Ilustração: MONDINO DE LUZZI realizando uma dissecação pública. |
Não basta inventar que foram queimadas milhões de “bruxas” na Inquisição; não é suficiente dizer que os medievais acreditavam que a Terra era plana. Não… Os sabichões também gostam de espalhar por aí que a Igreja atrasou em séculos o desenvolvimento da medicina, proibindo a dissecação de cadáveres durante a Idade Média.
Em primeiro lugar, a restrição à dissecação de cadáveres humanos nasceu em entre os pagãos, não entre os cristãos. E o maior difusor dessa restrição foi o romano Galeno de Pérgamo, o mais célebre médico da Antiguidade, ao lado de Hipócrates. Viveu no século II e produziu mais de 200 obras dedicadas à Medicina.
Galeno era um grande cientista e fez importantes descobertas, mas cometeu alguns erros teóricos, justamente porque não fazia autópsia em corpos humanos, mas somente em animais (em especial, em macacos e porcos). Isso era motivado por sua crença religiosa pagã. Galeno influenciou fortemente as práticas médicas dos séculos seguintes, e seus conceitos foram bem absorvidos pela civilização cristã. Por isso, de fato, as autópsias em cadáveres humanos foram deixadas de lado por muito tempo.
Entretanto, com o passar dos anos, os médicos passaram a questionar as restrições de Galeno, e assim a prática da dissecação de corpos humanos foi retornando progressivamente.
Nos artigos e livros que citam o tema do desenvolvimento da Medicina, quase sempre o professor Mondino de Luzzi, da Universidade de Bolonha (uma instituição católica) é citado como aquele que reiniciou as dissecações em cadáveres humanos, após séculos de proibições. Isso teria ocorrido em 1315. Entretanto, essa informação contraria alguns dados históricos e arqueológicos, que apresentamos a seguir.
Há poucos meses, arqueólogos descobriram o mais antigo corpo humano dissecado, e este data de 1200, ou seja, mais de 100 anos antes dos estudos de Mondino. Segundo os cientistas, quem dissecou o cadáver era bem experiente, o que revela indícios de um projeto de educação médica contínua, e não de um fato pontual.
Dentro do coração de Sta. Clara de Montefalco
foi encontrado um pequeno crucifixo
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Outro dado: em 1286 um médico italiano realizou autópsias a fim de identificar a origem de uma epidemia, o que sugere que não havia proibição. Quem afirma isso é Philippe Charlier, médico e cientista forense do Hospital Universitário R. Poincaré, na França. Assim, é provável que Mondino, tenha feito a primeira dissecação pública de um cadáver humano, em 1315; porém, as dissecações sistemáticas para fins educacionais já aconteciam em Bolonha muito tempo antes.
Ok… E qual a origem, então, desse papo de que a Igreja vetava as autópsias? Segundo Hannam, isso é fruto da propaganda anticatólica iluminista. E aí virou modinha dizer que tudo de bom – ciência, artes, medicina – floresceu somente após o fim da “tenebrosa” Idade Média, dominada pela Igreja opressora.
Hannam afirma que a partir deste sentimento anticatólico surgiu um grande número de mitos, como a ideia de que todos acreditavam que o mundo era plano até Cristóvão Colombo navegar para a América. “Eles não pensavam nada do tipo”, disse.
Da mesma forma, os propagandistas do Renascimento espalharam o boato de que a igreja cristã medieval proibia autópsias e dissecação humana, segurando o progresso da medicina.
Fonte: Site Live Science. Artigo: “Grotesque Mummy Head Reveals Advanced Medieval Science”. Artigo traduzido: Site Hype Science
Como não poderia deixar de ser, tem dedo podre de iluminista nessa parada. A 16ª edição da “Histoire Litteraire de la France” diz que a Igreja retardou por séculos o avanço da Medicina por meio da publicação de uma bula do Papa Bonifácio VIII, “De sepulturis”. Lorota!
A “Histoire Litteraire de la France” era produzida e publicada pelos monges beneditinos. Porém, após a Revolução Francesa, coube ao “Institut de France” dar continuidade à publicação. Aí entrou na história o Pinóquio, digo, o historiador Pierre Claude François Daunou, que inseriu no texto da obra o trecho que deturpava completamente o sentido da bula papal.
Mas o que motivou a tal bula? Bem, os cruzados morriam aos montes nos campos de batalha, longe da pátria natal. Seus parentes, naturalmente, desejavam que os corpos fossem enviados para eles. Como a distância era grande, e seria terrível deixar o corpo se decompor no caminho, o pessoal teve a ideia de cortar em pedaços e ferver os corpos. Assim saía toda a carne e ficava só o esqueleto, que era enviado ao país de origem do defunto.
A Igreja considerou essa prática bárbara, desrespeitosa e abusiva. Então, condenou-a severamente, por meio da bula “De sepulturis”. A restrição não atingia as autópsias. Quem quiser estudar melhor o assunto, leia o artigo “The Popes and the History of Anatomy”, do graduadíssimo Dr. James J. Walsh (acesse aqui).
Alguns historiadores levantam a hipótese de que, ainda que a “De sepulturis” não condenasse as autópsias, as autoridades eclesiásticas a interpretaram dessa forma. Bem, a gente sabe que burro é um bicho que marca presença em todas as épocas e lugares. Porém, os dados históricos evidenciam que, caso tenha realmente havido alguma interpretação “jumentosa” da bula, isso foi raro.
Afinal, era uma prática comum embalsamar os corpos dos papas e autoridades civis (e, para embalsamar, era necessário abrir o corpo e retirar diversos órgãos). Outra evidência vai contra essa teoria da “má interpretação”: em 1302, apenas três anos após a promulgação da bula de Bonifácio VIII, uma junta médica de Bolonha decidiu realizar uma autópsia para verificar se o conde Azzolino degli Onesti tinha morrido por envenenamento. O caso mereceu registro, pois só se costumava dissecar corpos de bandidos e indigentes, e não de homens nobres (Fonte: “The Casebook of Forensic Detection”, Colin Evans, John Wiley & Sons, 1996).
Pra quem se interessar, o blog “Tu Es Petrus” publicou a tradução de uma artigo de Christopher Howse, um colunista de religião do jornal The Telegraph. Howse conta como abandonou a crença popular de que a Igreja medieval impediu a autópsia em corpos humanos, após ler um livro da professora Katharine Park, de Harvard (leia aqui).
“Cada vez que eu leio algo no New York Times sobre como Leonardo da Vinci teve que esconder o fato que que estava fazendo dissecação, e cada vez que eu escuto um guia turístico na Itália contar essas histórias, isso me mata. Eu não sei mais o que fazer para eliminar esse mito”.
- Katharine Park. Site Harvard Gazette. Tradução de um trecho do artigo “Debunking amyth“
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