Arnaldo Xavier da Silveira
Ingênuo seria o fiel
católico para quem a questão de fundo estaria resolvida com a simples
retirada da entrevista ao La Repubblica do site da
Santa Sé. Essa retirada pouco ou nada significa, diante da permanência no site
da entrevista à Civiltà Cattolica, que contém numerosas passagens
igualmente inaceitáveis.
1] Os debates sobre as entrevistas concedidas recentemente pelo Papa
Francisco ao Diretor da Civiltà Cattolica e ao fundador do jornal romano La Repubblica tomaram, em meados de
novembro, um caminho surpreendente. No dizer do professor e jornalista italiano
Antonio Socci, “em torno daquela entrevista [ao La Repubblica] nasceu o primeiro, verdadeiro problema
do pontificado de Francisco. Ou melhor, um drama” (1). Com o coração
dilacerado, o católico fiel verifica que uma observação serena dos fatos mostra
que falar em “drama”, no caso, não é sensacionalismo de jornalista.
Crise dramática
2] As duas mencionadas entrevistas papais, divulgadas amplamente pela imprensa
internacional em setembro e outubro últimos, provocaram reações vigorosas de
numerosos setores católicos antimodernistas de todo o orbe, porque ali o Papa
adotava posicionamentos aberrantes da doutrina tradicional. As manifestações
nesse sentido vinham num crescendo inaudito, e em termos inesperados, por
partirem sobretudo dos analistas e autores mais apegados ao Papado e à
Tradição. Destes vieram respeitosas mas públicas e veementes observações quanto
à ortodoxia daqueles posicionamentos.
3] Na política civil é frequente e até corriqueiro que uma autoridade
pressionada por setores de peso da sociedade se veja forçada a explicar-se.
Assim também, estava se tornando estranho o silêncio do Papa. O sabor amargo de
suas duas entrevistas pedia um esclarecimento, dele pessoalmente ou talvez da
Cúria, que fosse visto como uma resposta tranquilizadora para seus filhos mais
fieis.
4] Eis que na sexta-feira, 15 de novembro, o porta-voz do Vaticano, Pe.
Federico Lombardi, anuncia à imprensa que, por ordem da Secretaria de Estado de
Sua Santidade, a entrevista ao La Repubblica estava sendo retirada do site da Santa Sé. Os fatos foram noticiados no
próprio dia 15, conforme se lê no site Vatican Insider,sob o título “Il testo non era stato rivisto parola per parola”, nos termos
seguintes:
“A Santa Sé
decidiu retirar do site vaticano o texto do colóquio entre o Papa Francisco e o
fundador do La Repubblica, Eugênio Scalfari. Francisco havia recebido Scalfari,
que veio agradecer-lhe a carta aberta recebida e publicada em seu cotidiano.
“Às perguntas dos
jornalistas sobre a razão dessa decisão, o porta-voz da Santa Sé, Padre
Federico Lombardi, respondeu: ‘a entrevista é confiável no sentindo geral,
mas não em suas valorações individuais. Por isso se decidiu não deixar o
texto consultável no site da Santa Sé. Em substância, retirando-a, fez-se uma mise-au-point da natureza daquele texto. Havia algum
equívoco e debate sobre o valor dele. A decisão foi da Secretaria de Estado’.
“O Padre Lombardi,
nos dias que sucederam à publicação da entrevista, havia declarado que o Papa
não havia revisto pessoalmente o texto, mas que Scalfari o havia simplesmente
enviado ao Vaticano. Com efeito, o arquivo continha expressões dificilmente
atribuíveis ao Papa Francisco. Quando não, um erro concernente ao acontecido na
Sistina. Em uma das respostas, se dissera que o Pontífice, após ter sido
atingido o quórum necessário para a eleição, antes de aceitar se teria retirado
para rezar. Circunstância não verdadeira e desmentida por diversos cardeais,
entre os quais o Arcebispo de Nova York ,Timothy Dolan.
“Muitas polêmicas
e discussões havia provocado ainda uma afirmação ─ aliás em tudo compatível com
o Catecismo da Igreja Católica ─ concernente ao primado da consciência.
Lombardi também desmentiu que a decisão de retirar a entrevista do site teria
sido tomada a pedido do Prefeito do ex-Santo Oficio, Gerhard Ludwig Müller” (2).
5] Dispensamo-nos de uma análise circunstanciada dessas declarações, em
vista das incongruências que apresentam, e da debilidade insanável de sua fundamentação.
Fazemos uma única e rápida observação. O Padre Lombardi indica como uma das
razões da retirada da entrevista do site, os ditos papais sobre o primado da
consciência, que provocaram polêmicas e discussões; e, para justificar o texto
pontifício, acrescenta ser este em tudo compatível com o Catecismo da Igreja
Católica. Ora, essa consideração, de si, não elimina a reserva, uma vez que, na
passagem em questão, esse Catecismo é conflitante com a doutrina
tradicional, do mesmo modo que o é o Vaticano II, no qual ele se inspira (vide Declaração a
Dignitatis Humanae), que deve ser qualificado como heretizante (ver, neste site, o
artigo “Da qualificação teológica extrínseca do Vaticano II”).
6] Outrossim, as singulares declarações do Pe. Lombardi suscitam dúvidas
e questões variadas, como por exemplo as que seguem. ─ Por que retirar o texto
do site sem explicar em que pontos precisos ele não fora fiel ao pensamento do
Papa? ─ Por que retirar do site só a entrevista a La Repubblica, ali deixando a da Civiltà Cattolica, que revela idêntica orientação teológica? ─
Desqualificar dessa forma, indiretamente, o texto de La Repubblica como documento magisterial, não seria
fugir às graves acusações formuladas pelos antimodernistas de todo o mundo, em
vez de enfrentá-las serenamente e às claras, como seria de rigor para o mestre
e intérprete infalível da verdade revelada? ─ Bem sopesada a exclusão dessa
entrevista do site da Santa Sé, não se poderia concluir, em boa e singela
lógica, que realmente seu texto estava prenhe de proposições desviadas da boa
doutrina? ─ E, enfim: por mais que os fieis verdadeiros cultuem filialmente o
Papa e o Papado, à luz da Fé; por mais que tenham o Pontífice como o doce Cristo na Terra; e por mais que lamentem de toda a
alma a dramática situação presente, seriam eles insanae mentis a ponto de pensarem que a questão da ortodoxia das duas aludidas
entrevistas estaria encerrada com a retirada de uma delas do site vaticano?
Expressões inaceitáveis na entrevista à Civiltà Cattolica
7] Nas declarações do Papa a La Repubblica estão algumas das frases papais que correram mundo atordoando os
católicos fieis, tais como: ─ “o proselitismo é um solene disparate”; ─
“cada um tem sua ideia do Bem e do Mal e deve escolher de seguir o Bem e
combater o Mal como ele os concebe”; ─ “os cabeças da Igreja com
frequência foram narcisistas, adulados e mal instigados por seus cortesãos”;
─ “a corte é a lepra
do Papado”; ─ “muitos da teologia da libertação eram crentes e com um
alto conceito de humanidade”; ─ “não existe um Deus católico, existe
Deus”. Tudo isso, portanto, foi agora retirado do site vaticano.
8] Contudo, ingênuo seria o fiel católico para quem a questão de fundo
estaria resolvida com a simples retirada do texto de La Repubblica do site vaticano. Com efeito, na
entrevista à Civiltà Cattolica, que permanece no
site, o Papa disse:
a. Que um de seus pensadores contemporâneos preferidos é Henri de Lubac. ─ Tal asserção constitui uma recomendação implícita mas incisiva para
que o neomodernista Cardeal Henri de Lubac seja estudado e seguido pelos
católicos fieis, como já observamos anteriormente (ver, neste site, o
artigo “Grave lapso teológico do Padre Federico Lombardi”).
b. “Jamais fui de direita”. ─ Também já observamos,
no mesmo artigo, que essa expressão claramente convida os fieis a adotarem um
posicionamento antes de esquerda.
c. “Deus é maior do que o pecado”. ─ Essa frase insinua que o pecado não
é tão grave, desde que se creia em Deus e em sua misericórdia.
d. “Durante
o voo de retorno do Rio de Janeiro, eu disse que se uma pessoa homossexual tem
boa vontade e está à procura de Deus eu não sou ninguém para julgá-la”. ─ É evidente que não cabe ao Papa julgar o íntimo da consciência
individual ─ de internis nec Ecclesia ─, mas é missão essencial ao representante de Jesus Cristo na Terra
expor a doutrina da Igreja sobre fé e moral. A esse propósito, é estarrecedora
a notícia de que o casamento homossexual foi aprovado, no Estado americano de
Illinois, graças às instâncias de um deputado católico, Michael J. Madigan, que
conseguiu obter a pequena dezena de votos necessária para que a nova lei fosse
aprovada, com o argumento de que, se o Papa dizia “eu não sou ninguém para
julgá-la”, menos ainda o poderia ele.
e. “A religião tem o direito de exprimir a própria opinião a serviço do
povo, mas Deus na criação nos tornou livres: a ingerência espiritual na vida
pessoal não é possível”. ─ Nos pontos
fundamentais do dogma e da moral, a doutrina católica não tem “opiniões”
mas certezas. O apostolado, a formação doutrinária, o aconselhamento na direção
espiritual não podem ser considerados “ingerência” na “vida pessoal”
de ninguém. Nos documentos pontifícios anteriores ao Vaticano II, como a
Encíclica Libertas Praestantissimum, de Leão XIII, e nos manuais da neoescolástica, a verdadeira noção da
liberdade vem exposta de modo claro, sem relativizações.
f. “Não podemos insistir apenas nas questões ligadas ao aborto, ao
matrimônio homossexual e ao uso dos métodos contraceptivos. Isso não é possível”. ─ Essa frase vem evidentemente desestimular as magníficas campanhas que
têm sido promovidas em todo o orbe contra aqueles flagelos. É grave que essa
intervenção papal se dê exatamente quando do auge de algumas dessas campanhas.
g. “O parecer da Igreja [sobre aborto,
homossexualidade, contracepção] é conhecido, e eu sou
filho da Igreja, mas não é necessário falar disso continuamente” ─ É igualmente estarrecedor que a posição da Igreja sobre esses pontos
fundamentais da moral seja qualificada como simples “parecer”. E não se
vê que o texto dê a devida atenção ao dever enunciado por São Paulo, de “insistir
oportuna e importunamente”.
h. “Uma pastoral missionária não tem obsessão pela transmissão
desarticulada de uma multidão de doutrinas a serem impostas com insistência”. ─ Essa afirmação constitui grave condenação da neoescolástica, como
anotamos no mencionado artigo “Grave lapso teológico do Padre Federico
Lombardi”.
i. “O anúncio do amor salvífico de Deus é prévio à obrigação moral e
religiosa”. ─ O que fica insinuado nessa frase não
é tanto a antecedência temporal do “anúncio do amor salvífico de Deus”
em relação às obrigações morais e religiosas, mas é sobretudo a ideia
modernista de que realmente importante é o amor de Deus, ao passo que as
obrigações morais e religiosas são relativas, podendo até variar segundo a
consciência de cada qual.
j. “Os
dicastérios romanos, quando não bem entendidos, correm o risco de se tornar
organismos de censura. É impressionante ver as denúncias de falta de ortodoxia
que chegam a Roma”. ─ Essa declaração
revela, de um lado, o zelo dos fieis católicos, que os leva a batalhar pela
pureza da Fé. E, de outro lado, que seu autor parece adotar a norma liberal do politicamente correto de nossos dias,
segundo a qual toda censura é má. A Santa Igreja sempre ensinou que, em
princípio, a censura é indispensável à preservação da Fé.
k. “Ainda
não foi feita uma profunda teologia da mulher [...]. Qual deve ser o papel
da mulher na Igreja?”. ─ Como já nos
perguntamos no mesmo artigo “Grave lapso teológico do Padre Federico
Lombardi”, não é verdade que tal afirmação sugere uma modernização do papel
da mulher na Igreja, favorecendo em tese a posição dos que querem até a
ordenação sacerdotal de mulheres?
l. “Considero preocupante o risco de ideologização do antigo Ordo da
Missa, a sua instrumentalização”. ─ Para o bom
entendedor, essa frase manifesta o fundo do pensamento do Papa Francisco sobre
a Missa tradicional. Não se vê que seja possível pôr à margem, com uma simples
palavra ligeira, os graves problemas de Fé, e portanto de consciência, que a
Missa nova suscita.
m. “Deus se
encontra no hoje. Deus se manifesta numa revelação histórica, no tempo. O tempo
inicia os processos, o espaço os cristaliza. Deus se encontra no tempo, nos
processos em curso”. ─ Essa formulação induz à tese modernista de que a
Revelação não terminou com a morte do último dos Apóstolos; tese essa que, por
sua vez, leva à evolução intrínseca do dogma.
n. “Nesse procurar e encontrar a Deus em todas as coisas fica sempre uma
zona de incerteza. Deve ser assim. Se uma pessoa diz que encontrou a Deus com
certeza total e nisso não aflora uma margem de incerteza, então as coisas não
vão bem. Para mim, essa é uma chave importante”. ─ Está aí, pelo menos insinuada, a profissão de uma Fé que admite
incertezas.
o. “Não devemos confundir a genialidade do tomismo com o tomismo
decadente. Eu, infelizmente, estudei a filosofia com manuais de tomismo
decadente”. ─ Para quem tem uma noção da história
do tomismo, ainda que sumária, essa declaração constitui uma condenação genérica
e total da magnífica neoescolástica dos séculos XIX e XX.
9] Diante dessas passagens da Civiltà Cattolica, vê-se que, quanto
ao mérito, nada ou pouco significa a retirada da entrevista ao La Repubblica do site vaticano. E vê-se também como é
precária a afirmação do Pe. Lombardi de que o texto supresso teria “equívocos”,
por isso não exprimindo com exatidão o pensamento papal. Equívocos, quando
realmente existem, são por natureza ocasionais, circunstanciais, aleatórios, de
modo tal que, se numerosos deles, num texto longo, caminham todos na mesma
direção, como é aqui o caso, não se haveria de falar em equívocos, mas em algo
de bem diverso.
Está se perdendo a “italianità” tradicional
da Santa Sé
10] Há séculos a Santa Sé tem seus modos de proceder profundamente
marcados pelo espírito italiano. De forma muito especial, esse estilo
peninsular se revela na diplomacia clássica do Vaticano, sábia, silenciosa,
sóbria, altamente eficiente. Esse modo de ser e agir traz em si um savoir-faire extraordinário, que
sabe harmonizar as virtudes entre si opostas, como a justiça e a misericórdia,
a magnificência e o espírito de pobreza. Sabe distinguir, compreende que a
verdade está nas nuances. É uma escola de
seriedade, de humildade, de organicidade, de habilidade, do senso das
conveniências e medidas. No passado, grandes figuras estrangeiras, como o
Cardeal Merry del Val, Secretário de Estado de São Pio X, souberam assimilar em
si e no seu proceder esse magnífico espírito italiano. Em teologia, o mesmo
ocorreu com o alemão Cardeal Franzelin, com o francês Cardeal Billot e com
tantas outras personalidades insignes.
11] Infelizmente, a internacionalização do Colégio Cardinalício e da
Cúria Romana nem sempre está mantendo em sua integridade e pureza os valores
dessa italianitàmultissecular. Assim,
despontam cá e lá, em espíritos das mais diversas nacionalidades, manifestações
do esto pro lege voluntas, bem como de certa
espontaneidade vistosa e pouco refletida, erigida por alguns como norma básica
da vida social. Veja-se, por exemplo, nesse episódio das duas entrevistas
papais, como desde o início a questão foi mal encaminhada, com ofensas a
verdades da Fé e tradições curiais, podendo-se recear que se tenha tornado
inevitável, em futuro próximo, a eclosão de uma crise mais pesada.
12] Com muita razão, o ilustre professor Pietro De Marco escreveu, a
propósito da crise provocada pelas duas aludidas entrevistas do Papa Francisco,
que, ”para quem não seja propenso à prosa relativista desta modernidade
tardia”, um dos “sinais preocupantes” da situação de hoje é “a
falta de controle, por pessoas de confiança, mas sábias e cultas, e italianas, dos textos destinados à circulação, talvez pelo
convencimento papal de que isso não é necessário” (3).
Breve esclarecimento e conclusão
13] A fim de evitar mal-entendidos, deixo claro que a italianità de que falo – sóbria, lúcida, ágil,
orgânica, católica – talvez seja hoje rara, nos meios vaticanos como na Itália
em geral. E, ademais, caberia perguntar se tal italianità autêntica é conciliável com o modernismo, o qual, negando a verdade
objetiva (ver neste site: Garrigou-Lagrange, citado em meu artigo “Sentir com a
Igreja é sentir com o Vaticano II?”), não pode exprimir-se
convenientemente na lógica aristotélica, à luz dos primeiros princípios da
escolástica, de maneira racional, séria, clara e transparente.
14] Que Nossa Senhora do Divino Amor, padroeira da cidade de Roma,
conceda suas melhores graças ao Papa Francisco, bem como preserve a autêntica italianitàna vida vaticana, e faça com que sem delongas seja o modernismo
extirpado dos meios católicos, como o há necessariamente de ser, dado o dogma
da indefectibilidade da Santa Igreja, em que todos cremos com Fé verdadeira que
inadmite dúvida.
_____________________
NOTAS:
3 Artigo “Un
messagio ‘liquido’”, de 7.10.13 - http://chiesa.espresso.repubblica.it/articolo/1350619 ─ Pietro De Marco, historiador e sociólogo, é professor na Faculdade de
Florença e na Faculdade de Teologia da Itália Central.
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