Era o de que
precisávamos: um caso quente que envolve ética, antropologia, direito,
política… Em última instância: filosofia…
Em discussão estão
principalmente estas duas questões:
1) A diversidade e o relativismo cultural
Se a cultura
indígena aprova, ou mesmo determina, que bebês com deficiência física sejam
sacrificados (isto é, que sejam deixados sem assistência para que morram, ou
mesmo que sejam ativamente matados), nós que temos uma cultura diferente vamos
ficar apenas olhando?
Afinal de contas, a
diversidade cultural, como há muito se alega, não é um bem?
O relativismo
cultural não é apregoado aos quatro cantos, afirmando que nenhuma cultura é
superior a outra, e que todas têm o direito de ter seus próprios sistemas
éticos, que são igualmente bons, ou, pelo menos, incomensuráveis?
O multiculturalismo
não é ensinado em nossas escolas como um valor a ser preservado?
Não é isso que
prega, aos quatro ventos, a FUNAI?
2) A questão das “nações indígenas”
Os indígenas
brasileiros estão de fora da nação brasileira, constituindo uma outra nação, ou
um conjunto de outras nações, com seu próprio território, suas próprias leis,
seus próprios costumes, seus próprios valores?
O presidente da
FUNAI não é uma espécie de Secretário Geral do equivalente da ONU dessas nações
indígenas brasileiras — e é assim que elas se denominam e a FUNAI
freqüentemente a designa?
Não é isso que
prega a FUNAI e os seus antropólogos de plantão?
A questão não é só
cultural, antropológica, ética: é também política e de direito (quiçá
internacional…)
*** * ***
Por fim, a FUNAI
mistura tudo, trazendo para o mexilhão até mesmo a religião: ter um filho
defeituoso é, para os índios, um grave "pecado", diz a nota da FUNAI.
A nota da preclara
instituição não esclarece, no caso, de quem seria o "pecado": seria
dos pais? Da comunidade? Da tribo? Da própria criança que nasce defeituosa? E
esse "pecado" justificaria o sacrifício da criança?
A FUNAI parece
pensar (se é que pensa) que, no mínimo, são os índios que devem decidir isso,
não as leis e o sistema judiciário do país… – e que a cultura predominante do
país pensa sobre a questão é absolutamente irrelevante.
A FUNAI alega estar
tentando proteger os direitos dos pais da menina. E os direitos da menina com
hidrocefalia, quem protege?
As questões do
aborto e da eutanásia aqui reaparecem em um contexto multicultural… A cultura
aqui faz as vezes da religião (como a nota da FUNAI deixa claro), misturando
esse caso com a postura dos Testemunhas de Jeová que se recusam a, por exemplo,
fazer transfusão de sangue e a permitir que ela seja feita em seus filhos,
ainda que morram…
*** * ***
Institucionalmente,
essa é uma questão da Justiça Estadual ou da Justiça Federal? Ou seria da
Justiça Internacional, visto que os Ianomânis são, como se apregoa, uma nação
autônoma?
Ainda
institucionalmente, a Fundação Nacional de Saúde (FUNASA) e a Fundação Nacional
do Índio (FUNAI) estão em pé de guerra. Quando duas Fundações do Executivo Federal
discordam, quem resolve? O Presidente? E o Conselho Tutelar, onde fica,
institucionalmente, nessa briga entre as diversas Justiças e as diversas
Fundações? E o Ministério Público Federal?
E as Igrejas, que
vivem tentando salvar os índios de sua cultura, levando-os a aceitar o
Cristianismo, como ficam? E as ONGs, que vivem tentando salvar os índios do
Cristianismo e de toda cultura não-indígena, que apito vão apitar?
Numa questão
marginal, mas importante, será que nós, agindo na contra-mão da recomendação
contida no princípio da Navalha de Ockham, não estamos multiplicando entidades
além da necessidade — e além do bom senso?
*** * ***
De repente
descobrimos que o infanticídio é praticado no Brasil impunemente e que os
índios matam não só crianças que nascem defeituosas, mas também gêmeos e filhos
de mãe solteira… E isso com o conhecimento e sob a proteção da FUNAI!!!
Que país é esse?
Que belo cardápio
para um curso transdisciplinar que discuta o que hoje seria objeto de cursos de
filosofia, antropologia, direito, ciência política, para não mencionar a
teologia, a regina scientiarum?
O UOL ataca com
suas próprias armas de alta tecnologia: Enquetes e Grupos de Discussão…
Enquete: A bebê ianomâmi deficiente deve ser entregue aos pais? Vote! Grupo de
discussão: Em casos de vida ou morte, a Justiça deveria interferir em questões
culturais? Opine!
Vote!!! Opine!!! A
sociedade deve se envolver na discussão da questão, excitar-se toda, ler mais o
site do UOL…
Os ativistas devem
organizar seus exércitos, fazer demonstrações, elaborar piquetes, conseguir
seus 15 segundos de fama…
***
* ***
No meio disso tudo,
há as curiosidades e as figuras ridículas… Nesse primeiro assalto claramente se
destaca a figura do administrador regional da Funai em Manaus, Edgar Fernandes.
Colocando-se no lugar da Corte Suprema brasileira ela já sentencia: "Ela
(Justiça Estadual) não tem prerrogativa para julgar esse caso. Questões
envolvendo índios têm de ser resolvidas na Justiça Federal." Colocando-se
na posição de Antropólogo Mor da Nação ele determina: "Os povos indígenas
têm direito às suas próprias crenças. Os pais da menina não acreditam mais na
medicina ocidental e querem que ela tenha os seus últimos dias na aldeia".
Será que os pais da menina acreditaram um dia na medicina ocidental e agora não
acreditam mais???
Well, é isso. Boa
discussão no fim de semana…
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Caso de índia ianomâmi deficiente gera crise
institucional no Amazonas
Fonte: UOL
A internação de uma
índia da etnia ianomâmi em um hospital de Manaus está criando uma crise
institucional no Amazonas. Os pais da criança querem retirá-la do hospital e
levá-la para a aldeia. Nesta quinta-feira (16), porém, a Justiça Estadual
concedeu uma ordem para que a menina, vítima de hidrocefalia (condição na qual
há líquido cérebro-espinhal em excesso ao redor do cérebro e da medula
espinhal), permaneça no hospital até ter alta. De outro lado, a Fundação
Nacional do Índio (Funai) ameaça recorrer da decisão para garantir os direitos
dos pais da menina. E em meio a tudo isso está o Conselho Tutelar, que teme que
a criança seja sacrificada pelos pais quando retornar à aldeia, como parte de
um ritual da etnia.
A criança chegou ao
hospital levada pela Fundação Nacional de Saúde (Funasa) e da ONG Serviço e
Cooperação com o povo Yanomami (Secoya), que faz serviço de atendimento em
saúde para os índios desta etnia.
A crise em torno da
menina começou no início desta semana. Na última terça-feira (14), os pais da
pequena ianomâmi de um ano e meio de idade foram ao Hospital Infantil Drº
Fajardo, em Manaus, para tentar retirá-la do local. Ela está internada desde
março com hidrocefalia, pneumonia, tuberculose e desnutrição.
A direção do
hospital acionou o Conselho Tutelar que, diante das suspeitas de que a criança
seria sacrificada por ser portadora de deficiência física, acionou o Ministério
Público Estadual (MPE) pedindo a permanência da criança no hospital. Nesta
quinta-feira (16), a juíza Carla Reis, da 2º Vara da Infância e da Juventude,
concedeu pedido de providências ordenando que a menina fique onde está até que
seu quadro clínico seja considerado satisfatório.
A decisão causou
indignação do administrador regional da Funai em Manaus, Edgar Fernandes.
"Ela (Justiça Estadual) não tem prerrogativa para julgar esse caso.
Questões envolvendo índios têm de ser resolvidas na Justiça Federal. Vamos
recorrer ao MPF (Ministério Público Federal) para interceder a favor da
família", disse Edgar.
Para a diretora do
hospital, Glória Chíxaro, o estado clínico da menina é estável, mas a
interrupção de seu tratamento pode leva-la à morte. "O quadro dela, hoje,
é estável, mas se for retirada do hospital, seu tratamento será seriamente
comprometido e ela pode morrer na aldeia", disse completando que a menina
será submetida a uma cirurgia para drenar o líquido de sua cabeça.
Edgar Fernandes
discorda do entendimento da diretora e diz que o desejo dos pais da menina de
levá-la para sua aldeia é legítimo e amparado pela Constituição Federal.
"Os povos indígenas têm direito às suas próprias crenças. Os pais da
menina não acreditam mais na medicina ocidental e querem que ela tenha os seus
últimos dias na aldeia", explicou.
Para Fábio Menezes,
conselheiro tutelar que acompanha o caso, retirar a menina do hospital é
sentencia-la à morte. "Na cultura deles, quem tem deficiências deve ser
sacrificado. Eles já disseram à Funai que irão fazer isso. A própria Funai já
admitiu que isso pode acontecer", disse Menezes.
Sobre o possível
‘sacrifício’ da índia, a Funai divulgou uma nota explicando que esse tipo de
ritual faz parte da cultura da etnia ianomâmi. "Gerar um filho defeituoso,
que não terá serventia numa aldeia que precisa necessariamente de gente sadia
(…) é um grave ‘pecado’, pois este não poderá cumprir o seu destino
ancestral", diz a nota.
Ainda de acordo com
o documento, para evitar o transtorno de ter um integrante deficiente na
aldeia, quando a criança nasce, a mãe realiza um cuidadoso exame e se constatar
que a mesma é portadora de deformidade, a mesma é ‘descartada’.
Fábio Menezes diz
que, apesar da decisão da Justiça Estadual, vai tentar impedir que ela seja
levada de volta à aldeia. "Vou tentar uma reanálise do caso. Ela não pode
voltar pra lá", disse.
Para o antropólogo
Ademir Ramos, o caso mostra, de forma emblemática, o choque entre as culturas
indígenas e a ocidental. "O não índio não está discutindo hoje a
eutanásia? Essa é uma questão já resolvida para os ianomâmis. Eles precisam de
gente saudável na aldeia. Uma criança com deficiência gera uma série de
transtornos aos integrantes da tribo", disse o antropólogo.
A juíza Carla Reis
defendeu sua decisão ordenando a manutenção da menina no hospital. "Eu
estou analisando apenas o fato de ela se tratar de uma criança. Não entrei no
mérito de ela ser indígena ou não. Pra mim, ela é apenas uma criança",
disse.
A magistrada
admite, porém, que a Funai tem argumentos para recorrer de sua decisão.
"Se eles quiserem, podem argumentar que a Justiça Estadual não tem autoridade
para decidir em casos envolvendo índios. Vai depender deles", disse.
Uma reunião entre
Conselho Tutelar, Funai e o Ministério Público Federal (MPF) está sendo
realizada na noite desta quinta-feira. O MPF ainda não se manifestou sobre o
caso.
Polêmica sobre infanticídio indígena mistura leis,
valores culturais e saúde pública
Fonte: UOL
O infanticídio
entre indígenas é um tema que já gerou documentários, projetos de leis e muita
polêmica em torno de saúde pública, cultura, religião e legislação. Ainda
utilizado por volta de 20 etnias entre as mais de 200 do Brasil, esse princípio
tribal leva à morte não apenas gêmeos, mas também filhos de mães solteiras,
crianças com problema mental ou físico, ou doença não identificada pela tribo.
A quantidade de
índios mortos por infanticídio no país é uma incógnita. Nos dados da Funasa
(Fundação Nacional de Saúde) sobre mortalidade infantil indígena, esse número
aparece somado a óbitos causados por "lesões, envenenamento e outras
consequências de causas externas". Esse grupo responde por 0,4% do total
das mortes de menores de um ano de idade, segundo os últimos dados disponíveis
da Funasa, de 2006.
Tramitando no
Congresso, a Lei Muwaji (em homenagem à índia que enfrentou a tribo para salvar
sua filha com paralisia cerebral) estabelece que "qualquer pessoa"
que saiba de casos de uma criança em situação de risco e não informe às
autoridades responderá por crime de omissão de socorro. A pena vai de um a seis
meses de detenção ou multa.
Esse projeto se
inspirou no caso da indígena Muwaji Suruwahá que lutou pela sobrevivência de
sua filha Iganani, que tem paralisia cerebral – por isso, estava condenada à
morte por envenenamento em sua própria comunidade. O caso alcançou repercussão
nacional em outubro de 2005.
A proposta é
polêmica entre índios e não índios. Há quem argumente que o infanticídio é
parte da cultura indígena. Outros afirmam que o direito à vida, previsto no
artigo 5º da Constituição, está acima de qualquer questão.
O antropólogo
Mércio Pereira Gomes, que foi presidente da Funai (Fundação Nacional do Índio)
nos quatro primeiros anos do governo Lula, admitiu que sofreu "um dilema
muito grande" no órgão diante da questão do infanticídio. Como cidadão, é
contrário à prática, mas como antropólogo e presidente do órgão, discorda de uma
política intervencionista – segundo ele, há de cinco a dez mortes por
infanticídio no Brasil por ano.
Em 2004, o governo
brasileiro promulgou, por meio de decreto presidencial, a Convenção 169 da OIT
(Organização Internacional do Trabalho), que determina que os povos indígenas e
tribais "deverão ter o direito de conservar seus costumes e instituições
próprias, desde que não sejam incompatíveis com os direitos fundamentais
definidos pelo sistema jurídico nacional nem com os direitos humanos internacionalmente
reconhecidos".
Antes disso, em
1990, o Brasil já havia promulgado a Convenção sobre os Direitos da Criança da
ONU, que reconhece "que toda criança tem o direito inerente à vida" e
que os signatários devem adotar "todas as medidas eficazes e adequadas"
para abolir práticas prejudiciais à saúde da criança.
O infanticídio
voltou a criar polêmica com o lançamento do filme "Hakani", dirigido
David Cunningham, filho do fundador de uma organização missionária
norte-americana. A ONG Survival International, sediada em Londres, divulgou no
começo do ano uma nota em que acusa os autores do controverso filme de incitar
o ódio racial contra os índios brasileiros. A produção mostra cena
protagonizada por supostos sobreviventes e parentes encenando pais enterrando
viva uma criança deficiente.
Outra ONG que atua
na área é a Atini, sediada em Brasília, atua na defesa do direito das crianças
indígenas. Formada por líderes indígenas, antropólogos, lingüistas, advogados,
religiosos, políticos e educadores, a organização trabalha para erradicar o
infanticídio nas comunidades indígenas, promovendo a conscientização.
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