Até o Concílio Vaticano II, dizia-se: extra ecclesiam nulla salus (“Fora da Igreja, não há salvação”).
Ao que parece, essa verdade inconteste vem cedendo lugar a outra afirmação (será este o único dogma da Igreja nova?): Fora da fidelidade à consciência, não há salvação!
Não é essa a mais perfeita “revivescência” do modernismo, condenado por São Pio X há mais de um século?
Raphael de la Trinité
‘A reta razão’
A capacidade de conhecer o bem objetivo mediante a
consciência subjetiva é expressa pelo catolicismo com o conceito clássico de sindérese,
definido pelo Catecismo como
"a percepção dos princípios da moralidade" (art. 1780; cf. também Santo Tomás de Aquino, Summa theologiae, I, q. 79, a. 12). O termo vem do
latim, synderesis, que
reproduz o grego syneidesis, isto é,
precisamente "consciência". A sindérese expressa a capacidade
luminosa de cada consciência humana de reconhecer o bem, mesmo prescindindo do
próprio interesse e das diversas circunstâncias históricas e geográficas — a
capacidade de saber se se está fazendo o bem ou não, ou seja, a capacidade de
juízo responsável, a qual é fundada na liberdade efetiva de que gozamos.
Normalmente, segundo essa acepção, fala-se em "luz da consciência" ou
“voz da consciência". As expressões “consciência pesada” ou “remorso de
consciência”, por exemplo, são empregadas em sentido afim. Noutros termos,
visto que a nossa consciência conhece os princípios básicos da Lei Natural,
sempre que nos desviamos da observância dos mesmos, o “tribunal” da consciência
(ou seja, “a reta razão”) nos acusa. A isso Nosso Senhor se refere quando
afirma: “Não julgueis segundo a aparência, mas julgai segundo a reta justiça”.
(Jo, 7, 19 a 30).
A tradição católica é clara a esse respeito. Assim diz a Bíblia: "A consciência de um homem às vezes
costuma perceber melhor do que sete sentinelas colocadas no alto para
espiar" (Eclesiástico, 37, 14). Na mesma direção afirma São Paulo: "Tudo o que não vem da consciência
é pecado" (Romanos 14, 23). Nosso Senhor, igualmente, disse: "Por que
não julgam por si o que é certo?" (Lucas 12, 57).
Contudo, uma objeção primeira se levanta: pode ocorrer que
acha um choque entre o que diz a consciência, de um lado, e o que preceitua a Fé, de outro?
Há
incompatibilidade entre razão e fé?
A fé e
razão não se opõem entre si, porque ambas procedem de Deus; são como que dois
raios que têm um só foco de luz. Ensina o Concílio Vaticano I (Sessão III,
capítulo IV): o mesmo Deus, que revelou os mistérios e nos comunica a fé,
infundiu no espírito humano a luz da razão. Ora, Deus não pode negar-se a si
mesmo; sendo a própria verdade, não pode contradizer-Se. Aquilo que é
verdadeiro nunca poderá entrar em contradição com a mesma verdade.
A razão
natural é uma luz que Deus nos
concedeu para adquirir os conhecimentos abarcados pela ordem natural, e, como
lampejo da luz divina, descortina, de forma prodigiosa, as verdades naturais
mais recônditas.
A fé,
por sua vez, é também uma luz; porém,
luz superior, sobrenatural, a qual
nos desvenda as coisas que, embora se achando fora de Deus e pertencentes à
ordem natural, Deus Se dignou revelar-nos. Dentre estas, muitas não podemos
conhecer; relativamente a outras, estribados tão-só com nossas forças naturais,
nem mesmo somos capazes de suspeitar de sua existência.
Certas
realidades estão muito acima de nossa razão, mas não são contrárias à mesma. Podemos exemplificar com o seguinte
paralelo: são como o telescópio para os olhos — ou seja, aquilo que a olho nu
não se pode ver nem alcançar, graças ao telescópio torna-se acessível à nossa
visão.
As contradições que os
inimigos da Religião Católica afirmam haver entre a fé e a ciência, ou entre a
fé e a razão, são apenas aparentes.
Com efeito, eis a lição que nos proporciona o supracitado Concílio Vaticano I:
essa (falsa) oposição só se verifica quando os dogmas da fé não são compreendidos
e expostos de acordo com a doutrina e o espírito da Igreja, ou, quando os
caprichos da imaginação humana são tidos como axiomas pela razão.
Ao
contrário do que afirmam pessoas mal intencionadas ou mal informadas, a razão
jamais será compelida — nem por Deus, nem pela Igreja — a aceitar sem provas a
Revelação, como se a inteligência devesse curvar-se à força aos ditames de uma
fé nebulosa ou enigmática.
Ao
contrário, a Sagrada Escritura nos admoesta a “não crer em qualquer espírito
sem provar que vem de Deus” (1ª João, IV, 1).
Fiel à
máxima de São Paulo, segundo o qual todos os nossos atos de culto devem ser
feitos em conformidade com a razão (Rom. XII, 1), a Igreja ensina que o ato de
fé é obséquio razoável. Significa: a)
um ato de culto em serviço ou louvor à Divindade; b) realizado em concordância
com a razão.
Para
isso, não é indispensável que as verdades da fé sejam evidentes por si (evidência da verdade); basta que
estejamos seguros quanto à autoridade da pessoa que as formula (evidência da credibilidade da verdade).
Sábios ou ignorantes a todo instante acreditamos cegamente em muitas realidades
da ordem natural que não compreendemos, ou não somos capazes de demonstrar.
Contudo, ao admitirmos tais realidades, fazemo-lo porque temos a convicção
segura de que outros homens já as comprovaram. Eis o que pede a razão.
Um
exemplo característico é a fé de Abraão. Deus lhe prometera numerosa descendência.
Mais tarde, porém, mandou-lhe imolar o seu filho único. Como explicar esse
paradoxo? Abraão não hesitou, pondo-se logo a executar a ordem divina, pois
estava convicto acerca da veracidade de Deus, isto é, tinha plena certeza de
que Ele manteria a palavra, como de fato sucedeu. Conforme sabemos, no último
momento, o anjo enviado por Deus reteve o cutelo de Abraão, impedindo-o de imolar
Isaac.
Como
atuam os modernistas em face disso?
Eis
como o Papa São Pio X relata o quadro:
Diante
deste incognoscível, seja que ele se ache fora do homem e fora de todas as
coisas visíveis, seja que ele se ache oculto na subconsciência do homem, a
necessidade de um quê divino, sem
nenhum ato prévio da inteligência, como o quer o fideísmo, gera no ânimo já
inclinado certo sentimento particular, e este, seja como objeto seja como causa
interna, tem envolvida em si a mesma realidade divina e assim, de certa
maneira, une o homem com Deus. É precisamente a este sentimento que os
modernistas dão o nome de fé e tem-no como princípio de religião. http://www.vatican.va/holy_father/pius_x/encyclicals/documents/hf_p-x_enc_19070908_pascendi-dominici-gregis_po.html [grifos
nossos]
A
Igreja Católica sempre rejeitou o fideísmo, isto é, a vontade de acreditar
contra a razão.
Santo
Agostinho, junto com muitos outros autores cristãos, é testemunha de uma fé que
se exercita com a razão, que pensa e convida a pensar. Neste caminho, Santo
Anselmo dirá, em seu Proslogion, que a fé católica é fides quaerens
intellectum, e que a busca da inteligência é um ato interior do acreditar. Será
especialmente São Tomás de Aquino quem lidará com a razão dos filósofos,
mostrando a força fecunda e sempre nova do empenho racional que inunda o
pensamento humano a partir dos princípios e das verdades da fé cristã.
A fé
católica é razoável e tem confiança na razão humana. O concílio Vaticano I, na
constituição dogmática Dei Filius, disse que a razão é capaz de conhecer com
certeza a existência de Deus através da criação, e que apenas a fé tem a
oportunidade de conhecer “facilmente, com certeza absoluta e sem erro “(DS
3005) as verdades sobre Deus, à luz da graça. O conhecimento da fé, pois, não é
contrário à razão.
O Papa
Francisco e a “consciência”
Em face
disso, pergunta-se: será que cada um pode seguir a sua concepção
do bem e do mal, firmando-se em sua própria consciência?
"A
questão para quem não crê em Deus está obedecer à própria consciência",
escreveu o papa a Scalfari. E aqui a acusação é de subjetivismo, porque, se
cada um deve fazer o que a sua consciência lhe dita como bem e combater o que
ela lhe aponta como mal, desapareceria o bem entendido como valor objetivo,
haveria uma espécie de imunidade e de impenetrabilidade em relação ao juízo da
consciência, a Igreja perderia a sua função de guia e de controle das almas,
não haveria mais bem graça nem pecado, e não restaria nada mais do que uma
"luta de todos contra todos, uma luta estrênua, por ser realizada pelo bem
e não pelo ganho ou por outro contingente". Segundo De Marco, é por isso
que as visões particulares "devem ser reguladas por um soberano",
isto é, por uma autoridade externa, sejam as leis humanas, ou a lei de Cristo,
que "não tem nenhuma nuance concessiva em termos individualistas".
Reiterando
o mesmo pensamento, o Papa Francisco, em seu documento recém-lançado, afirma: Os não-cristãos fiéis à sua consciência podem,
por gratuita iniciativa divina, viver “justificados por meio da graça de Deus” e,
assim, “associados ao mistério pascal de Jesus Cristo”. http://www.vatican.va/holy_father/francesco/encyclicals/documents/papa-francesco_20130629_enciclica-lumen-fidei_po.html
Pergunta-se: Quem decide
o que é certo e o que é errado?
A Igreja deixou de ser
mestra infalível da verdade?
Até o Concílio Vaticano II,
dizia-se: extra ecclesiam nulla salus (“Fora da Igreja, não há salvação”).
Ao que parece, essa
verdade inconteste vem cedendo lugar a outra afirmação (será o único dogma da
Igreja nova?): Fora da fidelidade à consciência, não há salvação!
Não é essa a mais
perfeita “revivescência” do modernismo, condenado por São Pio X há mais de um
século?
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