DESTAQUE
Nas igrejas francesas do período
medieval tardio, “bacias das almas” eram irmandades criadas para angariar
fundos que financiassem missas em favor das almas do purgatório.
Na tradição católica as almas do purgatório
estavam em situação particularmente desfavorável. Estavam na antecâmara
do Paraíso, mas sofriam punições idênticas às do Inferno, e da sua posição
entre os dois não tinham mais como oferecer ofertas, jejuns e penitências de
modo a expiar os seus próprios pecados. Para diminuir a extensão da sua pena
tinham de depender da boa vontade dos vivos.
Isto é o que diz A aplicação dos méritos em As
divinas gerações:
Este é um componente fundamental da noção
católica de purgatório: a ideia de que os méritos dos cristãos vivos podem
ser aplicados na compensação dos pecados não ressarcidos dos cristãos
mortos, de modo a acelerar a sua entrada no Paraíso. Isso se faz oferecendo-se
missas, ofertas e orações — não aos mortos, mas em favor deles.
*** *** ***
A
verdadeira origem (e também algumas falsas) da expressão ‘na bacia
das almas’
Por Paulo Brabo
A beleza das expressões populares está em que para
usá-las ninguém precisa saber a sua origem – muito menos saber ao certo o que
significam. O que quer dizer exatamente vender
alguma coisa “na bacia das almas?” O que o noticiário quer dizer com “a
seleção se classificou na bacia das almas?”
Para o Houaiss, a expressão quer dizer simplesmente
“a custo extremamente baixo”, o que cobre o primeiro sentido acima, mas não o
segundo. O Aulete assinala o sentido de “situação dramática, desesperadora,
crítica”, e nisso parece mais próximo do uso popular. Ambos, porém, são
superados pela definição do Plínio, em sua contribuição (de resto anônima) no Dicionário Informal:
Último momento,
última oportunidade oferecida como piedade, quando outras oportunidades
foram deixadas ou esquecidas anteriormente.
Essa definição tem a dupla vantagem de cobrir todos
os usos, e de remeter ainda à origem da expressão. Porque, em seu sentido
original, a bacia das almas era o recurso final dos que não tinham quaisquer
outros recursos.
Bassin des âmes,
a matriz francesa
Nas igrejas francesas do período medieval tardio,
“bacias das almas” eram irmandades criadas para angariar fundos que financiassem
missas em favor das almas do purgatório.
Na tradição católica as almas do purgatório
estavam em situação particularmente desfavorável. Estavam na antecâmara
do Paraíso mas sofriam punições idênticas às do Inferno, e da sua posição entre
os dois não tinham mais como oferecer ofertas, jejuns e penitências de modo a
expiar os seus próprios pecados. Para diminuir a extensão da sua pena tinham de
depender da boa vontade dos vivos.
Este é um componente
fundamental da noção católica de purgatório: a ideia de que os méritos
dos cristãos vivos podem ser aplicados na compensação dos pecados não ressarcidos
dos cristãos mortos, de modo a acelerar a sua entrada no Paraíso. Isso se faz
oferecendo-se missas, ofertas e orações — não aos mortos, mas em
favor deles.
Essa aplicação dos
méritos é a transação que faz a fila do purgatório andar. Se não contarem
com a intervenção indenizadora dos vivos, as almas do purgatório terão
de purgar suas dívidas através de seus próprios sofrimentos, processo que é
tão dolorido quanto demorado. Nessas horas vale mais ter um amigo na terra do
que um no céu.
No ressarcimento dos débitos do purgatório,
não havia moeda mais forte do que o sacrifício da missa. As famílias ricas
ofereciam diversas missas em favor dos seus mortos, mas [o oferecimento das] missas
era (por assim dizer) um negócio caro. Os pobres ofereciam em favor dos mortos
orações e outras penitências, mas no que dizia respeito ao enorme potencial
de ressarcimento das missas, estavam descobertos.
A bacia das almas era o recurso dos que não tinham
outro recurso.
Na Europa do século XIV, quando a ideia de purgatório
alcançava popularidade sem precedentes e o sentimento popular em favor
das “almas santas e aflitas” do purgatório era fortíssimo, muitos movimentos
religiosos se organizaram para aliviar os apuros desses desfavorecidos.
A igreja [de Saint
Martin] mantinha também um bom número de “bacias” para a arrecadação de ofertas,
que eram dedicadas a entidades espirituais (Bacia das almas do purgatório,
Bacia de NotreDame) ou a causas sociais (Bacia do l’HôpitaldesPauvres, Bacia de
l’Ouvre)1.
Nas igrejas francesas a bacia das almas do purgatório era tanto um
recipiente de coleta (um prato ou bacia em que as ofertas eram recolhidas)
quanto um fundo coletivo de doações:
Em 1530, Jean
Tabaux, padre, e Pierre, seu irmão, fundaram uma pensão anual em favor da bacia
das almas do purgatório da igreja de Valence, e doaram, para esse fim, uma
vinha na jurisdição de Valence, conhecida como Quinze Ventos, defronte à
vinha de Jean de Boyer, etc.
[...] Em 1527,
Sans e Pierre de Boyer, irmãos, doaram, à bacia das almas do purgatório da
igreja de Valence, a casa, campos, vinhedos e florestas conhecidos como Bazin2.
Em seu estudo Lesprêtresdupurgatoire (XIVe et XVesiècles) a
medievalista Michelle Fournié recapitula as características da
instituição:
A bacia das almas do purgatório da catedral Saint-Alain
de Lavaur é, como as outras associações da mesma espécie, uma espécie de
confraria sem confrades, um organismo piedoso administrado por quatro representantes
leigos eleitos por um ano. Seus nomes aparecem anualmente no cabeçalho das
suas prestações de contas, e assumem seus cargos no Natal.
Esses
representantes fazem circular durante as missas um prato de ofertas ou
bacia/bassin, na qual recolhem as ofertas
dos fiéis. Eles administram, além disso, as propriedades “do purgatório”;
vendem ou adquirem bens imobiliários e anuidades, recebem o censo das vassalagens,
o aluguel dos arrendatários, as doações testamentárias e por vezes a
herança integral de doadores generosos.
A bacia das almas
do purgatório tem uma vocação particular: a celebração de missas pelas
almas do purgatório, celebração que se apoia sobre um calendário
litúrgico original.
As bacias atravessam
o Atlântico
A prática e a instituição da bacia das almas foi,
também,adotada em Portugal – onde, segundo a Dra. Adalgisa Arantes Campos
(UFMG), “a devoção às almas do purgatório contou com uma vitalidade
ímpar”, – e dali é que chegou ao Brasil.
As Constituiçoens Primeiras do Arcebispado da Bahia,
que regulamentam na Colônia as decisões do Concílio de Trento, recomendam:
“(…) encomendamos
muito que tratem desta devoção das Confrarias; e de servirem, e venerarem
nellas aos Santos, principalmente á do Santíssimo, e do nome de Jesus, á
de N. Senhora, e das Almas do Purgatório, porque estas Confrarias he bem
as haja em todas as Igrejas.”
No Brasil, como em Portugal, as bacias das almas
estavam associadas à devoção a São Miguel, arcanjo tido como protetor das
almas do purgatório. Esta é ainda Adalgisa Arantes Campos, falando sobre a
veneração às almas na Minas Gerais do século XVIII:
A evangelização
ocorre às custas dos próprios leigos que, assentando-se socialmente, erigem
as irmandades, responsáveis pelo culto e pela edificação dos templos
mineiros. [...] Naquela rude sociedade teve grande pujança a sociabilidade
confrarial, voltada para as obras de misericórdia entre os próprios
irmãos. Trata-se da caridade entre os pares. Apenas as irmandades de São
Miguel e Almas reservavam parte das esmolas recebidas – as bacias das almas – para a celebração de
missas para as almas do Purgatório.
A prática e a irmandade encontraram modo de
perpetuar-se pelos séculos. EmEsaú e Jacó, escrito
em 1904 mas falando de um Brasil de alguns anos antes, Machado de Assis
apresenta um “irmão das almas”, figura que percorre o Rio de Janeiro com uma
bacia de ofertas, trajando uma opa (túnica usada por membros das irmandades
religiosas) e pedindo esmolas em favor dos mortos:
Os mesmos sapatos
de um irmão das almas, que ia a dobrar a esquina da Rua da Misericórdia para
a de S. José, pareciam rir de alegria, quando realmente gemiam de cansaço. Natividade
estava tão fora de si que, ao ouvir-lhe pedir: “Para a missa das almas!” tirou
da bolsa uma nota de dous mil-réis, nova em folha, e deitou-a à bacia. A irmã
chamou-lhe a atenção para o engano, mas não era engano, era para as almas do
purgatório.
De “bacia das
almas” a “na bacia das almas”
A parte mais interessante dessa história é também
aquela que seria mais imprudente tentar retraçar: como a prática de caridade
tornou-se expressão popular – mas o próprio cenário sugere associações a que
é difícil resistir.
O aspecto mais tocante, a respeito da condição das
almas do purgatório, constantemente explorado na literatura religiosa a
respeito do assunto, era a sua falta de autonomia. Tratava-se de gente boa que
estava sofrendo sem poder fazer coisa alguma para melhorar a sua condição, e
essa falta de agência despertava a pena que era o gatilho das doações.
Ninguém ignorava, porém, que as almas sofriam no
purgatório porque haviam deixado de usar sua autonomia quando estavam entre
os vivos. Se em vida tivessem oferecido orações, ofertas e outras santas abstenções,
poderiam ter evitado o purgatório por completo ou reduzido consideravelmente
a sua pena.
Esse era na verdade um grande incentivo psicológico em favor da doação de fundos para a causa da bacia
das almas: os que doavam estavam usando
a sua agência, e cada oferta era creditada como mérito em favor do doador. Cada
doação representava menos culpas a serem expiadas numa eventual passagem
futura pelo purgatório, ou uma chance a mais de evitá-la. Deitar ofertas frequentes
na bacia das almas era também evitar ter de um dia lançar mão desse derradeiro
auxílio.
A bacia das almas era o recurso dos que não tinham
outro recurso, mas precisamente porque tinham deixado passar oportunidades
melhores. A mesma lógica se aplica a alguém que vende uma propriedade ou a
um time que se classifica “na bacia das almas”: trata-se de recorrer a uma
solução dramática e longe do ideal, ao último recurso, porque as oportunidades
ótimas ficaram para trás.
ADENDO NA BACIA
DAS ALMAS: A história das invenções
Uma história de origem não precisa ser factual para
ser interessante, e ninguém sabe disso mais do que a internet. Quem precisa
ter acesso às fontes quando a imaginação está sempre à mão?
Seguem uma ou outra história interessante que a
internet conta sobre a origem da expressão. O que importa que não sejam
factuais, quando estamos falando de alguma coisa “na bacia das almas”?
► Baccinumanimæ
Do
latim baccinumanimæ. As almas, sendo imateriais,
incorpóreas e incolores, não ocupam lugar. Elas nunca estão, elas são. Já o
baccinumera, naqueles tempos em que o latim era obrigatório porque os
bárbaros ainda não haviam inventado o inglês, um lugar no qual eram depositados
os objetos/as coisas a serem guardados. Havia um baccinum para cada finalidade,
obedecendo a formas, tamanhos e, sempre que possível, cores diferentes, a
fim de que um baccinum destinado ao coccinare não viesse a ser usado, antes,
como urinol. E vice-versa (convenhamos, mais versa que vice).
Ora, dizer “leve
esse objeto à bacia das almas”, como é fácil perceber, significava “vá
pentear macacos” ou “vá ver se eu estou na esquina”.
Essa explicação (que encontrei aqui)
esteve por anos arquivada neste sáite, não porque acreditássemos nela, mas
pela sua malemolência muito satisfatória, sua vontade de convencer e de
zombar ao mesmo tempo.
Na verdade, e se viesse ao caso, em latim “bacia”
se diria “bassinum”, não “baccinum”.
Curiosamente, outro modo de se dizer “bacia das
almas” em latim é pelvim animæ3 .
A expressão foi realmente usada por autores cristãos que escreviam em latim –
não no sentido atual ou para referir-se às almas do purgatório, mas como
evocação poética. Exemplo: “derramar a água das Escrituras na bacia da alma/mittuntaquam de Scripturis in pelvim animae”4 ou “água colocada na bacia das nossas almas/aquaquammittamos in pelvim anima nostra”5. Outras ocorrências aqui.
Ainda mais curioso é que parece ter sido nesse
sentido poético que Luiz Antonio de Assis Brasil usou a expressão que dá nome a seu
romance Bacia das Almas(1981):
– A noite do Sabá,
anão, é aquela de que todos devemos participar, uma vez na vida; é a noite
em que nos apercebemos de que existimos e nos tornamos conhecedores da
verdade. É a noite da confissão, desmanchamento, queda do paraíso. Horrível
noite, da qual acordamos novos, ressuscitados e limpos, lavados na bacia
das almas.
► A
bacia da Extrema Unção
A expressão provém
dos preparativos para o sacramento da Extrema Unção, quando a bacia em que
se colocavam os óleos, unguentos e paramentos do sacerdote ficavam ao lado do
moribundo.
Essa história de origem comparece também ela no Dicionário Informal. Não tem qualquer fundamento, mas é repetida em
outros lugares da net sem muita reflexão (por exemplo aqui e aqui),
como é o costume.
Fonte: Bacia das almas
NOTAS
1. Gallargues Le Montueux, L’Eglise Saint Martin. [↩]
2. Revue de Gascogne, Volume 11. [↩]
3. Pélvis e bacia são sinônimos também no corpo
humano, veja a coerência da coisa toda. [↩]
4. São Jerônimo.
[↩]
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