía estudantes de todos os lugares: Alemanha, Itália,
Inglaterra, e até da Dinamarca e Noruega.
Estas Universidades são invenções eclesiásticas, como que a continuação
das escolas episcopais, com a diferença que elas dependerão diretamente do
Papa, e não do bispo local. A bula Parens
Scientiarum de Gregório IX, pode ser considerada como a ata de fundação da
Universidade medieval, com seus regulamentos estabelecidos em 1215 pelo cardeal
legado Robert de Courçon, agindo em nome de Inocêncio III, e que reconhecem aos
mestres e estudantes o direito de associação. Criada pelo papado, a
Universidade tem características inteiramente eclesiásticas: os professores
pertencem todos à Igreja, e as duas grandes Ordens religiosas que a iluminam no
século XIII, Franciscanos e Dominicanos, conhecerão aí grandes glórias, com um
São Boaventura e um São Tomás de Aquino.
Todos os alunos são chamados clérigos,
mesmo quando não se destinam ao sacerdócio, e alguns recebem a tonsura. Mas
isso não significa que só se ensinava a teologia, pois os programas incluem
todas as grandes disciplinas científicas e filosóficas, gramática, dialética,
além da música e geometria.
Esta «universidade» de mestres e alunos forma uma sociedade autônoma.
Philippe-Augusto, desde 1200, retira seus membros da jurisdição civil – o que
quer dizer, dos próprios tribunais reais. Mestres, alunos e mesmo domésticos da
Universidade ficam submetidos aos tribunais eclesiásticos, o que é considerado
como privilégio e consagra a autonomia desta corporação de elite. Mestres e
estudantes ficam assim isentos de obrigações para com o poder central; eles
próprios administram a Universidade, tomam em comum as decisões e gerenciam a
caixa, sem nenhuma intromissão do Estado. Esta é a característica fundamental
da Universidade medieval e certamente a que mais a distingue da atual.
Esta liberdade favorece, entre as diversas cidades, uma concorrência
difícil de se imaginar hoje. Durante anos, os mestres de Direito Canônico de
Orléans disputam com os de Paris para conquistar seus alunos. Os registros da
Faculdade de Decreto, publicados na Coleção de Documentos Inéditos, estão
cheios de queixas contra os estudantes parisienses que vão à Orléans para colar
grau, pois os exames eram mais fáceis. Ameaças, expulsões, processos, de nada
adiantam, e as brigas prolongam-se sem fim. Concorrência também de professores,
uns muito estimados, outros menos; teses discutidas apaixonadamente, com os
estudantes formando facções que chegam até a greves. A Universidade, muito mais
do que em nossos dias, era, na Idade Média, um mundo agitado.
E um mundo cosmopolita: as quatro «nações» que dividem os clérigos
parisienses mostram isso claramente: havia os picards, os ingleses, os alemães e os franceses. Os estudantes
vindos de cada um desses lugares eram então bastante numerosos para formar um
grupo autônomo, com representantes e atividades próprias. Encontram-se também
nos registros nomes italianos, dinamarqueses, húngaros e outros. Os professores
que ensinam vêm, também, de todas as partes do mundo: Siger de Brabant, Jean de
Salisbury têm nomes significativos. Santo Alberto Magno vem da Renânia, São
Tomás de Aquino e São Boaventura, da Itália. Não há neste tempo obstáculos à troca
de idéias, e julga-se um mestre apenas pela extensão de seu saber. Este mundo
tão variado possui uma língua comum, a única falada na Universidade: o latim.
Sem o latim ela seria uma Torre de Babel. O uso do latim facilita as relações,
permite as comunicações entre os mestres de um lado ao outro da Europa, dissipa
de antemão qualquer confusão de expressão, protegendo assim a unidade de
pensamento. Os problemas que apaixonam os filósofos são os mesmos, em Paris, em
Edimburgo, em Oxford, em Colônia ou em Pádua, apesar de cada um desses centros
e cada personalidade imprimir seu caráter próprio. Tomás de Aquino, vindo da
Itália, termina, em Paris, de clarificar e consolidar uma doutrina cujas bases
estabelecera nas aulas de Alberto Magno, em Colônia. A Sorbonne do século XIII
nada tem de fechada. Gilles le Muisit resume assim a vida dos estudantes:
Clercs viennent à études de
toutes nations
Et en hiver s'assemblent
par plusieurs légions.
On leur lit et ils oient
pour leur instruction;
En été s'en retraient moult
en leurs régions,
|
De todas as nações chegam os clérigos estudantes
Que se reúnem no inverno em várias legiões
Lêem e eles escutam para sua instrução
E no verão se retiram para suas regiões
|
De fato, o vai-vem é contínuo. Eles partem para a Universidade que
escolheram, voltam para casa nas férias, viajam para assistir as lições de um
mestre de renome ou estudar uma matéria numa cidade nela especializada. Já
mencionamos as «fugas» dos candidatos aos exames de Direito Canônico para
Orleans; isto se repete constantemente e, às vezes, entre cidades muito
distantes. Estudantes e professores são habituados às grandes viagens: a cavalo
e mesmo a pé, percorrem léguas e léguas, dormindo em granjas ou em hospedarias.
Com os peregrinos e os comerciantes, são os que mais contribuem para a
extraordinária animação que reina nas estradas na Idade Média, só reencontradas
no século do automóvel, ou melhor, depois da aparição dos esportes ao ar livre.
O mundo letrado era então um mundo itinerante. Era a tal ponto que, para
alguns, o movimento passa a ser uma necessidade, uma mania: encontramos hoje,
no Quartier Latin, estes velhos estudantes boêmios que nunca conseguiram voltar
à vida normal nem usar os estudos, dos quais carregam o peso durante anos. Na
Idade Média, esta espécie de indivíduo corria as estradas: era o clérigo
vagabundo ou goliard, tipo bem
medieval, inseparável do «clima» da época: entregue às tabernas e às mulheres,
vai de um cabaré ao outro, procurando comida e principalmente um bom copo de
vinho; frequenta os lugares ruins, conserva restos de saber, que usa para
causar a admiração dos simples, para quem recita versos de Horácio ou pedaços
das canções de gesta; inicia, levado pelos encontros ocasionais, discussões de
teologia, e acaba se perdendo na multidão de trovadores, de vadios e
vagabundos, quando não é enforcado por algum crime. Suas canções se espalharam
pela Europa, e o mundo estudantil conhece ainda algumas destas canções:
Meum est propositum in
taberna mori,
Vinum sit appositum
morientis ori,
Ut dicant cum venerint
angelorum chori:
Deus sit propitius huic
potatori!
|
O que quero é na taberna morrer
Com o vinho derramado na minha boca
Para que digam quando vier ao côro dos anjos
Deus seja propício a este beberão!
|
A Igreja precisou intervir várias vezes contra estes clerici vagi que promoviam farras e
preguiças no mundo estudantil. Mas eles eram exceções. No conjunto, o estudante
do século XIII não tinha uma vida muito diferente do atual. Foram conservadas e
publicadas cartas endereçadas aos pais ou a amigos [3] que revelam as mesmas
preocupações que hoje em dia, ou quase: os estudos, os pedidos de dinheiro e
alimentação, as provas. O estudante rico morava na cidade com seu valete; os de
condição mais modesta ia em pensão na casa dos burgueses do bairro de Sainte
Geneviève, e pediam isenção de toda ou de parte das taxas de inscrição da
Faculdade: encontramos muitas vezes, na margem dos registros uma menção
indicando que este ou aquele não pagou a inscrição, ou que pagou só a metade, propter inopiam, por causa da pobreza. O
estudante sem recursos faz pequenos trabalhos para viver: é copista ou
encadernador nas livrarias que têm suas lojas na rua das Escolas ou na rua
Saint Jacques[4]. Além disso, ele pode ter
suas refeições e moradia pagas nos colégios estabelecidos. O primeiro que
existiu foi criado no Hotel-Dieu
(hospital) de Paris por um burguês de Londres que, retornando de uma
peregrinação na Terra Santa, no fim do século XII, teve a idéia de fazer esta
obra pia, favorecendo o aprendizado das pessoas modestas: ele deixou uma
fundação[5] perpétua com encargo de
alojar e alimentar de graça dezoito estudantes pobres que recebiam como única
incumbência velar os mortos do hospital, cada um em seu turno, e carregar a
cruz processional e a água benta nos enterros. Um pouco depois, funda-se o
colégio Saint Honoré, o de São Tomás do Louvre, e muitos outros. Pouco a pouco,
formou-se o hábito de se organizar nestes colégios sessões de estudo em
conjunto, como nos seminários alemães
ou os «grupos de estudo» que funcionam nas nossas Faculdades de alguns anos
para cá. Os mestres passaram a vir dar algumas aulas, alguns até se
estabeleceram aí, e aos poucos os colégios foram mais freqüentados que as
próprias Universidades, como foi o caso do colégio da Sorbonne. No conjunto,
havia um sistema de bolsas, não oficialmente organizado, mas de uso corrente,
que lembrava a nossa Escola Normal Superior, sem a prova de admissão, ou ainda,
ao que se pratica nas Universidades inglesas, onde o estudante bolsista recebe
gratuitamente, não apenas a instrução, mas ainda casa, comida e, às vezes, as
roupas.
O ensino é feito em latim e se divide em dois cursos: o trivium ou artes liberais (gramática,
retórica e lógica) e o quadrivium ou
ciências (aritmética, geometria, música e astronomia), o que, com as três
faculdades de teologia, direito e medicina, forma o ciclo de conhecimentos. Como método é utilizado principalmente o comentário: é lido um texto, os Etymologies de Isidoro de Sevilha, as Sentenças de Pedro Lombardo, um tratado
de Aristóteles ou de Sêneca, segundo a matéria ensinada, e esse texto é
analisado com todos os comentários que podem ser feitos, do ponto de vista
gramatical, jurídico, filosófico, lingüístico, etc. Um ensinamento sobretudo
oral, dando larga parte à discussão, com as Questiones
disputate, questões na ordem do dia, tratadas e discutidas pelos candidatos
à licença, diante de um auditório de mestres e alunos, que muitas vezes deram
origem a tratados completos de teologia ou filosofia, ou ainda certas Glosas
célebres, postas por escrito, que eram também comentadas e explicadas durante
os cursos. As teses sustentadas pelos candidatos ao doutorado não eram simples
exposições escritas, mas verdadeiramente teses, emitidas e sustentadas diante
de todo um anfiteatro de doutores e mestres, onde qualquer assistente podia
tomar a palavra e apresentar suas objeções.
Como se vê, este ensino é apresentado de forma sintética, cada curso
tendo um lugar próprio em relação ao conjunto, onde ele adquire seu valor real,
correspondente a sua importância para o pensamento humano. Por exemplo, hoje em
dia existe equivalência entre uma licença de filosofia e a licença de espanhol
ou de inglês, apesar de haver muita diferença na formação desses dois tipos de
disciplina. Na Idade Média pode-se ser mestre em filosofia, teologia ou direito
– ou mestre ès-arts, o que implica o
estudo do conjunto ou do essencial do conhecimento relativo ao homem, o trivium representando as ciências do
espírito, e o quadrivium as do corpo
e dos números que o regem. Toda a série de estudos, portanto, procura
transmitir uma cultura geral, e só se especializa ao sair da Faculdade. Isso
explica o caráter enciclopédico de sábios e letrados da época: um Roger Bacon,
um Jean de Salisbury, um Alberto Magno, possuíam realmente todo o conhecimento
da época e podiam se entregar sem medo, em rodízio, aos assuntos os mais
diversos, sem medo de digressões, pois sua visão de base é uma visão de
conjunto.
Depois das sessões de trabalho na Faculdade ou no Colégio, o estudante
medieval é um esportista, capaz de percorrer etapas de várias léguas e também –
os anais da época se lamentam disso com freqüência – de manejar a espada. As
vezes estouram rixas nessa população agitada, nas proximidades de Sainte
Geneviève ou de Saint-Germain-des-Prés, e foi por saber usar muito bem sua arma
que François Villon[6] teve que deixar Paris. Os
exercícios físicos lhes são tão familiares quanto as bibliotecas e, mais ainda
que em outros corpos de ofícios[7], sua vida é repleta de
festas e diversões que alegram o Quartier
Latin. Sem falar da Festa dos Loucos e da Festa dos Bobos, que são ocasiões
excepcionais, toda recepção de doutorado era seguida de cerimônias cômicas em
paródias, onde mesmo os graves mestres de Sorbonne tomavam parte. Ambrósio de
Cambrai, que foi chanceler da Faculdade de Direito Canônico, representou seu
papel e nos deixou a narração nos Anais detalhados que escreveu. Um ser assim
formado estava pronto para a ação como para a reflexão, o que sem dúvida
explica como nessa época as personalidades se adaptavam às situações as mais
diversas, conseguindo bom resultado: prelados combatentes, como Guillaume des
Barres ou Guérin de Senlis, na Batalha de Bouvines, juristas capazes de
organizar a defesa de um castelo, como Jean d'Ibelin, senhor de Beyrouth,
mercadores exploradores, ascetas construtores, etc.
Aliás, a Universidade foi o grande orgulho da Idade Média; os Papas
elogiam este «rio de ciência que, por seus múltiplos afluentes, banham e
fecundam o terreno da Igreja universal»; assinala-se com satisfação que, em
Paris, é tal o número de estudantes que ultrapassa o de habitantes[8]. Todos são indulgentes
para com eles, apesar de suas «irreverências» e brincadeiras, que às vezes
incomodam os burgueses; eles gozam a simpatia geral. Algumas cenas de suas
vidas foram esculpidas no portal Saint Etienne, de Notre-Dame de Paris: ei-los
lendo e estudando, quando uma mulher vem lhes perturbar a leitura e, para a
punir, é amarrada no pelourinho por ordem da autoridade. Os reis dão o exemplo
dessa maneira de tratar os estudantes, como acontece com Philippe-Augusto que,
após a vitória de Bouvines, envia um de seus mensageiros anunciar a vitória, em
primeiro lugar, aos estudantes de Paris[9].
Tudo o que é relativo ao saber era, assim, reverenciado, na Idade Média.
«A deshonneur meurt à bon droit qui
n'aime livre – quem não ama os livros morre na desonra», dizia um provérbio[10]; e basta olhar os textos
para encontrar as provas de que todo amor pela ciência era encorajado e
alimentado. Citemos, entre outras, a criação, em 1215, de uma cadeira de
teologia, em Paris, especial para permitir aos padres da diocese de aperfeiçoar
e completar seus estudos, o que mostra a preocupação em manter um alto grau de
instrução, mesmo no clero mais humilde. O prud'homme,
este tipo de homem completo que foi o ideal do século XIII, devia
necessariamente ser letrado:
Pour rimer, pour versifier,
Pour une lettre bien dicter,
Si métier fut, pour bien
écrire
Et en parchemin et en cire,
Pour une chanson controuver[11]
|
Para rimar e versificar,
Para uma carta bem ditar,
E precisando escrever
No pergaminho ou na cêra,
Para compor uma canção
|
Diante disso, podemos nos perguntar se o povo era tão ignorante, na
Idade Média, como se acredita em geral; ele tinha ao seu alcance,
incontestavelmente, os meios para se instruir, e a pobreza não era um
obstáculo, visto que as aulas podiam ser inteiramente grátis, da escola do
vilarejo, ou melhor, da paróquia, até a Universidade. E ele aproveitava-se
disso, pois são numerosos os exemplos de pessoas humildes que viraram grandes
clérigos.
Quer isso dizer que a instrução era tão generalizada quanto hoje? Parece
claro que, neste ponto, houve um malentendido: assimilou-se, mais ou menos,
cultura a alfabetização. Para nós, um iletrado é fatalmente, um ignorante. Ora,
o número de iletrados era, sem dúvida, maior na Idade Média do que em nossa
época[12]. Mas, seria justo esse
ponto de vista? Pode-se fazer do conhecimento do alfabeto o critério da
cultura? Do fato da educação ser sobretudo visual, pode-se concluir que o homem
só se educa pela visão?
Num capítulo dos Estatutos Municipais da cidade de Marselha, datado do século
XIII, estão enumeradas as qualidades de um bom advogado, e lê-se: litteratus vel non litteratus – que seja
letrado ou não. Isso é importante: pode-se, então, ser um bom advogado e não
saber nem ler nem escrever – conhecer o costume, o direito romano, o manejo da
linguagem, e ignorar o alfabeto. Essa noção é difícil de ser imaginada para
nós, mas é capital para se compreender a Idade Média: a instrução é feita mais
pelo ouvido que pela leitura[13]. Por mais importância que
se dê aos livros ou aos escritos, estes têm lugar secundário; o papel principal
cabe à palavra, ao verbo. E isso acontece em todos os setores da vida:
atualmente, qualquer funcionário escreve relatórios; na Idade Média, eles se
aconselhavam e deliberavam. Uma tese não era uma obra impressa, mas uma
discussão; um negócio fechado não era uma assinatura firmada ao pé de um
escrito, mas a tradição manual (de um objeto simbólico, como um naco de terra
na compra de um terreno) ou o engajamento verbal. Governar é se informar,
pesquisar... e enviar os arautos «gritarem» as decisões tomadas.
Um elemento essencial da vida medieval foi a pregação. Pregar, nesta
época, não era discursar em monólogos com termos pré escolhidos, diante de um
auditório silencioso e cativado. Pregava-se em toda parte, não apenas nas
igrejas, mas também nos mercados, nas feiras, nos cruzamentos das estradas –
pregações vivas, cheias de fogo e de fuga. O pregador se dirigia ao auditório,
respondia suas perguntas, admitia suas contradições, seus rumores, suas
apóstrofes. Um sermão agia sobre a população, podia provocar, na hora, uma
Cruzada, propagar uma heresia, causar uma revolta. O papel didático dos
clérigos era imenso: eram eles que ensinavam aos fiéis sua história e suas
lendas, sua ciência e sua fé. Eles que anunciavam os grandes acontecimentos,
que transmitiram, de um canto ao outro da Europa a tomada de Jerusalém ou a
perda de Saint Jean d'Acre. Eles que aconselhavam a uns e guiavam os outros,
mesmo nos negócios profanos. Hoje, os que faltam de memória visual, mais
automática, necessitando menos do raciocínio que a memória auditiva, têm
dificuldades nos estudos e na vida. Na Idade Média não era assim, recebia-se a
instrução escutando, e a palavra era de ouro.
Coisa curiosa, nossa época assiste à volta da importância do verbo e o
reaparecimento desse elemento auditivo que se perdera. Podemos pensar que o
rádio terá, para as gerações que virão, o papel que teve outrora a pregação;
desejamos, ao menos, que ele seja equivalente, no que toca a educação do povo.
É na Idade Média que podemos ver realizado o termo «cultura latente».
Todos, na época, têm um conhecimento, pelo menos corrente, do latim falado, e
canta o gregoriano, o que supõe, senão a ciência, ao menos o uso da acentuação.
Todos possuem uma cultura mitológica e legendária; ora, as fábulas e os contos
falam mais sobre a história da humanidade e sua natureza que boa parte das
ciências inscritas nos programas oficiais das escolas. Nos romances de ofícios
publicados por Thomas Deloney, vemos os tecelãos citarem em suas canções
Ulisses e Penélope, Ariana e Teseu. Se chamaram os vitrais de «Bíblia dos
iletrados», foi porque os ignorantes reconheciam aí histórias que lhes eram
familiares, realizando com toda simplicidade este trabalho de interpretação que
tanto atrapalha nossos arqueólogos!
Além disso, havia os conhecimentos técnicos que eram assimilados durante
os anos de aprendizado. Nem arte, nem ofício, eram improvisados: era preciso,
para exercê-los bem, que eles se tornassem como que uma segunda natureza; era
assim, sem dúvida, que tantos artistas locais, para sempre perdidos no
anonimato, puderam adquirir esta destreza que aparece em obras como o Devoto
Cristo, de Perpignan, ou a Crucifixão, de Venasque. Pode-se chamar de ignorante
um homem que conhece tudo de sua arte, por mais humilde que seja? E devemos
considerar que, a estes conhecimentos do ofício vêm se juntar diversas
tradições: o Compost des Bergiers,
que uma feliz curiosidade permitiu ser redescoberto, há pouco tempo, nos
oferece um exemplo dessas pequenas Sumas do saber tradicional: astronomia,
medicina, botânica, meteorologia, que podia ser adquiridos dentro de cada
ofício, variando de um para outro, e que constituía a base de uma cultura
certamente mais vasta e mais adaptada às necessidades locais do que poderíamos
crer.
[Lumière du Moyen Age, cap. 8. Tradução PERMANÊNCIA]
[1] «Em cada diocese, escreve
Luchaire, além das escolas rurais ou paroquiais que já existiam... os capítulos
e os principais mosteiros tinham suas escolas, seus professores e alunos». (La
Société Française au temps de Philippe-Auguste, p.68)
[2] L.VII, cap.29, citado por
J.Guiraud, Histoire partiale, histoire
vraie, p.348
[3] Cf. Haskins, The life of medieval students as illustrated
by their letters, in Americain
historical review, III (1892), nº 2
[4] [N. da P.] Essas duas ruas
existem ainda hoje e ficam próximas da famosa igreja de Saint Nicolas du
Chardonet, conquistada pelos tradicionalistas em 1977, ainda hoje um comovente
reduto da verdadeira fé.
[5] [N. da P.] Chama-se uma
fundação um valor destinado a ser aplicado para que os juros sejam usados em
determinadas obras. A Igreja aceita fundação de missas: um valor ou bem é
doado, sendo estabelecido certo número de missas anuais nas intenções do doador.
[6] [N. da P.] François Villon
(1431-1489) - Poeta francês de vida agitada, mas considerado por muitos como principal
responsável pela formação da língua francesa.
[7] Assinalemos que a Idade
Média não conhece distância entre os ofícios manuais e as profissões liberais.
Os termos mostram bem isso: chama-se mestre tanto o tecelão que terminou seu
aprendizado quanto o estudante de teologia que obteve a licença de ensinar.
[8] A afirmação não pode ser
seguida ao pé da letra, mas não deixa de ser interessante saber que, na época,
a população de Paris somava quarenta mil habitantes.
[9] Com a experiência que já
temos da vida medieval e do espírito dos seus homens, podemos compreender que
nada havia de demagogia nesta atitude do rei.
[10] Renart, Prov. franç., II,
99
[11] Citado pela Histoire littéraire, t.XX
[12] Apesar de serem menos do
que se costuma dizer, pois a maioria das testemunhas que aparecem nos atos de
tabelião sabem assinar, sendo um exemplo, entre outros, o de Joana d'Arc,
pequena camponesa que, no entanto, sabia escrever.
[13] [N. da P.] É interessante
saber que, nos mosteiros beneditinos, ainda hoje têm muita importância as
reuniões da comunidade, ou de parte da comunidade, para o que se chama de
«conferência»: o abade, ou o mestre de noviços, fala aos monges, os quais,
imperceptivelmente, vão assimilando as verdades e os costumes do mestre.
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