DESTAQUE
Os cardeais Ottaviani
e Bacci puderam então afirmar a Paulo VI: “Quiseram passar uma esponja em toda
a teologia da Missa. Terminou como algo muito próximo da teologia protestante
que destruiu o sacrifício da Missa” [6]. Encontramos as mesmas omissões e
deslizes nos textos do concílio Vaticano II.
O povo reunido é sacramento da Igreja, que ele se manifesta e torna presente [18].
Deus se revela assim diretamente na
consciência pela experiência e não pela pregação. O sacramento é
“revelação” da presença viva de Deus. Ele permite realizar uma “certa
experiência das verdades de fé”.
*** * ***
Este capítulo demonstrará que a perspectiva panteísta fornece uma
explicação global e coerente às inovações litúrgicas do concílio Vaticano II.
Com razão, alguns não deixarão assim de levantar a questão da influência
protestante sobre o Vaticano II, mais que visível, aliás, na missa nova.
Seríamos os últimos a querer negá-la ou minimizá-la. Porém devemos ver nela
a origem última da subversão religiosa? O protestantismo não é
ele próprio o vetor de outras influências, que só se revelam progressivamente
no desenrolar da história? Ele não é apenas umaetapa na subversão
espiritual?
Não buscaremos evidenciar aqui a filiação histórica entre gnósticos,
maniqueus, cátaros, albigenses, humanistas, cabalistas, Rosa-Cruzes e maçons,
de um lado, e protestantes, do outro. Somente esta enumeração demonstra a
extensão das pesquisas a serem conduzidas a termo. Não se pode negar que
todos[1] estes movimentos são anteriores à Reforma e não podem provir dela. A
influência destas correntes anti-católicas sobre a origem da Reforma, uma
semelhança espiritual frequentemente muito profunda com o protestantismo (que
este capítulo evidenciará implicitamente) e a convergência dos herdeiros de
todas estas forças durante o concílio Vaticano II estabelecem naturalmente um
vasto problema. Não tomaremos a iniciativa de resolvê-lo aqui, mencionando
somente que ele conduz a conclusões muito perturbadoras sobre a origem do
protestantismo e, portanto, do ecumenismo e do Vaticano II.
A proximidade, não mais histórica, mas intelectual, entre os movimentos
gnósticos e o protestantismo exige, não obstante, um esclarecimento rápido[2].
Por que tantos elementos do concílio Vaticano II podem ser interpretados tanto
em uma perspectiva holística, gnóstica e maçônica, quanto em um âmbito
protestante? Por que o ecumenismo, a colegialidade, a liberdade religiosa, a
missa nova, a confusão entre a natureza e a graça, figuram naturalmente nestes
dois sistemas de interpretação? Devemos resumir aqui umas considerações que
mereceriam desenvolvimentos mais amplos. A doutrina maçônica, que é também aquela do Vaticano II, confunde a
natureza e a graça, divinizando a natureza. “Esta natureza foi elevada em
nós a uma dignidade incomparável. Pois, por sua encarnação, o Filho de Deus se
uniu de algum modo a todo homem“. Por sua vez, Lutero confundia a natureza
e a graça, destruindo a natureza para deixar subsistir somente Deus: o pecado
original, que o batismo não apaga, corrompeu radicalmente o homem. A natureza
estando irremediavelmente ferida, não pode o homem fazer nenhum esforço moral.
Toda a nossa santificação é obra somente de Deus, e não podemos de modo algum
colaborar com ela. Assim os eleitos são justificados somente pela graça de
Deus, que lhes imputa a justiça de Cristo, revestindo-os como por um manto de
seus méritos. Chega-se assim ao panteísmo por duas vias opostas: seja exaltando
e divinizando o homem, seja o rebaixando até à aniquilação.
Todavia, resta mencionar que, apesar de todas estas semelhanças
profundas, o protestantismo não pode por si só justificar a doutrina do
Vaticano II: a confusão entre o Criador e a criatura, a salvação universal, a
salvação cósmica, a unidade do gênero humano, nossa graça natural e a dignidade
humana só podem ser explicadas no âmbito do pensamento holístico. O livre exame
protestante só tomará sua amplitude com a doutrina conciliar e gnóstica da
revelação interior. Assim, a Reforma aparece como uma simples etapa na
transmutação alquímica da cristandade que culminou no concílio Vaticano II.
O SANTO SACRIFÍCIO DA MISSA
Não é nossa intenção acrescentar algo aos profundos estudos sobre a missa nova que outros, melhor armados, publicaram [3]. Neste capítulo, contentar-nos-emos em recordar suas conclusões bem fundamentadas e remeter nossos leitores a estas obras preocupadas com aprofundamentos. Servir-nos-emos particularmente do estudo publicado pela Fraternidade sacerdotal São Pio X intitulado “O problema da reforma litúrgica”[4]. Ele expõe uma das chaves de interpretação da missa nova: o “mistério pascal”, que, na teologia conciliar, substituiu o dogma da Redenção.
Baseados nestas conclusões, que esclarecem as modificações introduzidas pelo Vaticano II no santo sacrifício da missa e que, essencialmente, suporemos assimiladas, ainda que as recordemos rapidamente, demonstraremos que a doutrina holística, panteísta e maçônica, esclarece imediatamente todas estas mudanças e apresenta o “mistério pascal”, como mistério gnóstico. Portanto, tal é o único propósito deste capítulo: demonstrar que a doutrina maçônica fornece a explicação mais completa da renovação litúrgica. Recordaremos de forma breve as principais críticas formuladas contra a nova liturgia; resumiremos em seguida a teologia do “mistério pascal” e a análise que O problema da reforma litúrgica faz dela; em seguida demonstraremos que todos estes elementos figuram no âmbito do pensamento maçônico.
A querela sobre a missa incide principalmente sobre o desaparecimento ou a diminuição de seu caráter de sacrifício propiciatório, de representação e de renovação não sangrenta do sacrifício da Cruz, e, portanto, sobre a aplicação de seus méritos sobre nossas almas. A nova liturgia tende a negar ou a reduzir tanto o aspecto sacrificial da missa quanto seu caráter propiciatório. A definição da missa dada pela Instituio generalis [5] causou grande escândalo antes de ser levemente modificada.
“A Cena dominical é a sinaxe (assembleia) sagrada ou a reunião do povo de Deus, que se reúne sob a presidência do sacerdote para celebrar o memorial do Senhor. É por esta razão que, para a assembleia local da santa Igreja, vale a promessa eminente de Cristo: lá onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, eu estarei no meio deles”.
Em algumas palavras, esta definição notável nega implicitamente o sacrifício, a propiciação e o caráter sacerdotal do padre, para transformar o santo sacrifício da missa em refeição (cena) e em memorial; o padre, outro Cristo, em presidente da assembleia, e a presença real, em presença espiritual (estarei presente no meio deles). Silencia-se o milagre da caridade divina manifestado pela representação e a renovação do sacrifício da Cruz, pela presença real e pela comunhão que nos leva realmente a receber Nosso Senhor Jesus Cristo. Os cardeais Ottaviani e Bacci puderam então afirmar a Paulo VI: “Quiseram passar uma esponja em toda a teologia da Missa. Terminou como algo muito próximo da teologia protestante que destruiu o sacrifício da Missa” [6]. Encontramos as mesmas omissões e deslizes nos textos do concílio Vaticano II. Contentar-nos-emos em dar suas referências para não sobrecarregar inutilmente nossa análise [7].
Tal omissão voluntária do sacrifício propiciatório significa sua “superação” e, ao menos na prática, sua negação [8] e sua substituição somente pela ação de graças (eucaristia) ou por um sacrifício de louvor. A pena devida ao pecado e a finalidade satisfatória da missa são destruídas, de tal modo que esta não aparece mais em parte alguma na liturgia dos defuntos. Enfim, a participação na vítima, realizada na comunhão, não é mais requerida. A Cruz é esquecida, suplantada pela Ressurreição. O santo sacrifício é substituído por uma liturgia de salvos.
A missa não passa mais então de uma refeição memorial que requer,
portanto, comê-la e bebê-la — a comunhão sob as duas espécies. O altar, pedra
fixa sobre a qual se efetua o sacrifício, é substituído por uma mesa de
madeira, móvel, adaptada à refeição e voltada para os fiéis.
“Com efeito, a Missa levanta a mesa tanto (primeiramente) da palavra de Deus quanto (em segundo lugar) do Corpo do Senhor, onde os fiéis são instruídos e restaurados”. (Institutio generalis, § 8)
“O penhor desta esperança e o viático para este caminho deixou-os o Senhor aos seus naquele sacramento da fé, em que os elementos naturais, cultivados pelo homem, se convertem no Corpo e Sangue gloriosos, na ceia [9] da comunhão fraterna e na prelibação do banquete celeste”. (Gaudium et spes, 38, 2)
O ofertório, que oferecia a Deus uma hóstia (vítima) imaculada e o cálice da salvação, referindo-se ao único sacrifício que o homem decaído possa oferecer a Deus, aquele de seu Filho, Nosso Senhor Jesus Cristo, é assim substituído por uma simples apresentação dos dons, que retoma uma oração judaica. A Presença real, objetiva, é morta (comunhão na mão e de pé [10]) enquanto que a ênfase é posta sobre a presença espiritual de Cristo e sobre a palavra de Deus. O pão e o vinho, que a liturgia tradicional já considera como uma “hóstia imaculada” e o “cálice da salvação”, agora se tornam “pão da vida” e “bebida espiritual”, indicando uma mudança espiritual, e não substancial, sem referência à presença real, corpo, sangue, alma e divindade de Nosso Senhor Jesus Cristo. Por outro lado, Cristo está presente por sua palavra:
“Na Igreja, quando se lê a Santa Escritura, é o próprio Deus que fala com seu povo, e é Cristo, presente em sua palavra, que anuncia o Evangelho”. (Institutio generalis, § 9)
Da mesma forma, Cristo está presente no povo de Deus. Desde o Vaticano II, todos os leigos estão revestidos do sacerdócio comum dos fiéis:
“A Igreja quer que os
fiéis, não somente ofereçam esta vítima sem mancha, mas ainda que eles aprendam
a oferecer a si mesmos”. (Institutio generalis, § 79)
Toda a assembleia dos fiéis se associa
então ao padre para celebrar a eucaristia. Esta inversão fica particularmente
sensível durante a genuflexão do padre, que no rito antigo ocorre imediatamente
após a consagração, enquanto que agora é postergada para depois da elevação,
depois que os fiéis, reunidos em nome do Senhor, o tornaram presente (lá onde
dois ou três…). Do mesmo modo, o Pater é
recitado agora por todos, padres e fiéis.
O “MISTÉRIO PASCAL”
O Problema da reforma litúrgica faz remontar a origem
da missa nova à doutrina do “mistério pascal” [11]. Esta doutrina se
caracteriza pelo abandono da satisfação e, mais particularmente, da satisfação
vicária, pela afirmação do amor infinito de Deus, que o pecado de nenhum modo ofende
[é incapaz de ofender] [12], e pela negação da justiça divina e de toda
dimensão vindicativa [13]. A Redenção “não é
mais a satisfação da justiça divina operada por Cristo, mas revelação última da Aliança
eterna que Deus fez com a humanidade, Aliança que nunca foi rompida pelo
pecado[14]” e que acarreta, portanto, na salvação humana.
Por trás do “mistério pascal”, o Problema da reforma litúrgica evidencia
uma “doutrina dos mistérios” que faz dele, de acordo com Joseph Ratzinger, “a
ideia teológica provavelmente mais fecunda de nosso século” [15]. O mistério,
ou sacramento, não produz mais a graça santificante, mas torna realmente presente a
realidade santificante. Assim, Cristo é o “sacramento primordial”, que “torna
presente e revela plenamente o Pai” [16]. A Igreja é o sacramento de Cristo,
visto que por ela “o homem pode encontrar Cristo e Deus no Cristo” [17]. A
liturgia também é sacramento de Cristo, visto que nela realizamos a experiência de sua presença. O povo reunido é sacramento da Igreja,
que ele se manifesta e torna presente [18]. Deus
se revela assim diretamente na consciência pela experiência e não pela
pregação. O sacramento é “revelação” da presença viva de Deus. Ele
permite realizar uma “certa experiência das verdades de fé”.
“Assim como dissemos, uma das principais chaves da teologia do mistério
pascal é o sentido que ela concede à palavra “sacramento”. Visto que ela o
considera como uma realidade que torna presente o divino (o “mistério”
propriamente dito), faz do sacramento o elo que permite a experiência do
encontro com Deus. “Sinal e meio da união íntima com Deus” (Lumen gentium 1),
o sacramento concebido de forma nova, centrado como ele é sobre o símbolo e
sobre o divino tornado acessível à experiência humana, recebe um campo de
aplicação de uma extensão até então desconhecida”.[19]
“(em resumo) Visto que a teologia do mistério pascal estima que
o pecado não traz como consequência contrair nenhuma divida de justiça em
relação à honra escarnecida de Deus, e por via de consequência, não considera
mais a satisfação vicária de Cristo como um dos elementos essenciais do ato
redentor, a reforma litúrgica afastou do rito da missa tudo o que poderia dizer
respeito à pena devida ao pecado, assim como a finalidade propiciatória da
missa. Visto que a teologia do mistério pascal só considera a Redenção como a
manifestação última do amor eterno do Pai em relação ao homem, ao qual responde
a acolhida deste mesmo amor pelo Cristo, que se fez em sua Encarnação solidário
a todo homem, a reforma litúrgica fez do sacramento uma revelação deste mesmo
amor divino, ao qual o homem é convidado a responder por uma acolhida de fé
para entrar em contato com Cristo glorioso tornado presente sob os véus do
mistério. Visto que a teologia do mistério pascal considera o rito memorial
como único apto a tornar presente, por além do tempo do homem, os mistérios da
morte e da Ressurreição de Cristo, a reforma litúrgica modificou profundamente
a estrutura ritual da missa ao ponto de retirar sua dimensão propriamente
sacrificial”.[20]
O Problema da reforma litúrgica menciona enfim
vários outros temas gnósticos. Ele revela que a noção de mistério “busca
exprimir o caráter de revelação direta de Deus aos seus servos, que está ligada
à Revelação, por oposição a um modo de conhecimento filosófico”[21]; ele nota o
“questionamento do valor objetivo do conhecimento especulativo”, a recusa dos
dogmas, a vontade de realizar a experiência da presença de Deus[22] e cita,
enfim, esta passagem a priori surpreendente de Odon Casel, um
dos “pais” da “teologia dos mistérios” (a primeira parte desta citação é
formada pela post-comunhão da oitava da Epifania):
“Cerque-nos sempre e
por toda parte, Senhor, com a luz celeste, a fim de que, por este mistério, ao
qual tivestes por bem nos fazer participar, possamos contemplá-Lo com um olhar
puro e recebê-Lo com um coração digno”. Em que consiste a participação?
Inicialmente, na contemplação. Contemplamos o mistério na gnose da fé. Porém
esta não é uma contemplação inativa e ineficaz. Somos transformados por esta
contemplação”. [23]
Agora nos é possível terminar de estabelecer que as críticas formuladas
contra o Vaticano II, e mais particularmente pelo Problema da reforma
litúrgica, demonstram que nos encontramos diante de uma reforma de
inspiração maçônica e gnóstica. A doutrina do Vaticano II é rigorosamente
equivalente ao panteísmo ou à afirmação de que nossa natureza é graciosa. Se
nossa natureza é graciosa, de uma graça inamissível [24], devemos então negar a
necessidade dos sacramentos [25], visto que a graça, que nos seria natural, não
poderia ser perdida. O sacrifício propiciatório da missa, sua aplicação em
nossas almas e a satisfação vicária são inúteis, e o pecado não nos faz mais
perder a amizade divina. Em sentido inverso, se o pecado não nos faz mais
perder a amizade divina, nossa natureza é graciosa, de uma graça inamissível. O
mesmo ocorre se se nega a necessidade da aplicação dos méritos da Paixão em
nossas almas pelo santo sacrifício, ou se se nega a satisfação vicária: isso
significa afirmar que todas as almas sempre estão em estado de graça, que o
pecado não ofende mais a Deus, não acarreta mais uma dívida de justiça – porque
nossa natureza possui uma graça inamissível.
Disso resulta uma liturgia de salvos, uma simples ação de graças, uma
refeição memorial. O sacrifício sendo apagado, o papel do padre é diminuído a
simples presidente. Toda a assembleia de salvos deve participar: ”A Cena
dominical é a sinaxe (assembleia) sagrada ou a reunião do povo de Deus”,
enquanto que, na realidade, as missas sem assistência são válidas. Nossa
natureza sendo graciosa, não temos mais que participar da vítima, e a Cruz é
suplantada pela Ressurreição. A presença real desaparece por detrás da presença
espiritual [26] em cada um de nós, que a Redenção encarregou de revelar (de nos
fazer entender).
A teoria dos mistérios de Odon Casel e a teoria do “mistério pascal”
podem então ser repostas no âmbito dos mistérios iniciáticos.
“(Tito Lívio) nos descreve de um modo muito impressionante o juramento das jovens recrutas da legião dos Samnitas[27]. O local onde elas eram chamadas a pronunciar seu juramento era cercado por um pano. Como o narra Tito Lívio, esta legião se servia de um antigo rito de consagração (ritu sacramenti) para adotar (initiare) seus novos membros. Todo um dispositivo cultual era empregado: ofereciam-se sacrifícios, pronunciavam-se juramentos sagrados e terríveis, e toda esta encenação tinha antes a aparência de uma iniciação mistagógica que de um juramento militar. Todos estes gestos recordavam ainda mais a consagração dos Mistérios (occultum sacrum), que também eram precedidos de um juramento secreto. É evidente que a palavra sacramentum já tende aqui a tomar o sentido de consagração, de mysterium. Quando, em 186 antes de Jesus Cristo, o Estado romano demandou a interdição dos mistérios de Bacu, o cônsul se levantara contra os mistérios, aproximando-os da prestação do juramento militar, e, nesse intuito, ele se apoiava sobre uma expressão comum a ambos, a de sacramentum. “Vocês acreditam, cidadãos, exclamara ele, que estes jovens que receberam a iniciação dos mistérios (hoc sacramento initiatos) ainda possam se tornar soldados? Aquele que foi introduzido na santidade dos mistérios, que foi santificado por esta consagração à divindade, como ainda ele poderia se devotar à República pelo juramento (sacramentum) do soldado?”[28]. Por seu lado, Apuleio[29] compara o juramento militar à iniciação mistagógica, ao”juramento” (sacramentum) que o mista [30] deve prestar na qualidade de soldado de seu deus.
“Não é difícil ver
por qual caminho a palavra sacramentum penetrou na
terminologia dos mistérios. Esta é uma via que deveria se tornar da mais
elevada importância para a teologia cristã. Já na primeira versão latina da
Escritura santa, os cristãos, lá onde eles não mantiveram a palavra grega,
reproduziram o termo mysterium (μνστηριον) pelo de sacramentum.
Deste modo, todo o significado da expressão grega μνστηριον passou para a
palavra sacramentum. A terminologia antiga passava completamente para o
cristianismo”[31]. (Odon Casel) [32].
Não há dúvidas de que, para Odon Casel, o pai da “doutrina dos
mistérios”, “a ideia teológica provavelmente mais fecunda de nosso século”, de
acordo com Joseph Ratzinger, a noção de mistério, vem das iniciações mistéricas
– cuja maçonaria reivindica a herança panteísta:
“O Ser de Deus em sua majestade está, portanto, infinitamente acima do
mundo, porém ele habita, misericordiosamente, em sua criatura, na humanidade.
Por sua natureza, ele ultrapassa infinitamente toda criatura; por sua
ubiquidade e sua onipotência, ele penetra todas as coisas.
O mundo antigo já tinha um pressentimento obscuro deste Mistério. Ele
pressentia que todo o terrestre era apenas a imagem e a sombra de algum poder e
de alguma beleza supra-terrestres. É o sentimento deste mistério que está na
origem dos templos sumérios e babilônicos, das pirâmides e das esfinges
egípcias. Na Grécia, a sabedoria platônica fala deste mistério divino, e os
cultos aos mistérios do período helênico ainda são orientados para ele. Por
toda parte se encontra o desejo ardente de fazer o céu descer sobre a terra, de
aproximar a humanidade e o divino para uni-los.
O próprio Deus endossara
esta profunda nostalgia se revelando ao povo judeu. A lei, certamente, traçava
com severidade a linha de demarcação entre Deus e o homem, ela formava como uma
cerca em torno da montanha santa sobre a qual Deus tinha estabelecido seu
trono. Porém os profetas não encontravam imagens sempre novas para anunciar o
reino onde o Senhor teria sua tenda no meio de seu povo, onde seu Espírito
preencheria toda carne?” (Odon Casel) [33].
Porém o mistério da divindade do mundo deve ser revelado ao iniciado:
“Traduzindo superficialmente mysterium por ‘mistério’,
corremos o risco de nos perdermos, mesmo quando esta última palavra exprime o
caráter oculto da verdade divina; porém, ele é verdadeiro, sobretudo quando ele
designa claramente a ação de Deus ou a ação cultual. Com efeito, o mysterium não
é mais um mistério (ou seja, um segredo) para o mista. O mysterium foi
manifestado para ele, mas ele continua um mistério, um segredo inacessível para
o infiel. A revelação é realmente um elemento essencial do mysterium,
e, para que haja mysterium, é preciso que haja uma revelatio,
é preciso que o véu (de Ísis) seja arrancado”. (Odon Casel)[34]
“Na linguagem paulina, “mysterium” significa inicialmente uma
ação divina, a realização de um propósito eterno de Deus por uma ação que
procede da eternidade de Deus, que se realiza no tempo e no mundo, e que tem
seu cumprimento final, seu fim, no próprio Eterno.
Este mysterium pode
ser enunciado unicamente na palavra “Christus“, que designa ao mesmo
tempo a pessoa do Salvador e seu Corpo místico, que é a Igreja. Por “Christus“,
entendemos inicialmente a Encarnação de Deus” (portanto, na pessoa do Salvador
e de seu Corpo místico)”. (Odon Casel) [35]
O iniciado deve então dar-se conta de sua divindade,
não se contentando mais em saber que ele é Deus, mas vivê-lo e
sê-lo verdadeiramente:
“Foi por sua Paixão que o Senhor se tornou[36] Espírito, Pneuma.
É por isso que devemos viver com ele, misticamente, sua Paixão. Assim como
Cristo se tornou Pneuma por sua paixão física, assim devemos
transpor misticamente sua Paixão pelo batismo, compartilhar o Espírito divino,
para nos tornarmos homens “espirituais”,pneumatikoi“. (Odon Casel)[37]
“Contemplamos o
mistério na gnose da fé. Porém esta não é uma contemplação inativa e ineficaz.
Somos transformados por esta contemplação”. (Odon Casel) [38].
Convém notar que esta realização é efetuada somente pela eficácia dos ritos iniciáticos [39], graças ao sacramento que realmente torna presente a realidade santificante: o mysterium foi manifestado ao mista pela ação cultual, o véu foi arrancado, sem nenhum esforço de santificação, sem purificação, sem que a justiça divina tivesse sido satisfeita. Deus realmente se tornou presente por seu sacramento, Cristo; Cristo, pelos seus: a Igreja, a liturgia e sua Palavra; e a Igreja, pelo povo de Deus reunido. Esta revelação dos mistérios, de uma realidade pré-existente, porém encoberta ao “infiel” pela ignorância, este segredo enfim conhecido não pela graça e a santificação, mas somente pela eficácia dos ritos, este conhecimento não passa de gnose. Compreende-se então porque a Redenção não seja “mais satisfação da justiça divina operada por Cristo, mas revelação (e, portanto, conhecimento) última da Aliança eterna que Deus fez com a humanidade, Aliança que nunca foi rompida pelo pecado” [40].
“O órgão dos mistérios é a ação litúrgica; ela é uma cooperação aos atos
divinos. Seu resultado é a união com a divindade, a participação na vida divina
[...].
Pode-se então definir
assim o mistério: uma ação sagrada e cultual, na qual uma obra redentora do
passado se torna presente sob um rito determinado; a comunidade cultual,
realizando este rito sagrado, participa do fato redentor evocado, e adquiri
assim sua própria salvação”. (Odon Casel) [41].
É assim que encontramos por toda parte, sob a pluma de Casel, os grandes
temas gnósticos: ódio dos dogmas, do conhecimento racional e da filosofia;
gnose (da fé); experiência direta do divino (iluminação). Devemos ainda afirmar
fortemente que a “teologia dos mistérios”, sobre a qual a reforma litúrgica se
apóia, é uma doutrina panteísta, iniciática e maçônica, em oposição frontal com
a verdade revelada.
A SATISFAÇÃO VICÁRIA DE ACORDO COM O CARDEAL RATZINGER[42][43]
“Que lugar a cruz ocupa exatamente na fé em Jesus reconhecido como
Cristo? Tal é o problema ao qual nos confrontamos novamente neste artigo
do Credo. As reflexões precedentes nos forneceram praticamente
todos os elementos para uma resposta; precisamos agora tentar sintetizá-los. A
consciência cristã, sobre este ponto, foi amplamente marcada, como já
constatamos, por uma apresentação extremamente rudimentar da teologia da
satisfação de Anselmo de Cantuária, cuja expusemos as grandes linhas em outro
contexto. Para um grandíssimo número de cristãos, e sobretudo para aqueles que
conhecem a fé somente de assaz longe, a cruz se situaria no interior de um
mecanismo de direito lesado e restabelecido. Este seria o modo cuja justiça de
Deus infinitamente ofendida teria sido novamente reconciliada por uma satisfação
infinita. Outrossim, a cruz parece exprimir uma atitude de Deus que exige uma
equivalência rigorosa entre o “Devo” e o “Ter”; e, ao mesmo tempo, tem-se a
sensação de que esta equivalência e esta compensação repousam, apesar de tudo,
sobre uma ficção. Inicialmente, dá-se em segredo com a mão esquerda o que se
pega solenemente com a mão direita. A “satisfação infinita” que Deus parece
exigir toma assim um aspecto duplamente inquietante. Alguns textos de devoção
parecem sugerir que a fé cristã na cruz representa um Deus cuja justiça
inexorável reclamou um sacrifício humano, o sacrifício de seu próprio Filho. E
se se afasta com horror de uma justiça cuja ira sombria retira toda
credibilidade da mensagem do amor.
Tanto esta imagem está difundida, tanto ela é falsa. A Bíblia não
apresenta a Cruz como parte de um mecanismo de direito lesado; aí a cruz
aparece, bem ao contrário, como a expressão de um amor radical que se doa
completamente; este é um acontecimento no qual alguém é o que faz, e faz o que
é; ela é a expressão de uma vida totalmente para os outros.[...]
(No Novo Testamento) Não é o homem que se aproxima de Deus para lhe
trazer uma oferta compensatória, é Deus que vem ao homem para lhe dar. Pela
iniciativa do poder de seu amor, Deus restabelece o direito lesado,
justificando o homem injusto por sua misericórdia criadora, revivificando
aquele que estava morto. Sua justiça é graça; ela é justiça ativa, que
“reajusta” o homem curvado, que o restaura, o torna reto. Tal é a revolução que
o cristianismo traz na história das religiões. O Novo Testamento não diz que os
homens se reconciliam com Deus, como deveríamos, de fato, esperar, visto que
foram eles que cometeram a falta, e não Deus. O Novo Testamento afirma, ao
contrário, que é “Deus que, em Cristo, se reconciliava com o mundo” (2 Cor 5,
19). Eis aqui algo realmente inaudito e novo, o ponto de partida da existência
cristã e o centro da teologia neo-testamentária da cruz: Deus não espera que os
culpados venham por si mesmos se reconciliar com Ele, Ele passa na frente deles
e os reconcilia. Nisso se manifesta a verdadeira direção do movimento da
encarnação, da cruz.
Assim, no Novo Testamento, a cruz aparece antes de tudo como um
movimento de cima para baixo. Ela não é a obra de reconciliação que a humanidade
oferece ao Deus encolerizado, mas a expressão do amor insensato de Deus, que se
entrega, que se rebaixa para salvar o homem; ela é sua vinda para junto de nós,
e não o inverso. A partir desta revolução na ideia da expiação, e, portanto, no
eixo próprio da realidade religiosa, o culto cristão e toda a existência cristã
recebem, eles também, uma nova orientação. A adoração no cristianismo consiste
inicialmente na grata acolhida da ação salvífica de Deus. É por isso que a
expressão essencial do culto cristão se chama justamente Eucaristia, ação de
graças.[...]
“Certamente nem tudo
ainda foi dito desta forma. Lendo o Novo Testamento do começo ao fim, somos da
mesma forma obrigados a nos perguntar se, apesar de tudo, ele não descreve a
obra da expiação de Jesus como um sacrifício oferecido ao Pai, se a cruz não é
apresentada como o sacrifício oferecido por Cristo a seu Pai, na obediência. Em
toda uma série de textos, a cruz aparece como o movimento ascendente da
humanidade rumo a Deus, de modo que vemos ressurgir tudo o que acabamos de
afastar. Com efeito, apenas com a linha descendente não se pode entender todos
os dados do Novo Testamento. Porém, então como conceber a relação entre as duas
linhas? Deveremos eliminar uma em favor da outra? E se quiséssemos fazê-lo,
qual critério teríamos para justificar nossa escolha? É evidente que não
poderíamos proceder assim: isto seria tomar arbitrariamente nossa opinião como
critério da fé”. (Cardeal Ratzinger)[44]
Provavelmente não é inútil recordar alguns dos textos desta “série” que
o cardeal menciona sem citar nenhum deles[45]:
“Deus o destinou para ser, pelo seu sangue, vítima de propiciação
mediante a fé. Assim, ele manifesta a sua justiça; porque no tempo de sua
paciência, ele havia deixado sem castigo os pecados anteriores” (Rom 3, 25).
“Se pensamos não ter pecado, nós o declaramos mentiroso e a sua palavra
não está em nós” (I Jo 4, 10).
“Ele é a expiação pelos nossos pecados, e não somente pelos nossos, mas
também pelos de todo o mundo” (I Jo 2, 2).
“Nesse Filho, pelo seu sangue, temos a Redenção, a remissão dos pecados,
segundo as riquezas da sua graça” (Ef 1, 7).
“Sede, pois, imitadores de Deus, como filhos muito amados. Progredi
na caridade, segundo o exemplo de Cristo, que nos amou e por nós se entregou a
Deus como oferenda e sacrifício de agradável odor” (Ef 5, 1-2).
“Porque há um só Deus e há um só mediador entre Deus e os homens: Jesus
Cristo, homem que se entregou como resgate por todos. Tal é o fato,
atestado em seu tempo” (I Tim 2, 5-6).
“Aquele que não poupou seu próprio Filho, mas que por todos nós o
entregou, como não nos dará também com ele todas as coisas?” (Rom 8, 32)
“Cantavam um cântico
novo, dizendo: Tu és digno de receber o livro e de abrir-lhe os selos, porque
foste imolado e resgataste para Deus, ao preço de teu sangue, homens de toda
tribo, língua, povo e raça” (Ap 5, 9).
Como o cardeal reconcilia sua concepção da Cruz, expurgada de toda
dimensão vindicativa, com toda “esta série de textos”?
A satisfação vicária eliminada, o cardeal pode então reinterpretar a
Paixão para reduzi-la ao “absoluto do amor”.
“Não são os touros e uns bodes que interessam a Deus, mas o homem; a
única adoração verdadeira só pode ser o “sim” incondicional do homem. Tudo
pertence a Deus, porém Ele concedeu ao homem a liberdade de dizer “sim” ou
“não, de amar ou de recusar; a adesão livre do amor, tal é a única coisa que
Deus deva esperar; eis a adoração e o “sacrifício” que sozinhos podem ter um sentido.
Ora, este “sim” dado a Deus e pelo qual o homem se restituiu a Deus, não pode
ser substituído pelo sangue dos bodes e dos touros. O Evangelho não disse: “E
que pode dar o homem em troca de sua própria vida?” (Mc 8, 37). Há apenas uma
resposta: nada pode ser dado em compensação do próprio homem.[...]
(Cristo) retirou dos homens suas oferendas para substituí-las por sua
própria pessoa, ofertada em sacrifício, seu próprio Eu. Se o texto afirma,
apesar de tudo, que Jesus cumpriu a reconciliação por seu sangue (9, 12), este
não deve ser entendido como um dom material, como um meio de expiação medido
quantitativamente; ele é apenas a expressão concreta do amor cujo é dito que
ele vai até o extremo (Jo 13, 1), a expressão da radicalidade de sua doação e de
seu serviço; ele traduz o fato de que Cristo não traz nem mais nem menos que
ele próprio. O gesto de um amor que dá tudo, eis unicamente o que constitui,
segundo a carta aos Hebreus, a verdadeira reconciliação do mundo. É por isso
que “a hora” da cruz é o dia da reconciliação cósmica, a verdadeira e
definitiva reconciliação. Não há mais outro culto, não há mais outro sacerdote
senão aquele que oferece este culto: Jesus Cristo.
A essência do culto cristão
A essência do culto cristão não consiste, então, na oferenda de coisas,
nem em uma destruição qualquer, como é repetido incessantemente nas teorias do
sacrifício da missa, desde o século XVI (depois do concílio de Trento?)[46].
Segundo estas teorias, a destruição seria o verdadeiro modo de reconhecer a soberania
de Deus sobre todas as coisas. Todas estas especulações são simplesmente
ultrapassadas pelo advento de Cristo e pela interpretação que a Bíblia oferece
disso. O culto cristão consiste no absoluto do amor, tal que só aquele em quem
o próprio amor de Deus se tornara amor humano poderia oferecê-lo; ele consiste
na forma nova de representação, inclusa neste amor: a saber, que Cristo amou
por nós, e que nos deixamos cativar por ele.[...]
Uma questão novamente levantada, em particular pelas devoções tradicionais
da cruz, é aquela da relação que existe de fato entre o sacrifício (portanto, a
adoração) e o sofrimento. Segundo as reflexões que acabam de ser feitas, o
sacrifício cristão nada mais é que o êxodo do “para”, consistindo em sair de
si, realizado fundamentalmente no homem, que está completamente em êxodo,
superando a si mesmo no amor. O princípio constitutivo do culto cristão é,
portanto, este movimento de êxodo, com sua orientação, dupla e única ao mesmo
tempo, rumo a Deus e rumo ao próximo. Introduzindo o ser do homem junto a Deus,
Cristo o introduz em sua salvação. O acontecimento da cruz é pão da vida “para
a multidão” (Lc 22, 19), visto que o Crucificado remodelou o corpo da
humanidade para lhe dar a forma do “sim” da adoração. Ele é completamente
“antropocêntrico”, completamente ordenado ao homem, porque ele foi radicalmente
teocêntrico, entregando o Eu, e, assim sendo, o ser do homem, a Deus. Ora, uma
vez que este êxodo do amor é a “ec-stase” do homem para fora de si
mesmo, um êxtase onde ele se encontra além de si mesmo e como tendido adiante,
infinitamente além de si mesmo, e como dividido, atraído para além de suas
aparentes possibilidades de desenvolvimento, nesta medida a adoração (o
sacrifício) é, ao mesmo tempo, cruz, sofrimento do rompimento, morte do grão de
trigo, que só pode gerar frutos passando pela morte. Todavia, desta forma vemos
ao mesmo tempo que este elemento do sofrimento é secundário, e resulta de uma
realidade primária que sozinha lhe confere um sentido. O princípio constitutivo
do sacrifício não é a destruição, mas o amor. O sofrimento faz parte do
sacrifício somente na medida em que este amor quebra, abre, crucifica, rasga:
como forma do amor em um mundo marcado pela morte e o egoísmo.
Existe, relativamente
a este assunto, um texto importante de Jean Daniélou, que responde, é verdade,
a uma outra problemática, mas que deveria poder esclarecer mais a ideia que
tentamos destacar: “Entre o mundo pagão e a Trindade bem-aventurada, há apenas
uma passagem, que é a cruz de Cristo. Como nos espantar, então, tão logo
desejamos nos estabelecer neste intervalo e entrelaçar novamente entre o mundo
pagão e a Trindade os fios misteriosos que os unirão, de não poder fazê-lo
senão pela cruz? Devemos nos sintonizar com esta cruz, carregá-la em nós e,
como diz São Paulo do missionário, “trazer sempre em nosso corpo os traços da
morte de Jesus” (2 Cor 4, 10). Esta divisão que nos crucifica, esta
incompatibilidade em nosso coração de carregar ao mesmo tempo o amor da
Trindade santíssima e o amor de um mundo estranho à Trindade santíssima, é a
Paixão própria do Filho único que ele nos chama a compartilhar, Ele que quis
carregar em Si esta separação, para destruí-la Nele, mas só a destruiu porque
inicialmente ele a carregou: ele vai de um extremo ao outro. Sem deixar o seio
da Trindade, ele se estende até as extremas fronteiras da miséria humana e
preenche todo o espaço. Esta extensão de Cristo, cujas quatro dimensões da cruz
são o sinal[47], é a expressão misteriosa de nossa “distensão, e nos sintoniza
nela”"[48]. O sofrimento é, no final das contas, o resultado da expressão
desta extensão de Jesus Cristo, desde a intimidade de Deus até o inferno do
“Meu Deus, por que me abandonastes?” Aquele que distendeu sua existência ao
ponto de estar mergulhado ao mesmo tempo em Deus e no abismo da criatura
abandonada de Deus, se encontra necessariamente dividido, ele é realmente
“crucificado”. Porém, este desmembramento é idêntico ao amor: ele é a
realização “até o extremo” (Jo 13, 1), ele é a expressão concreta da abertura
imensa criada pelo amor. Poderia-se distinguir a partir disso o verdadeiro
fundamento de uma devoção autêntica[!] pela Paixão”. (Cardeal Ratzinger)[49]
Resumamos a tese do cardeal Ratzinger. Deus, infinitamente bom, não pode
ter sacrificado seu Filho único para a remissão de nossos pecados. Se as
Escrituras parecem afirmar o contrário, é porque elas foram mal interpretadas,
por que elas foram objeto de “especulações [...] simplesmente ultrapassadas”.
Elas indicam principalmente que Cristo amou por nós. Se ele também sofreu
durante sua Paixão, isso foi acidentalmente, porque o amor o faz sair de si
mesmo, porque ele se excedeu no amor. Ele entregou seu Eu a Deus e, neste
“ec-stase”, se encontrou dividido. A Paixão é a “incompatibilidade em nosso
coração de carregar ao mesmo tempo o amor da Trindade santíssima e o amor de um
mundo estranho à Trindade santíssima”. Cristo carregou em si esta divisão, esta
separação, e a destruiu. Ele vai de uma extremidade a outra, sua realização se
estende da Trindade às extremas fronteiras da miséria humana. Ele preenche todo
o espaço e nos chama a compartilhar esta Paixão, a nós conformar com ela.
Depois desta exposição da tese do cardeal Ratzinger, inicialmente
buscaremos fazer uma rápida crítica dela de acordo com a doutrina da Igreja, e,
em seguida, mostraremos que estas ideias são tiradas dos temas maçônicos.
O próprio cardeal admite que sua tese está em contradição com “as
teorias do sacrifício da missa” em curso “desde o século XVI”. Estas ideias
podem se conciliar com alguns dos versículos que citamos? Estes textos recordam
claramente que o próprio Deus deu seu Filho como vítima propiciatória por
nossos pecados, que foram redimidos por seu sangue[50]; que a redenção[51] foi
adquirida a um custo elevado. Nada disso figura nos desenvolvimentos do
cardeal. O pecado é totalmente ignorado; o sacrifício propiciatório é,
portanto, inútil. A justiça divina[52], a satisfação vicária[53] e as penas do
inferno são praticamente negadas. Enfim, esta teoria não explica por que Cristo
teve de sofrer a morte mais ignominiosa, a morte sobre a Cruz[54].
O que resta, não mais do dogma, mas da espiritualidade cristã depois de
semelhante “releitura”? O que a espiritualidade da Cruz, a mortificação e a
renúncia, a participação no caminho de Cruz, a imitação de Nosso Senhor Jesus
Cristo[55] se tornam? Se o sacrifício de Nosso Senhor Jesus Cristo é negado ou
diminuído, como podermos nos associar a ele? O que se torna nosso próprio
sacrifício? “Se alguém quiser vir comigo, renuncie-se a si mesmo, tome sua cruz
e siga-me. Porque aquele que quiser salvar a sua vida, perdê-la-á; mas
aquele que tiver sacrificado a sua vida por minha causa, recobrá-la-á” (Mt 16,
24-25).
“Oh! imensa comiseração da vossa graça, imprevisível amor para
conosco: a fim de resgatar o escravo, entregais vosso Filho!” (Exultet).
A interpretação do cardeal impede de entrar no mistério da caridade de Deus e
da Redenção, e o restringe às dimensões de uma filosofia maçônica. Destruição
da ação de graças e da consciência de nossa miséria, da humildade, raiz de
todas as virtudes católicas. Poderíamos naturalmente multiplicar os textos dos
mais espirituais sobre o mistério do sacrifício da Cruz:
“O apóstolo nos ensina que pelo batismo fomos sepultados com Cristo e
que tomamos parte de sua morte. Agora devemos nos constituir uma nova vida.
Sabemos, com efeito, que o velho homem foi crucificado com Cristo, afim que não
sejamos mais escravos do pecado, vivendo com Deus, em Cristo, nosso Senhor”. (Vigília
pascal, renovação das promessas do batismo)
“Sabeis o que é ser espiritual deveras? É fazer-se escravos de Deus,
para que, marcados com o Seu ferrete que é a cruz, pois já Lhe deram a sua
liberdade, os possa vender por escravos de todo o mundo, como Ele o
foi; e não lhes faz nenhum agravo nem pequena mercê” (Santa Teresa
d’Ávila)[56]
“Será bom dizer-vos,
irmãs, qual o fim para que o Senhor fez tantas mercês neste mundo. Ainda
que nos efeitos delas já o tereis entendido, se advertistes nisso,
eu vo-lo quero tornar a dizer aqui, para que não pense alguma que é só
para regalar essas almas, o que seria grande erro; porque Sua Majestade
não no-lo pode fazer maior que em dar-nos vida que seja imitando a que
viveu Seu Filho tão amado; e assim tenho por certo serem estas mercês para
fortalecer a nossa fraqueza – como aqui já tenho dito alguma vez para
podê-Lo imitar no muito padecer” (Santa Teresa d’Ávila)[57].
Conforme as teses panteístas, o cardeal ignora totalmente o pecado e
suas consequências. O pecado é um erro, uma ausência de conhecimento (gnose), a
ignorância da unidade divina, “esta divisão que nos crucifica”[58], cuja
devemos nos libertar e que Cristo teve de “destruí-la em Si”. Suprimindo o
pecado como atentado à honra de Deus e ao seu direito de ser obedecido, suprimem-se
também as penas que resultam dele e o inferno, e acaba-se praticamente por
negar a justiça divina. O pecado se sustenta essencialmente na ilusão da
separação, nesta “incompatibilidade em nosso coração de carregar ao mesmo tempo
o amor da Trindade santíssima e o amor do mundo estranho à Trindade
santíssima”[59], nesta negação da unidade divina que nos separa da Santíssima
Trindade. Como Cristo, então, também o homem deve superar esse erro por via do
amor. Será pelo êxodo, “ultrapassando as próprias fronteiras de si mesmo no
amor”. Como? Por meio da “ec-stase”, “saindo de si”.
Eis a realização gnóstica da identidade suprema, de nossa divindade, não
por participação gratuita naa natureza divina, mas pela tomada de posse
completa da divindade de nossa natureza. Devemos então entender que somos Deus e
o mundo, porque, na verdade, esta distinção é ilusória, visto que devemos,
“entregando o Eu” ao Si divino, entrar na não-dualidade. Esta “Paixão própria
do Filho único que ele nos chama a compartilhar” destrói “esta separação”; “Ele
vai de uma extremidade a outra; sem deixar o seio da Trindade, estende às
extremas fronteiras da miséria humana e preenche todo o espaço. Esta extensão
de Cristo, cujas quatro dimensões da cruz são o sinal característico, é a
expressão misteriosa de nossa distensão e nos sintoniza a ela”. Devemos então compartilhar
nossa “existência a ponto de estarmos ao mesmo tempo mergulhados em Deus e no
abismo da criatura abandonada de Deus”, e compartilhar “esta extensão de Jesus
Cristo, desde a intimidade de Deus até o inferno” visto que nada, nem mesmo o
mal, pode existir fora de Deus. Alcança-se assim a “reconciliação cósmica, a
verdadeira e definitiva reconciliação”, a reintegração dos seres, a
apocatástase, a restauração universal da Cabala, a salvação universal. “O amor
é (então realmente) a “ec-stase” do homem fora de si mesmo, atraído para além
de suas aparentes possibilidades de desenvolvimento (realização)”. O homem é
então “plenamente antropocêntrico”, plenamente ordenado ao homem, visto que ele
foi radicalmente “teocêntrico”.
“Mas então – repetimos – este é o mais homem, o homem verdadeiro, que é
o mais il-limitado (ent-shränkt), que não somente entra em contato com o
infinito – o Infinito – mas é um com ele: Jesus Cristo. Nele, o processo de
hominização chegou verdadeiramente ao seu termo”. (Cardeal Ratzinger) [60][61]
“O ser de Jesus é
pura atualidade das relações ‘a partir de’ e ‘para’. E pelo próprio fato de que
este ser não é mais separável de sua atualidade, ele coincide com Deus; ele se
torna ao mesmo tempo o homem exemplar, o homem do futuro através do qual se pode
perceber quanto o homem ainda é o ser por vir, por realizar, quão pouco o homem
começou a ser ele mesmo”. (Cardeal Ratzinger)[62]
Na verdade, e ainda que eles não tenham consciência disso, todos os
homens já estão salvos. A Cruz sofreu uma reinterpretação hermenêutica. A
Paixão, a cruz que nos crucifica, é “esta incompatibilidade em nosso coração de
carregar ao mesmo tempo o amor da Trindade santíssima e o amor de um mundo
estranho à Trindade santíssima”, é esta “divisão”, este erro que nos esconde a
unidade divina. Para entender a Deus e ao mundo, e antes de alcançar a paz da
ressurreição, o homem deve passar pelo “êxodo do ‘movimento em direção a’: fonte
de grandes cruzes e que também é o ‘verdadeiro fundamento de uma devoção
autêntica pela Paixão’”.
“O sofrimento é no final das contas o resultado da expressão desta
extensão de Jesus Cristo, desde a intimidade de Deus até o inferno do ‘Meu
Deus, por que me abandonastes?’ Aquele que fez um prolongamento de sua
existência, a ponto de ser mergulhado ao mesmo tempo em Deus e no abismo da
criatura abandonada de Deus, se encontra necessariamente dividido, esse é
realmente um ‘crucificado’”. (Cf. supra)
“Ora, uma vez que
este êxodo do amor é a ‘ec-stase’
do homem para fora de si mesmo, um êxtase onde se encontra para além de si
mesmo e como que prolongado à frente, infinitamente além de si, e como
dividido, atraído para além de suas aparentes possibilidades de
desenvolvimento, nesta medida, a adoração (o sacrifício) é, ao mesmo tempo,
cruz, sofrimento do rompimento, morte do grão de trigo, que só pode gerar
frutos passando pela morte”. (Cf. supra)
Notar-se-á o paralelismo assombroso entre estes textos do cardeal e as
teses gnósticas e maçônicas expostas por Guénon:
“Se tapas frequentemente toma o sentido de esforço
árduo ou doloroso, não é porque seja atribuído um valor ou uma importância
especial ao sofrimento enquanto tal, nem que este seja visto aqui como algo que
vá além de um ‘acidente’; mas é porque, pela própria natureza das coisas, o
desprendimento das contingências é forçosamente sempre árduo para o indivíduo, uam
vez que a própria existência deste também diz respeito à ordem contingente. Não
há nada aqui que seja assimilável a uma ‘expiação’ ou a uma ‘penitência’,
ideias que desempenham, ao contrário, um grande papel no ascetismo entendido no
sentido vulgar, e que têm, sem dúvida, sua razão de ser em um certo aspecto do
ponto de vista religioso, mas que não pode manifestadamente encontrar um lugar
no domínio iniciático, nem, a fortiori, nas tradições que não estão revestidas
de uma forma religiosa.
“No fundo, poder-se-ia
dizer que toda ascese verdadeira é essencialmente um ‘sacrifício’, e temos tido
a oportunidade de ver alhures que, em todas as tradições, o sacrifício, sob
qualquer forma que ele se apresente, constitui propriamente o ato ritual por
excelência, aquele no qual se resumem de algum modo todos os demais atos. O que
é assim sacrificado gradualmente na ascese, são todas as contingências, de cujo
ente deve conseguir se desapegar, à maneira de outros tantos laços ou
obstáculos que o impedem de se elevar a um estado superior; porém, se pode e
deve sacrificar estas contingências, é na medida em que estas dele dependem e
fazem, de certo modo e algum título, parte dele mesmo. Como, aliás, a
individualidade é apenas uma contingência, a ascese, em seu significado mais
completo e mais profundo, nada mais é, em última análise, senão o sacrifício do
‘eu’, efetivado para consumar a consciência do ‘Si’”. (René Guénon) [63].
A “relação que existe de fato entre o sacrifício (logo, a adoração) e o
sofrimento” não é, portanto, aquela que São João da Cruz acreditou encontrar
nas noites purificadoras, quando a alma, envolta por trevas, participa da
agonia de Nosso Senhor Jesus Cristo no Gethsemani. A “relação que existe de
fato entre o sacrifício (logo, a adoração) e o sofrimento” provém da realização
de nossa divindade, que nos faz abandonar com dor nosso eu para realizar Deus.
A cruz não é mais o instrumento de nossa salvação, visto que ela manifesta “que
Cristo amou por nós”, visto que ela manifesta esta “admirável aliança de Deus
com a humanidade”. O santo sacrifício da Missa sofreu uma transmutação
alquímica operada pela hermenêutica gnóstica.
“A cruz de Cristo
sobre o Calvário surge no caminho daquele «admirabile
commercium», daquelacomunicação admirável de Deus ao homem, que encerra
o chamamento dirigido ao homem para que, dando-se a si mesmo a Deus e
oferecendo consigo todo o mundo visível, participe da vida divina, e, como
filho adotivo, se torne participante da verdade e do amor que estão em Deus e
vêm de Deus. No caminho da eterna eleição do homem para a dignidade de filho
adotivo de Deus, ergue-se na história a cruz de Cristo, Filho unigênito, que, como
«Luz da Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro» veio para dar o último
testemunho da admirável aliança de Deus com a humanidade, de Deus com o
homem”. (João Paulo II, Dives in misericordia, 7)
O SACERDÓCIO COMUM DOS FIÉIS
Sabe-se que o concílio Vaticano II introduziu uma novidade no ensino
dispensado por Roma: o sacrifício comum dos fiéis[64]. Todo cristão
participaria realmente e não metaforicamente do sacerdócio de Cristo. Esta
afirmação que a Igreja combateu[65], é uma consequência natural da visão
holística panteísta. Se todos os homens são Deus, se “por sua
encarnação, o Filho de Deus se uniu de algum modo a todo homem”, então cada um
é seu próprio sacerdote, seu padre interior, e pode encontrar o Salvador em si
mesmo. Cada um deve se conscientizar de seu caráter sacerdotal (realizá-lo), e,
sendo sacerdote[66], deve se oferecer em sacrifício espiritual a Deus[67]. O
sacerdócio ministerial deve ser reinterpretado; seu papel não é mais então de
representar e de renovar o sacrifício da Cruz, mas de ajudar todos a se
conscientizarem de seu sacerdócio[68]. Essencialmente, cada homem é sacerdote;
o papel do sacerdócio hierárquico é puramente didático – acidental. O padre é
rebaixado ao nível de um simples mestre espiritual do fiel. A missa deve ser
pública para que cada um seja ensinado, tome consciência de seu sacerdócio e de
sua salvação[69].
A estrutura hierárquica e visível da Igreja é imediatamente destruída
ou, ao menos, gravemente diminuída para os defensores de semelhante teoria,
como a história das heresias e do protestantismo o prova superabundantemente.
Este aviltamento da hierarquia conduz à colegialidade, e, em seguida, ao
ecumenismo e à liberdade religiosa: visto que o homem deve encontrar Deus em
si[70], pouco importa o caminho que ele emprega. Esta diminuição iluminista da
mediação da Igreja conduz igualmente à sua redefinição, para lhe restituir sua
amplitude holística: a Igreja de Cristo subsiste na Igreja católica, mas a
ultrapassa por toda parte. O sacerdócio sendo comum, o padre é um simples
presidente que concelebra com a assembléia dos fiéis[71]. O acento é posto
sobre a liturgia da palavra, que atualizaria a presença sacramental, e que hoje
pode ser anunciada por qualquer fiel. A visão holística, a confusão entre a
natureza e a graça se desenvolve assim até seu termo: a confusão entre o padre
e o leigo que não deixa mais subsistir senão uma diferença acidental. O
sacrifício da Cruz é substituído por um sacrifício espiritual que todo fiel
pode oferecer.
A utopia sempre quis conduzir Deus e o paraíso sobre a terra em uma
confusão panteísta que terminaria por negar o indivíduo, certamente divinizado,
porém mergulhado no Grande Todo. O socialismo, o comunismo, a democracia
totalitária, o mundialismo e a doutrina maçônica procedem assim da concepção
holística: destruindo as hierarquias em nome de nossa divindade comum,
destrói-se também o indivíduo em proveito da coletividade, da assembleia dos
fiéis ou do povo de Deus[72]. Por trás de todas as utopias ouve-se o eco destas
palavras de revolta que, desde o princípio, ressoam através dos séculos :
“Sereis como deuses”. “Não servirei”. “Igualar-me-ei ao Altíssimo”.
“Realmente, tornando-nos « filhos de Deus », filhos de adoção, à sua
semelhança nós tornamo-nos ao mesmo tempo « reino de sacerdotes », alcançamos o
« sacerdócio real », isto é, participamos naquela restituição única e
irreversível do homem e do mundo ao Pai, que Ele, Filho eterno 163 e ao mesmo
tempo verdadeiro Homem, operou de uma vez para sempre”. (João Paulo II, Redemptor
hominis, 20)
“Cristo instituiu este enquanto função daquele; ele não é, portanto,
somente hierárquico, mas também “ministerial”: ele deve servir (ministrare)
para que seja mantido e desenvolvido no Povo de Deus tudo o que dá testemunho
de sua participação no sacerdócio de Cristo, em outros termos, esta atitude que
deriva desta participação. Esta atitude, pela qual o homem confia sua própria
pessoa e o mundo a Deus, é a expressão mais simples e mais profunda da fé, o
testemunho interior oferecido ao Deus da criação, da revelação e da redenção”.
(Cardeal Wojtyla)[73]
“O sacerdócio representa o sentido do mundo em sua relação com Deus e,
ao mesmo tempo, o sentido do homem no mundo criado e redimido por Deus. Ele é
um “sacrifício de louvor” que o mundo carrega em si e que ele confia ao homem
para oferecê-lo ao seu Criador. Ele lho confia precisamente porque ele é capaz
de se tornar a expressão viva da glória de Deus (cf. Ps. 116, 17; Hb 13, 15), e
a expressão do serviço que a criação inteira assume para com seu Soberano (Rm
12, 1), tornando-se, por assim dizer, a intermediária e a voz das criaturas”.
(Cardeal Wojtyla)[77]
“O sacerdócio é a
grande oração de todas as coisas: do homem e do mundo”. (Cardeal Wojtyla)[75]
Encontramos todos estes elementos no texto da Lumen gentium,
que define o sacerdócio comum dos fiéis (antes mesmo do sacerdócio hierárquico,
demonstrando a dependência deste último em relação ao primeiro). Notaremos
particularmente a imbricação dos temas do sacerdócio comum dos fiéis e da
Redenção universal.
“Com efeito, os que crêem em Cristo, regenerados não pela força de germe
corruptível mas incorruptível por meio da Palavra de Deus vivo (cfr. 1 Ped.
1,23), não pela virtude da carne, mas pela água e pelo Espírito Santo (cfr. Jo.
3, 5-6), são finalmente constituídos em «raça escolhida, sacerdócio real, nação
santa, povo conquistado… que outrora não era povo, mas agora é povo de Deus» (1
Ped. 2, 9-10).
Este povo messiânico tem por cabeça Cristo, «o qual
foi entregue por causa das nossas faltas e ressuscitado por causa da nossa
justificação» (Rom. 4,25) e, tendo agora alcançado um nome superior a todo o
nome, reina glorioso nos céus. E condição deste povo a dignidade e a liberdade
dos filhos de Deus, em cujos corações o Espírito Santo habita como num templo.
A sua lei é o novo mandamento, o de amar assim como o próprio Cristo nos amou
(cfr. Jo. 13,34). Por último, tem por fim o Reino de Deus, o qual, começado na
terra pelo próprio Deus, se deve desenvolver até ser também por ele consumado
no fim dos séculos, quando Cristo, nossa vida, aparecer (cfr. Col. 3,4) e «a
própria criação for liberta do domínio da corrupção, para a liberdade da glória
dos filhos de Deus» (Rom. 8,21). Por isso é que este povo messiânico, ainda que
não abranja de facto todos os homens, e não poucas vezes apareça como um
pequeno rebanho, é, contudo, para todo o gênero humano o mais firme
germe de unidade, de esperança e de salvação. Estabelecido por Cristo como
comunhão de vida, de caridade e de verdade, é também por Ele assumido como
instrumento de redenção universal e enviado a toda a parte como luz do mundo e
sal da terra (cfr. Mt. 5, 13-16).
Mas, assim como Israel segundo a carne, que peregrinava no deserto, é já
chamado Igreja de Deus (cfr. 2 Esdr. 13,1; Num. 20,4; Deut. 23,1 ss.), assim o
novo Israel, que ainda caminha no tempo presente e se dirige para a futura e
perene cidade (cfr. Hebr. 13-14), se chama também Igreja de Cristo (cfr. Mt.
16,18), pois que Ele a adquiriu com o Seu próprio sangue (cfr. Act. 20,28),
encheu-a com o Seu espírito e dotou-a dos meios convenientes para a unidade visível
e social. Aos que se voltam com fé para Cristo, autor de salvação e princípio
de unidade e de paz, Deus chamou-os e constituiu-os em Igreja, a fim de que ela
seja para todos e cada um sacramento visível desta unidade salutar (15).
Destinada a estender-se a todas as regiões, ela entra na história dos homens,
ao mesmo tempo que transcende os tempos e as fronteiras dos povos. Caminhando
por meio de tentações e tribulações, a Igreja é confortada pela força da graça
de Deus que lhe foi prometida pelo Senhor para que não se afaste da perfeita
fidelidade por causa da fraqueza da carne, mas permaneça digna esposa do seu
Senhor, e, sob a ação do Espírito Santo, não cesse de se renovar até, pela
cruz, chegar à luz que não conhece ocaso.
Cristo Nosso Senhor,
Pontífice escolhido de entre os homens (cfr. Hebr. 5, 1-5), fez do novo povo um
«reino sacerdotal para seu Deus e Pai» (Apor. 1,6; cfr. 5, 9-10). Na verdade,
os baptizados, pela regeneração e pela unção do Espírito Santo, são consagrados
para serem casa espiritual, sacerdócio santo, para que, por meio de todas as
obras próprias do cristão, ofereçam oblações espirituais e anunciem os louvores
daquele que das trevas os chamou à sua admirável luz (cfr. 1 Ped. 2, 4-10). Por
isso, todos os discípulos de Cristo, perseverando na oração e louvando a Deus
(cfr. Act., 2, 42-47), ofereçam-se a si mesmos como hóstias vivas, santas,
agradáveis a Deus (cfr. Roma 12,1), dêem. testemunho de Cristo em toda a parte
e àqueles que lha pedirem dêem razão da esperança da vida eterna que neles
habita (cfr. 1 Ped. 3,15)” (Vaticano II, Lumen gentium 9 e 10).
Compreende-se então toda a extensão destas palavras do cardeal Wojtyla:
“De certo forma, pode-se dizer que a doutrina do sacerdócio de Cristo e
da participação do homem nesse sacerdócio está no centro próprio do ensino do
Vaticano II e contém, de certo modo, tudo o que o Concílio queria dizer da
Igreja, da humanidade e do mundo.
É somente sobre a
base das verdades relativas ao sacerdócio de Cristo, ao qual todo o Povo de
Deus tem parte, que o Concílio enuncia a “subordinação” mútua entre o
sacerdócio de todos os fiéis e o sacerdócio hierárquico”. (Cardeal Wojtyla)[76]
Lê-se nos catecismos para crianças: “a missa é um mistério”. Mistério
sobrenatural da correspondência do Verbo feito carne, que representa e renova
sacramentalmente e realmente seu sacrifício sobre os altares, imagem da
liturgia celeste, que vem a nós para que desde já tenhamos a vida eterna. para
que desde já permaneçamos nele e ele em nós: “Quem come a minha carne e bebe o
meu sangue tem a vida eterna; e eu o ressuscitarei no último dia. Pois a
minha carne é verdadeiramente uma comida e o meu sangue, verdadeiramente uma
bebida” (Jo 6, 54-56).
BERNARDIN, Pascal. Le crucifiement de saint Pierre.
La Passion de l’Église. Tradução de: Robson Carvalho. Paris, Éditions
Notre-Dame des Grâces, 2009, c. I, p.218-250.
__________
[1] Ou quase, se se
quer respeitar a história oficial que mascara por vezes fenômenos
consideráveis.
[2] Etienne
Couvert, De la gnose à l’oecuménisme, Chiré-en-Montreuil, Éditions
de Chiré, 2001, p.63 sq.
[3] Breve
exame crítico da nova missa, apresentado por Paulo VI pelos cardeais
Ottaviani e Bacci, suplemento especial da Introïbo, nº 95, Angers, associação
Noël Pinot.
[4] Fraternidade
sacerdotal São Pio X, Le problème de la réforme liturgique, La
messe de Vatican II et de Paul VI; Étude théologique et liturgique, Étampes,
Clovis, 2001.
[5] § 7. Edição
original de 1969.
[6] Breve exame
crítico, op. cit., p. 5.
[7] Lumen
gentium 28.1; Sacrosanctum Concilium 47, 102.1,106.
[8] Breve
exame crítico, op. cit., p. 10.
[9] Pio XII, Mediator
Dei.
[10] O papel da
maçonaria sobre este ponto foi evidenciado por Dom Lefebvre em La messe
de toujours, Étampes, Clovis, 2005, p.387.
[11] Louis Bouyer, Le mystère pascal, Paris,
Les éditions du cerf, 1957, p. 44, 96, 132, 133, 135, 142, 143, 186, 190, 197,
222, 315, 327, 366, 377.
[12] O
problema da reforma litúrgica, p. 55.
[13] Os
confessionários são então abandonados.
[14] O
problema da reforma litúrgica, p. 58.
[15] Ibid., p. 66.
[16] João Paulo
II, Dives in misericordia, nº 3.
[17] Jean-Hervé
Nicolas, Synthèse dogmatique. De la Trinité à la Trinité. Éditions
universitaires, Fribourg, 1985, p. 635.
[18] Chega-se assim a
afirmar que o Povo de Deus é o corpo físico e não místico de Cristo, opinião
condenada por Pio XII na Mystici Corporis. Cornelia R.
Ferreira e John Vennari, World Youth Day, From Catholicism to
Counterchurch, Toronto, Canisius Book, 2005, p. 54.
[19] O
problema da reforma litúrgica, p. 109.
[20] Ibid., p. 114.
[21] Odon Casel, Le mystère du culte,
Paris, Cerf, collection Lex orandi, 1964, p.300.
[22] O
problema da reforma litúrgica, p. 71 sq.
[23] Odon Casel, Le mystère du culte,
op. cit., 1964, p.319.
[24] ST, I-II, q. 85,
a.1.
[25] ST, III, q.62.
[26] Este
resvalamento do real rumo ao espiritual é característico da gnose.
[27] Livius, X, 38
ss.
[28] Livius XXXIX,
15, 13.
[29] Metamorfoses,
XI, 15.
[30] Iniciado nos
pequenos mistérios.
[31] Em itálicos no
texto.
[32] Odon Casel, Le mystère du culte,
Paris, Cerf, collection Lex orandi, 1964, p.114 e 115.
[33] Idib., p. 108 e
123. Assim como Karol Wojtyla, Sources of Renewal, op. cit., p. 83.
[34] Odon Casel, Le mystère du culte dans
le christianisme, op. cit., 1946, p.25.
[35] Odon Casel, Le mystère du culte
dans le christianisme, op. cit., 1946, p.21 e 22.
[36] Todo o
historicismo também é contido nesta palavra.
[37] Odon Casel, Le mystère du culte,
1946, p.34.
[38] Idib., p.319.
[39] Em acordo com a
doutrina guenoniana.
[40] O
problema da reforma litúrgica, op. cit., p. 58.
[41] Odon Casel, Le mystère du culte,
op. cit., p. 109 e 110.
[42] Para um estudo
detalhado desta opinião do cardeal, ver: Monseigneur Bernard Tissier de
Mallerais, Le mystère de la rédemption selon Benoît XVI, Le sel de
la terre, Avrillé, Hiver 2008-2009, nº 67, p. 22-54.
[43] A satisfação
vicária designa a satisfação que o Salvador ofereceu à justiça divina em nosso
lugar.
[44] Cardeal Ratzinger, La foi chrétienne
hier et aujourd’hui, op. cit., p.197 sq.
[45] Ver também: I Pe
1, 18-18; 2, 24; Ef 2, 14-18; 5, 25; Mt 20, 28; Mc 10, 45; Jo 11, 50; Col 1,
14-22; Hb 2, 17-18; 7, 24-27; 9, 15; 9, 24-28; 10, 9-14; Is 53; I Cor 5, 7; 6,
20; 7, 23; 15, 3; Rom 4, 25; 5, 6-10; Gal 2, 20; Tit 2, 14.
[46] Notar-se-á, com
efeito, o parentesco entre as teses do cardeal e aquelas dos
protestantes.
[47] Ver R.
Guénon, Le symbolisme de la Croix, op. cit.
[48] J.
Daniélou, Essai sur le Mystère de l’Histoire, Éd. du Seuil, 1953,
p.329.
[49] Cardinal Razinger, La foi chrétienne
hier et aujourd’hui, op. cit., p. 201 sq.
[50] Concílio de
Trento, 5º sessão, c. 3. DS 1513.
[51] Ver DTC, artigo
Redenção.
[52] Concílio de
Trento, 14º sessão, c. 8 e 9. Cânon sobre o santíssimo sacramento da
penitência, nº 13. DS 1689 sq e 1713.
[53] ST, III, q.48,
a.2. DS 539.
[54] Conviria estudar
as ligações entre o pensamento de Abelardo e o do cardeal. Cf. DS 722 sq.
[55] P.
Garrigou-Lagrange, L’Amour de Dieu et la Croix de Jésus, op. cit.,
p.526 sq.
[56] Santa Teresa
d’Ávila, Le château de l’âme, VII demeures, c.4. Tradução do Padre
Marcel Bouix, s.j.
[57] Ibid.
[58] Louis
Bouuer, Le mystère pascal, op. cit., p.187 e 190 sq.
[59] Enquanto que o
Senhor não rezou pelo mundo.
[60] Cardeal Ratzinger, La foi catholique
hier et aujourd’hui, op. cit., p.159.
[61] Cf Dz. 256
(concílio de Éfeso).
[62] Cardeal Raztinger, La foi catholique
hier et aujourd’hui, op. cit., p.153.
[63] René Guénon, Initiation et réalisation
spirituelle, op. cit., p.160 sq.
[64] Ver em
particular os esclarecedores estudos do abbé Jean-Michel Gleize, em La
religion de Vatican II, Études théologiques, Premier symposium de
Paris, 4-5-6 octobre 2002, Éditions des Cercles de Tradition de Paris, 2003,
p.206 sq et 218 sq.
[65] Pio XII, Mediator
Dei.
[66] Hb 5, 1. Ver
também DS 1764.
[67] Pio XII, Mediator
Dei.
[68] Karol
Wojtyla, Sources of Renewal, op. cit., p.227.
[69] Ibid., p.97.
[70] Vaticano
II, Gaudium et spes, 14.
[71] Institutio
generalis, 2003, nº 16.
[72]
[73] Karol
Wojtyla, Sources of Renewal, op. cit., p.227.
[74] Cardeal Wojtyla, Le
signe de contradiction, op. cit., p. 165.
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