Os jornalistas estão adotando a
primeira pessoa na narrativa, mas ainda não acharam seu verdadeiro eu lírico
LUÍS ANTÔNIO GIRON
Luís Antônio Giron Editor da seção Mente Aberta de ÉPOCA, escreve sobre os principais fatos do universo da literatura, do cinema e da TV (Foto: ÉPOCA) |
Como o tempo muda e nada acontece! Antigamente, o
iniciante no jornalismo, chamado de “foca”, comparecia humildemente à redação
para seu primeiro dia de emprego disposto a aprender com os mais velhos. Ouvia
calado até um dia poder falar. Hoje, o “foca” se apresenta ao chefe na redação
de uma revista ou um jornal já botando banca: “Foca é a sua mãe”, diz, enchendo
o peito. “Eu sou autor!” Mas as coisas continuam iguais. Hoje ele apenas
exterioriza aquilo que seu tímido antecessor apenas calava fundo.
No jornalismo atual, é como se o
autor precedesse o estilo, ao passo que o inverso parece ainda ser real.
Vivemos a epidemia da “autoralidade”, esta palavra monstruosa cuja tradução
teria de ser “autoria”, porém é muito simples para fazer bonito. Pensei nesse assunto durante um
exaltado debate em torno do tema “como encontrar a voz do repórter” de que
participei no último Fórum das Letras de
Ouro Preto, na semana passada, em um painel promovido por ÉPOCA e a
Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop). A plateia, formada em sua maioria
por estudantes e iniciantes, queria saber como manter a “autoralidade” em
tempos de hiperinformação, fragmentação do ego, redes sociais e o diabo digital
que nos carregue. O que dizer aos jovens sonhadores sem acordá-los de seu
recorrente autoengano? Como construir um estilo e se transformar em autor?
Sempre tive pudor de usar a primeira pessoa do
singular, embora a esteja usando agora que está tudo liberado e não tenho
nenhuma reputação a perder. Muita gente imagina que basta
escrever “eu” para virar autor, repórter, articulista, crítico, ensaísta. Talvez eu tenha passado a pensar
assim também, embora sem muita convicção. Talvez eu me veja também como membro
do clero do “jornalismo literário” – outra expressão imprecisa que mais exalta
certos indivíduos do que diz a verdade. Dessa forma, o clamor do estilo não sai
mais apenas da garganta dos escritores, como também dos jornalistas – que nunca
foram considerados dignos de receber a alcunha de escritores, sabe-se lá por
que – e de seus atuais sucedâneos, blogueiros e tuiteiros.
Todo mundo quer ser alguém na vida da escrita – e
migrar seus textos da blogosfera ou do papel perecível para a presumível
eternidade do livro. A consequência é o perigo da hiperpopulação de egos no
mundo da comunicação. Todos escrevem qualquer coisa, mas poucos merecem ser
chamados de autores. O problema é que, em um mundo onde o joio virou o trigo,
bons e maus autores estão cada vez mais misturados e indistinguíveis.
Como se não bastasse, os meios de comunicação
digital incentivaram a aparição do gigantesco coral de bilhões de vozes. O
Twitter é o maior transmissor de opiniões e notícias irrelevantes jamais
cogitado. O Facebook forneceu identidade e deu eco a muita gente que,
felizmente, prefere ficar nos games da rede social. Antigamente
evitava-se dar voz ao imbecil. Hoje, imbecis ou não, todos possuem um meio de
expressão e de autopromoção. O imbecil é o herói emergente da autoralidade...
Então, para que servem o jornalista propriamente
dito, o jornalista pré-literário, diante de tantas mudanças? Ele diferia até
pouco tempo atrás do autor porque ele era um apanhador de fatos.
transformava-os em notícia, de acordo com os vários subgêneros jornalísticos:
entrevista, reportagem, artigo, resenha etc. O tema impunha o gênero a ser
adotado. As redações eram as melhores escolas de estilo e escrita criativa.
Agora os registros de linguagem e de veracidade se confundem, e é impossível
distinguir um ficcionista de um não-ficcionista, um romancista de um repórter.
Os cursos universitários de ficção criativa talvez sejam responsáveis pela
lambança. Afinal, acadêmicos odeiam jornalista. Para eles, não passam de
subliteratos. E agora com a internet, o veículo primordial da transmissão de
notícias, a verificação da realidade se tornou impraticável.
É fácil ser autor. Difícil é escrever. As festas
literárias o comprovam.
O jornalismo, por isso, talvez seja um profissão
fadada à extinção – pelo menos o jornalismo que conhecemos até o final dos anos
1990. Por enquanto, agoniza mas não morre, como o samba segundo Nelson
Sargento. Alguns jornalistas poderão sobreviver. Para tanto, precisam se dar
conta de pelo menos três fatos. Em primeiro lugar, não há mais diferença entre
textos online e offline, entre papel e internet. A versão em papel se tornou
uma espécie de produto nobre, que surge no ambiente universal da internet. Em
segundo, a influência dos meios de comunicação tradicionais – jornal, revista,
televisão – ainda é efetiva, mas está diminuindo, à medida que os fóruns de
opinião se organizam em “trend topics” e os anúncios se transferem para a
internet. Por fim, bem ou mal, hoje todo mundo comenta notícias
instantaneamente, a concorrência só aumenta.
Para vencer em mundo tão
turbulento, o jornalista precisa se antecipar aos “trend topics” e, se não
consegue o furo, lidar com a notícias de modo a surpreender o leitor para
despertá-lo da letargia em que está enredado pelo excesso de mensagens. É se transformar em uma espécie
de autor de verdade (não um arremedo) com voz própria que, além de ser
original, se faça ouvir. Ele tem que apurar, conferir, editar e ilustrar uma
notícia, mas sobretudo precisa se reinventar e reinventar a forma de elaborar a
notícia. Deve inovar de acordo com os novos meios – por que não, por exemplo,
escrever uma grande reportagem nos 140 caracteres de um tuite? E tem que ser
rigoroso e relevante, e ser lembrado no ambiente hiperveloz de informações que
logo caem no esquecimento.
O jornalista não pode cair na tentação de virar um
autor de ficção. Deve contentar-se em escrever romances de não-ficção, termo
forjado por Truman Capote em 1966, com o hoje clásssico A sangue frio. Seu dever é mostrar ao leitor e ao público
que o mundo real continua a existir – e que a realidade é mais complexa do que
a vida online faz crer.
(Luís Antônio Giron escreve às quintas-feiras.)
Fonte: Época
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