DESTAQUE
O protestantismo
nasceu sob o signo do racionalismo, que, principalmente a partir do teólogo
franciscano inglês Guilherme de Occam (1300 – 1350), vicejou então nos meios
católicos, e foi fazendo o seu caminho até ser mais tarde, por assim dizer,
codificado pelo filósofo francês René Descartes (1596-1650) em seu tristemente
célebre Discurso sobre o método.
A fé em Jesus Cristo é necessária à salvação, é claro! Mas se eu tenho
fé em Cristo Jesus, devo ser coerente em seguir os seus mandamentos, e,
portanto, praticar as boas obras que ele mandou! Que sentido faz ter fé em
Jesus Cristo e não conformar a vida aos seus ensinamentos? Por isso disse Jesus
aos fariseus: “E vós também, por que transgredis o mandamento de Deus?
[...] Hipócritas, bem profetizou de vós Isaías, dizendo: Este povo honra-me com
os lábios, mas o seu coração está longe de mim” (Mt 15, 3 e 7-8). E no
Evangelho de São João (14, 15): “Se me amais, observai os meus
mandamentos”. De onde conclui São João: “Quem diz que O conhece [a
Deus], e não guarda os seus mandamentos, é um mentiroso e a verdade não está
nele”(I Jo 2, 4).
[...] o homem é justificado pelas obras, e não pela fé somente [...]
Porque, assim como o corpo sem espírito é morto, assim também a fé sem obras é
morta” (Tg 2, 14-26).
É que as boas obras são dispostas por Deus no nosso caminho, isto é, Ele
é Quem nos dá o impulso (a graça) para as praticarmos, de modo que a fonte
delas vem toda da graça de Deus. Nem por isso Deus dispensa a nossa
predisposição à cooperação, sem a qual Ele não nos salva. Essa cooperação ––
portanto, fruto da graça –– é necessária, e conseqüentemente meritória para
alcançarmos a salvação. Daí a frase lapidar do grande Santo Agostinho: "Qui creavit
te sine te, non salvabit te sine te" (Aquele que te criou sem tua
cooperação, não te salvará sem tua cooperação) (Serm. 169, XI; PL 38,
923).
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A Palavra do Sacerdote
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Pergunta — A paz de Cristo. Gostaria de expressar através
destas linhas minha discordância quanto às explicações referentes às
perguntas feitas quanto às passagens que se referem ao ladrão na cruz e à
parábola do rico e de Lázaro. O Apóstolo São Paulo, um dos formadores da
espinha dorsal da doutrina do Novo Testamento, é bem nítido em suas palavras
em Efésios (cap. 2, vers. 8 e 9: “Porque pela graça sois salvos, mediante a
fé, e isto não vem de vós, é dom de Deus. Não vem das obras, para que ninguém
se orgulhe”. Fica claro, neste e em muitos outros textos do Novo Testamento,
que o único elemento necessário à salvação do homem é a fé em Cristo Jesus.
“Mas a todos quantos o receberam, aos que Crêem [sic, em maiúscula] no seu
nome, deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus” (Evangelho de João,
cap. 1, vers. 12). Vale ainda mencionar as palavras de Paulo em Romanos cap.
3, vers. 16: “Sabemos, contudo, que o homem não é justificado pelas obras da
lei, mas sim pela fé em Jesus Cristo. Nós também temos crido em Cristo Jesus,
para sermos justificados pela fé em Cristo e não pelas obras da lei, pois
pelas obras da lei ninguém será justificado”. Desde já agradeço a atenção. Na
graça de Cristo Jesus.
Resposta — A presente seção de Catolicismo tem
por finalidade a orientação e formação dos católicos; portanto, é a eles
primordialmente dirigida. Curiosamente, ela tem sido lida também por
protestantes, que têm manifestado frequentemente sua discordância, às vezes
em termos agressivos, outras vezes em termos cordatos, como é o caso da
presente missiva. Pareceu-nos conveniente, como exceção, aproveitar o ensejo
para apontar aos que nos leem um dos equívocos fundamentais da exegese
protestante, que os leva a não aceitar a interpretação católica das Sagradas
Escrituras. Quiçá isso possa ajudar as almas retas que entre eles existam a
reencontrar o caminho da verdade e aceitar o ensinamento da Igreja.
Mentalidade racionalista levou ao
protestantismo
O protestantismo nasceu sob o signo do racionalismo, que,
principalmente a partir do teólogo franciscano inglês Guilherme de Occam
(1300 – 1350), vicejou então nos meios católicos, e foi fazendo o seu caminho
até ser mais tarde, por assim dizer, codificado pelo filósofo francês René
Descartes (1596-1650) em seu tristemente célebre Discurso sobre o
método. A meio caminho, o racionalismo infectou o frade agostiniano
Martinho Lutero (1483-1546), que criou o protestantismo.
O racionalismo se caracteriza por uma simplificação artificial do
raciocínio, que o inabilita a perceber a realidade em toda sua complexidade,
cheia de nuances e matizes. Como alguém que quisesse desenhar uma curva com
uma sequência de segmentos retos... Não sem razão, Pascal comparou-o ao
raciocínio geométrico (esprit geométrique), em oposição ao espírito de
finura (esprit de finesse), que sabe captar e se conformar à
multiplicidade de aspectos dos entes, fatos e situações.
A carta que estamos analisando está voltada a defender a conhecida
tese protestante da sola fide, que tínhamos impugnado nesta
seção no nº 655 de Catolicismo (em julho do ano passado).
Isto é, a falsa tese de que “o único elemento necessário à salvação
do homem é a fé em Cristo Jesus”, como afirma o missivista.
Consequentemente, para ele, como para os protestantes em geral, não há
necessidade das boas obras para alcançar a salvação: o indivíduo pode pecar à
vontade, cometer os maiores crimes; se tiver fé, se salvará. É uma doutrina
muito cômoda, mas falsa, e evidentemente não leva à salvação. O missivista
aduz em sua defesa dois textos de São Paulo, que analisaremos em seguida.
A fé, se não tiver obras, é morta
em si mesma
Antes de fazê-lo, porém, convém apontar desde logo a falta de bom
senso do raciocínio, característico da mentalidade racionalista. A fé em
Jesus Cristo é necessária à salvação, é claro! Mas se eu tenho fé em Cristo
Jesus, devo ser coerente em seguir os seus mandamentos, e, portanto, praticar
as boas obras que ele mandou! Que sentido faz ter fé em Jesus Cristo e não
conformar a vida aos seus ensinamentos? Por isso disse Jesus aos
fariseus: “E vós também, por que transgredis o mandamento de Deus?
[...] Hipócritas, bem profetizou de vós Isaías, dizendo: Este povo honra-me
com os lábios, mas o seu coração está longe de mim” (Mt 15, 3 e 7-8).
E no Evangelho de São João (14, 15): “Se me amais, observai os meus
mandamentos”. De onde conclui São João: “Quem diz que O conhece [a
Deus], e não guarda os seus mandamentos, é um mentiroso e a verdade não
está nele”(I Jo 2, 4).
O Apóstolo São Tiago resume toda essa doutrina de modo lapidar: “Que
aproveitará, irmãos meus, se alguém diz que tem fé e não tem obras?
Porventura poderá salvá-lo tal fé? [...] Assim, também a fé, se não tiver
obras, é morta em si mesma. [...] Mas queres tu saber, ó homem vão, como a fé
sem obras é morta? Abraão, nosso pai, não foi ele justificado pelas obras,
oferecendo seu filho Isaac sobre o altar? Tu vês que a fé cooperava com as
suas obras; e que a fé foi consumada por meio das obras. [...] Vedes, pois,
que o homem é justificado pelas obras, e não pela fé somente? [...] Porque,
assim como o corpo sem espírito é morto, assim também a fé sem obras é morta” (Tg
2, 14-26).
O trecho é tão concludente, que Lutero, para salvar a doutrina que
inventara, teve a desfaçatez de excluir a Epístola de São Tiago da lista dos
livros canônicos... Exclusão inútil, pois, como vimos, ela nada mais é do que
a conclusão lógica das palavras de Nosso Senhor relatadas por São Mateus e
São João, que citamos no parágrafo anterior.
De que obras fala o Apóstolo São
Paulo?
Não obstante, São Paulo afirma taxativamente que “pelas obras
da lei não será justificado nenhum homem diante dele [de Deus]” (Rom.
3, 20). E mais adiante: “Porquanto sustentamos que o homem é
justificado pela fé, sem as obras da lei” (Rom 3, 28). [Nossas
referências à Sagrada Escritura diferem das do missivista, pois naturalmente
ele utilizou uma versão protestante, com outra numeração dos versículos].
“Aí está –– bradará o missivista –– a doutrina de Paulo contradiz a de
Tiago!”.
A exegese católica, diante dessa aparente contradição, analisa
profundamente o texto em questão, para ver exatamente em que contexto se
encaixam as palavras de um e outro Apóstolo, pois não há contradição na
doutrina revelada.
Ora, lendo o trecho todo de São Paulo, vê-se que ele não está falando
das boas obras de modo geral, mas sim de certos preceitos da lei mosaica que
cabia aos judeus observar, e que alguns destes, já convertidos ao
cristianismo, queriam que os gentios também convertidos observassem — como a
circuncisão, por exemplo —, ao que São Paulo se opunha. Essa questão foi
levada a São Pedro e demais Apóstolos reunidos em Jerusalém, os quais, no chamado
Concílio de Jerusalém, o primeiro concílio da Igreja, resolveram de acordo
com o parecer de São Paulo (cfr. Act 15, 1-34).
À luz destes esclarecimentos, releiamos São Paulo: “Onde está
pois, [ó judeu] a tua glória? Foi excluída. E por que lei?
Pela das obras? Não; mas pela lei da fé. Porquanto sustentamos que o homem é
justificado pela lei da fé, sem as obras da lei. Porventura Deus só o é dos
judeus? Não o é ele também dos gentios? Sim, certamente ele o é também dos
gentios; porque há um só Deus, que justifica pela fé os circuncidados, e que
também pela fé justifica os incircuncisos. Destruímos nós, pois, a lei com a
fé? Longe disso; antes confirmamos a lei” (Rom 3, 27-31).
Mais adiante, prossegue São Paulo: “Também David proclama
bem-aventurado o homem a quem Deus atribui a justiça sem obras [...].
Ora, esta bem-aventurança é somente para os circuncidados, ou também para os
incircuncisos? Porquanto dizemos que a fé foi imputada a Abraão como justiça.
Como lhe foi ela, pois, imputada? Depois da circuncisão ou antes da
circuncisão? Não foi depois da circuncisão, mas antes dela. E recebeu o sinal
da circuncisão como selo da justiça, recebida pela fé antes da circuncisão, a
fim de que fosse pai de todos os crentes incircuncisos, para que também a
eles lhes seja imputada a justiça” (Rom. 4, 6 e 9-11).
Fica claro que as obras, às quais São Paulo se refere, são aqueles
preceitos legais (cerimoniais) que os judeus deviam observar como ratificação
de sua Aliança com Deus, como a circuncisão, repetidamente mencionada, a qual
não havia necessidade de impor aos gentios convertidos. Quanto aos Dez
Mandamentos da Lei de Deus, dados a Moisés no Monte Sinai, constituem uma
síntese da Lei Moral, que tanto circuncisos quanto incircuncisos devem
observar. O que resulta na prática de boas obras. Não há, pois, contradição
entre São Paulo e São Tiago.
O outro trecho alegado pelo missivista é da Epístola de São Paulo aos
Efésios: “Porque é pela graça que fostes salvos, mediante a fé, e
isto não vem de vós, porque é um dom de Deus, não vem das vossas obras, para
que ninguém se glorie” (Ef 2, 8-9).
Aqui temos um exemplo típico do vezo protestante de isolar uma frase
da Escritura e começar a raciocinar a partir dela, sem verificar o contexto.
Ora, bastaria que o missivista tivesse lido o versículo seguinte, para
perceber que Deus não dispensa a prática das boas obras: “Porque
somos obra sua, criados em Jesus Cristo para boas obras, que Deus preparou
para caminharmos nelas” (Ef 2, 10).
Qual é a interpretação autêntica deste versículo, dada pela Igreja
Católica? É que as boas obras são dispostas por Deus no nosso caminho, isto
é, Ele é Quem nos dá o impulso (a graça) para as praticarmos, de modo que a
fonte delas vem toda da graça de Deus. Nem por isso Deus dispensa a nossa
predisposição à cooperação, sem a qual Ele não nos salva. Essa cooperação ––
portanto, fruto da graça –– é necessária, e consequentemente meritória para
alcançarmos a salvação. Daí a frase lapidar do grande Santo Agostinho: "Qui creavit
te sine te, non salvabit te sine te" (Aquele que te criou sem
tua cooperação, não te salvará sem tua cooperação) (Serm. 169,
XI; PL 38, 923).
Como se vê, estamos diante de raciocínios um tanto complexos, pouco ao
gosto da mentalidade racionalista, mas nem por isso deixam de ser inteiramente
verdadeiros!
E-mail do autor: conegojoseluiz@catolicismo.com.
Fonte: Catolicismo |
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