Encontrava-me em Roma fazia mais de dois anos, sem ter tido a ventura de ver de perto a impressionante figura de Pio x, cuja fama de santidade se ia espalhando graças aos muitos milagres que lhe eram atribuídos.
Vira-o, é verdade, porém, de longe, quando do alto da janela do “Cortile San Damaso” ou quando, levado na “Sedia Gestatoria”, entrava na Basílica de São Pedro a distribuir bênçãos às multidões que o aclamavam. Nessas ocasiões, fazia um gesto para impor silêncio aos mais exaltados, que gritavam: “Evviva il papa Re”.
Em junho de 1914, porém, iria eu ter a auspiciosa oportunidade de ser recebido por Pio X, em audiência particular.
Dom Duarte Leopoldo e Silva, meu arcebispo, e Dom Alberto José Gonçalves, Bispo de Ribeirão Preto, tinham vindo a Roma em visita “ad limina”. Ambos seriam recebidos pelo Papa, em dias diferentes. Como Dom Alberto não houvesse trazido consigo um secretário, fui eu designado para acompanhá-lo.
No dia e hora aprazados, estávamos na ante-sala do gabinete particular do Papa. Nem bem havíamos chegado, já se apresentava Mons. Samper, camareiro-secreto de Pio X, para, dirigindo-se a Dom Alberto, dizer-lhe:
- V. Exa. Revma. pode entrar, e o senhor, – apontando para mim – espera aqui.
Vinte minutos depois, o mesmo Mons. Samper surgia para me avisar:
- O Santo Padre deseja vê-lo. Ao entrar na sala – continuou -, o senhor faz uma genuflexão no limiar, outra no meio e a terceira perto do Papa, e não lhe beije os pés, porque Sua Santidade não o permite.
Fui presa de intensa emoção porque, enquanto ficara esperando, lera, nos jornais do dia, um grande milagre que Pio X fizera ainda na véspera.
Era costume serem recebidos, na semana da Páscoa, a fim de obterem do Papa a bênção nupcial, os membros da nobreza romana que se haviam casado durante a Quaresma.
Na véspera, um casal de príncipes conseguira uma audiência particular. Atacado de reumatismo gotoso, Pio X – que não podia permanecer muito tempo de pé – atendia, muitas vezes, sentado numa poltrona.
Ao entrar na sala, em que se achavam os príncipes, o Papa notou que a esposa, tendo uma criança nos braços, chorava copiosamente. Ordena que ambos se sentem lado a lado dele. E, dirigindo à princesa, pergunta
- Por que chora, minha filha?
- Santo Padre, responde ela, há dois anos estivemos aqui para receber a bênção nupcial, e esta minha filha, que é o primeiro fruto do nosso matrimônio, está atacada de paralisia infantil… E as lágrimas se lhe deslizavam pelas faces.
- Deixe-me vê-la, pede o Papa. A mãe trêmula de emoção, entrega-lhe a filha. Pio X põe-na de pé sobre seus joelhos, por alguns instantes e, restituindo-a à mãe, diz:
- A senhora está enganada. Sua filhinha não sofre de nada … Experimente faze-la andar e verá …
Com espanto e alvoroço de alegria, os pais viram a filha caminhar normalmente. Estava de todo curada!
Sob essa forte impressão é que entrei na sala. Ao contemplar Pio X, reclinado sobre uma escrivaninha americana, todo de branco, com seus dois olhos grandes, cheios de um misto de doçura e de melancolia, voltados para mim, como que a querer esquadrinhar-me a alma, caí de joelhos, como se estivesse diante de uma aparição.
Vendo que não me levantava do lugar – porque se me esvaíram as forças – Pio X, num gesto largo, com a palma da mão virada para cima, ordena-me em italiano
- “Alzatevi”.
Reunindo todas as minhas energias, levantei-me, cambaleando, para ir cair de joelhos a seus pés.
Observando a minha grande comoção, procura o Papa tranqüilizar-me, brincando comigo como se eu fosse uma criança.
- “Parlate italiano?”
- Si, Santo Padre.
- “Siete italiano”?
- No. . . Ia completar a frase, quando ele me interrompe, enumerando uma após outra estas nacionalidades.
- “Francese, spagnolo, tedesco, inglese?”
Diante dos meus sucessivos “no”, exclama:
- Allora cosa siete?
- “Sono brasiliano, Santo Padre”.
- “Brasiliano! … Ma Come… Se non siete nero!”
A admiração do Papa, ao ver um brasileiro de pele clara, de cabelos castanho-escuros, explicava-se pela impressão que, dias antes, lhe causara uma peregrinação, chefiada por Dom Silvério Gomes Pimenta – o piedoso Arcebispo de Mariana, também ele com fama de santo – que era de pele escura, acompanhado de vários monsenhores e de senhoras de cor.
- “Allora, brasiliano bianco … Cosa studiate?”
Era costume chamar de filósofos os estudantes de filosofia e de teólogos os que estudavam teologia. Por isso, com a maior naturalidade, respondi
- “Sono filosofo, Santo Padre”.
- “I miei rispetti” – disse sorrindo e, tirando o barrete e a olhar para Dom Alberto que a tudo assistia admirado, acrescenta:
- “Siamo dinanzi a un altro Aristotele, un altro San Tommaso d’Aquino!”
- “Voglio dire che sono studente di filosofia emendei-me confuso.
- “Ma, si … Ho capito … il Papa sta scherzando … Cosa desiderate?” – pergunta-me.
Além de uma porção de terços para serem bentos, trazia escondida uma bênção papal para a qual pretendia obter um autógrafo de Pio X, a fim de oferecê-la à minha professora, Dona Sinhazinha, que, naquele ano, festejava seu jubileu de prata de professorado.
Ao saber que fora ela que despertara em mim a vocação para o sacerdócio, não hesitou uni instante: tomou a caneta e escreveu:
Pius Papa X.
- “C’é altro da desiderare?” – pergunta ainda.
Na semana seguinte devia eu prestar exames de Filosofia na Gregoriana. Os examinadores estavam sendo rigorosos, distribuindo reprovações em penca e asseveravam que o faziam por ordem de Sua Santidade, disse eu ao Papa.
- “Si, è vero” – respondeu-me.
Disse-lhe, então que, na próxima semana, iria prestar exames e temia pela minha sorte. Queria, pois pedir-lhe uma bênção, mas, a frase em italiano, de que me servi para consegui-la, revelou, sem eu querer, a minha íntima presunção.
- “Santo Padre, voglio una benedizione per riuscire bene ín tutti i miei esami! . . . ”
Era como pedir uma bênção, não para passar nos exames e sim, para fazê-lo com grande brilho.
Por isso, quando o Papa – que vinha brincando comigo – se concentrou por alguns segundos, preparei-me para ouvir com toda a humildade um sermão sobre os efeitos perniciosos do orgulho. Pio X, porém, não levando em conta a desastrada forma de me expressar, pronunciou esta impressionante frase, que nunca mais pude esquecer:
- “Non voglio favorire la pigrizia, purchè studiate benediró tutti i vostri esami”.
Tirando o barrete da cabeça, deu-me a bênção trina do Pontifical. Colocando, depois, as mãos sobre a minha cabeça, com os olhos voltados para o céu, perguntou-me
- “Siete soddisfatto?”
Os maravilhosos efeitos dessa bênção iriam manifestar-se em todos os exames que, nos cinco anos seguintes, prestaria eu na Gregoriana.
Foi, contudo, na defesa de tese para a obtenção da láurea em Teologia que, mais extraordinariamente, senti a presença da bênção daquele que, cinco anos atrás, havia falecido.
Sentado diante dos meus examinadores, tendo sobre a mesa, que nos separava, a Patrística, numa edição de 10 volumes, e mais o Antigo e Novo Testamento e o Encheridion, durante vinte minutos, dissertei sobre o ponto sorteado, sendo em seguida argüído pelos examinadores.
Como o ponto, que a sorte me indicara, fora o do Primado do Pontífice Romano, um dos examinadores, contestando a minha argumentação, afirmou:
- A Igreja Oriental jamais admitiu esse Primado que o sr. acaba de conferir à Igreja de Roma.
- A Prima Clementis, repliquei – cuja análise foi objeto de minha exposição sobre o Primado do Bispo de Roma – é a prova mais convincente de que já, no século I, o Oriente como o Ocidente reconheciam em Roma o Primado de jurisdição. Se não como explicar a intervenção de Roma na Igreja de Corinto para repor em suas funções os membros do presbitério depostos por uma sedição, sendo ela obedecida sem contestação alguma? Nesse episódio, o que torna ainda mais patente a supremacia de Roma é o fato de, estando ainda vivo o apóstolo João, em Éfeso, não ter este intervindo, quando seria tão natural que o fizesse na sua qualidade de apóstolo, sendo maior a relação entre Éfeso e Corinto do que entre Roma e Corinto.
Poderia, igualmente, citar a Carta de Inácio de Antioquia à Igreja de Roma, na qual diz textualmente ser a que “preside no lugar da região dos romanos”. Muitos outros Padres da Igreja Oriental poderiam ser lembrados, notoriamente Efrém, o que, com mais eloqüência, falou sobre o Primado do Bispo de Roma.
Com um sorriso de desafio, o examinador aponta-me para a Patrística e declara:
- Duvido que encontre na Patrística esse seu aludido testemunho de Efrém.
A Patrística, em que eu havia estudado era a de uma edição de cinco volumes. A que estava diante de meus olhos espraiava-se em 10 volumes, deitados de três em três. Não me seria possível descobrir imediatamente em que volume dessa edição poderia eu encontrar o citado testemunho.
Olho para os três volumes, que estavam bem na minha frente e invoquei a proteção de Pio X:
- Meu bom Pio X, o Senhor sabe que eu estudei. Mas, não na edição desta Patrística. Fiz a minha parte. Agora toca a sua vez.
Tomo o volume que estava entre os dois e abro-o na metade. Um calafrio de pavor percorre-me toda a espinha dorsal… Lá estava no alto da página: “Discurso de Santo Efrém sobre a Soberania do Pontífice Romano!. .. ”
Fonte: Reminiscências de um Pároco da Cidade
Monsenhor Francisco Bastos
Arquidiocese de S. Paulo
(1892-1984)
Nenhum comentário:
Postar um comentário