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São Luiz foi, em primeiro lugar, um rei cristão ideal.
São Luiz quer tornar o rei o responsável pela Justiça.
Os súditos do Rei (salvo nos assuntos religiosos, aliás, estritamente
controlados) podem com isso apelar, a partir de então, para a justiça do rei.
Aí está o fundamento dos futuros tribunais de apelação. A partir de 1254, essa
seção da corte que administra a Justiça em seu nome vai ser denominada
Parlamento...
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(Bernard Lecomte, de L’Express, entrevista Jacques Le
Goff)
Por que
escolheu passar 10 anos de sua vida com São Luís?
Jacques Le Goff – Em primeiro lugar, tinha vontade de
escrever uma biografia. Depois, escolhi um personagem que desse a possibilidade
de, realmente, ir além de sua imagem mítica ou das suposições históricas. São
Luís é um personagem fascinante: falar sobre ele é evocar todos os povos
cristãos da época.
Luiz IX foi
ao mesmo tempo rei e santo. É possível conciliar a esse ponto política e
religião?
Le Goff – Houve outros reis santos antes dele: na Alta
Idade Média, na época da instalação dos reinos bárbaros, como o rei da
Burgúndia, Sigismundo. Depois, por volta do ano 1000, durante a conversão de
povos inteiros ao Cristianismo, como o húngaro Etienne (Santo Estevão) ou o
norueguês Olavo. Mas São Luiz é um rei santo de um novo tipo, pois é sua
conduta pessoal, em primeiro lugar, que o faz ser santo. Aliás, ele será o
último desse gênero.
O historiador
William Jordan descreveu-o atormentado entre seu dever real e sua devoção...
Le Goff – Eu enfatizaria mais a coerência entre sua
aspiração à santidade e sua conduta na política, o que não oculta de maneira
alguma dificuldades e contradições [SIC!].
Um exemplo: São Luiz, à mesa, tem um estatuto especial e um cerimonial a
respeitar, mas, muito ligado à tradição monástica, ele pratica a abstinência
muito jovem, não bebe vinho puro, convida pobres, etc. Isso é verdade também
para seu comportamento político.
Evoquemos,
inicialmente, o rei Luiz IX. Como situá-lo?
Le Goff – Na metade do caminho entre o reino de seu
avô Felipe Augusto e o de seu neto Felipe, o Belo, São Luiz representa a
passagem da monarquia feudal à monarquia moderna: esta não se baseia mais nas
relações do rei com seus vassalos, mas naquelas do rei enquanto chefe de Estado
(diga-se, então, do reinado ou da coroa) com seus “súditos”. Essa construção do
Estado moderno se faz de acordo com formas transitórias, progressivamente,
evitando qualquer traumatismo institucional...
Luis IX
moderniza o Estado?
Le Goff – Ele consolida a monarquia: duplica
principalmente os bailios e os senescais – os magistrados, na época -,
“investigadores” designados para apurar os abusos da administração real, para
fazer reinar a justiça e a paz. São Luiz quer tornar o rei o responsável pela
Justiça. Os súditos do Rei (salvo nos assuntos religiosos, aliás, estritamente
controlados) podem com isso apelar, a partir de então, para a justiça do rei.
Aí está o fundamento dos futuros tribunais de apelação. A partir de 1254, essa
seção da corte que administra a Justiça em seu nome vai ser denominada
Parlamento...
Como um rei
pode chegar à santidade, se começa lutando contra os cátaros, executando os
preceitos da Inquisição e reprimindo os judeus?
Le Goff – Atenção para não cair no anacronismo!
Façamos um esforço de compreensão da época, em retrospectiva. Sobre os cátaros:
foi principalmente seu pai, Luiz VIII, que lutou contra os albigenses. Luiz IX
continuou sua ação, mas não se interessou muito pelo sul da França, onde
reinará seu irmão, Afonso de Poitiers. Sua responsabilidade não é nula, mas é
preciso redimensioná-la. Sobre a Inquisição: em primeiro lugar, um rei tão
piedoso não podia amar os hereges, culpados por colocarem em risco tanto a
ortodoxia da fé quanto a coesão do reinado. Em segundo lugar, na tradição
cristã do século 13, o rei é o braço secular da Igreja em seu reinado: se esta
ordena ao soberano executar as sentenças de seus tribunais, ele deve obedecer.
E suas
medidas anti-semitas?
Le Goff – Em primeiro lugar, tomemos cuidado com as
palavras: não se trata de anti-semitismo (o que só aparecerá no século 19), mas
de um anti-judaísmo, de natureza essencialmente religiosa. Luiz IX,
profundamente cristão, não gosta dos judeus que se recusaram a reconhecer Jesus
Cristo. Ele condena o Talmude porque este, do seu ponto de vista, diz horrores
sobre Jesus e apresenta a Virgem como uma prostituta! Além disso, o rei não
gosta das pessoas que constituem um corpo estranho dentro do reinado que ele
tenta unificar. É verdade que São Luiz ficou desorientado [SIC!] com esse problema. Segundo disse: “Os cristãos têm um chefe,
trata-se do prelado. Os judeus não têm ninguém. Devo, então, ser o prelado dos
judeus: puni-los quando se comportam mal, mas também protegê-los quando são
injustamente atacados”... A verdade é que São Luiz foi mesmo um perseguidor dos
judeus [SIC!].
A ponto de
lhes impor, em 1269, o uso de costeleta?
Le Goff – Foi a Igreja que tomou essa decisão no Concílio
de Latrão, em 1215. São Luiz recusou aplicá-la durante muito tempo,
especialmente devido à preocupação com a integração dos judeus à comunidade
nacional. Mas cedeu, no fim de seu reinado, à pressão dos judeus convertidos de
seu círculo, de quem o papel foi extremamente nefasto.
Ele foi,
realmente, o incentivador das últimas Cruzadas!
Le Goff – Exato. É mesmo notável que São Luiz tenha
entrado nas Cruzadas numa época em que isso se fazia cada vez menos. As
Cruzadas estão ligadas ao feudalismo e o fracasso delas já anunciava o fim desse
regime. Quando entra na Cruzada, São Luiz tenta mudar o espírito da Cruzada,
misturando objetivos militares e interesse de conversão religiosa. São
Francisco de Assis não o precedeu, em vão, na Terra Santa! Um exemplo: tendo
partido com todos os preconceitos[SIC!]anti-muçulmanos
da época, o rei da França ao perceber que aquelas pessoas são religiosas, fica
impressionado com a piedade delas[SIC!],
fica atônito com a biblioteca que o emir carrega consigo em sua tenda, mesmo na
guerra. Enfim, o indivíduo São Luiz também ia procurar na Terra Santa, mais ou
menos, o martírio.
Foi por isso
que a Igreja canonizou Luis IX, em 1297, 27 anos após sua morte?
Le Goff – Há uma razão política [SIC!]: o novo Papa Bonifácio VIII deseja ter boas relações com o
rei da França. Mas há uma razão mais profunda e inovadora: São Luiz foi, em
primeiro lugar, um rei cristão ideal. Ora, em seu caso, os milagres ligados à
sua pessoa contaram menos que as virtudes do indivíduo.
Justamente o
indivíduo, o senhor diz, é uma invenção de sua época...
Le Goff – Na Idade Média, o que importa são os grupos,
as comunidades: ordens religiosas, confrarias, linhagens, dinastias,
comunidades de aldeia, etc. A partir do fim do século 12, o individuo aparece,
principalmente, nas ordens religiosas. São Bernardo foi o primeiro a surgir em
sua ordem, assim como São Francisco de Assis distingue-se no século 13. São Luiz
teve importância como homem. Seu caráter, sua humildade deram motivos para
isso.
Obra notável (biografia de São Luis)
Jacques Le Goff foi um de nossos historiadores mais
reputados. E São Luiz, um de nossos maiores reis. O encontro entre ambos só
poderia resultar em um livro memorável. De fato, essas mil páginas, eruditas,
precisas e lúcidas, são de uma perfeição que encantará tanto estudiosos como o grande
público. São Luiz é neto de Felipe Augusto, o vencedor de Bouvines (1214).
Nasceu poucos meses antes dessa batalha histórica. A morte de seu irmão mais
velho, Felipe – logo após a de seu pai, Luis VIII – vai torná-lo rei da França
aos 12 anos. Ele reinou em duo com a mãe, Branca de Castela, notável pela
inteligência política, e depois, sozinho, após voltar da Terra Santa, em 1254,
até que a morte o surpreendesse em Túnis, durante a sua segunda Cruzada, em
1270. Rei profundamente piedoso, Luis IX promoverá a sétima Cruzada, que será
um fracasso, e a oitava, da qual não volta. Fascinado pelas ordens mendicantes,
pelas relíquias, São Luiz fará todos os esforços para ser um modelo político e
espiritual para os cristãos de sua época.
O rei da França fortalecerá, assim, durante 44 anos de
reinado, um Estado monárquico independente, unificado e centralizado, do qual
Le Goff tem o prazer de ressaltar as inovações: administração territorial,
justiça ao alcance de todos, instituição de um Parlamento em seu estado
embrionário. Moderno, Luiz IX? De fato, quando reprime a primeira manifestação
da história da universidade, em 1229, ou quando tenta moralizar sua alta função
pública, em 1254, o santo rei suscita no leitor algumas repercussões muito
atuais...
Traduções de Wanda Caldeira Brant
(Cf. O Estado de São Paulo, 2 de maio de 1999 – p. 18
– Caderno 2 – Cultura).
Jacques Le Goff (Toulon, 1 de janeiro de 1924 — Paris,
1 de abril de 2014)1 foi um historiador francês especialista em Idade Média.
Autor de dezenas de livros e trabalhos, era membro da Escola dos Annales,
empregou-se em antropologia histórica do ocidente medieval.
Antigo estudante da École Normale Supérieure, estudou
na Universidade Carolina em 1947-48, professor de história em 1950 e membro da
École Française de Rome, foi nomeado assistente da Faculté de Lille (1954-59)
antes de ser nomeado pesquisador no CNRS (Centro Nacional de Pesquisa
Científica), em 1960. Em seguida, mestre-assistente da VI seção da École
pratique dês hautes études (1962) - sucedeu Fernand Braudel no comando da École
dês hautes études em sciences sociales, onde ele foi diretor dos estudos. Cedeu
seu lugar a François Furet em 1967. Na qualidade de diretor de estudo na École dês
Hautes Études em Sciences Sociales, Jacques Le Goff publicou estudos que
renovaram a pesquisa histórica, sobre mentalidade e sobre antropologia da Idade
Média. Seus seminários exploraram os caminhos então novos da antropologia
histórica. Ele publicou os artigos sobre as universidades medievais, o trabalho,
o tempo, as maneiras, as imagens, as lendas.
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