quinta-feira, 5 de março de 2015

A filial resistência de São Bruno de Segni ao Papa Pascoal II


DESTAQUE



Não vem ao caso, aqui, definir a natureza das censuras teológicas aplicáveis aos erros de Pascoal II e João XXII, mas analisar a liceidade de se resistir a tais erros, os quais certamente não correspondiam a sentenças pronunciadas ex cathedra. A teologia e a história nos ensinam que, se uma declaração do Sumo Pontífice contém elementos censuráveis no plano doutrinário, é lícito — e pode até ser obrigatório — criticá-la, mesmo que não se trate de uma heresia formal, expressa solenemente. Foi o que fizeram São Bruno de Segni contra Pascoal II e os dominicanos do século XIV contra João XXII. Com sua atitude, eles não erraram, mas os Papas daqueles tempos, os quais, aliás se retrataram antes de morrer.

[...] resistiram aos Papas que se desviavam da Fé foram precisamente os mais ardentes defensores da supremacia do Papado. Os prelados oportunistas e servis da época adaptaram-se ao flutuar dos homens e dos acontecimentos, antepondo a pessoa do Papa ao Magistério da Igreja. Bruno de Segni, nas pegadas de outros campeões da ortodoxia católica, antepôs, pelo contrário, a fé de Pedro à pessoa de Pedro e redarguiu a Pascoal II com a mesma firmeza respeitosa com que Paulo resistiu a Pedro (Gál. 2, 11-14).

Em seu comentário exegético de Mt. 16, 18, São Bruno explica que o fundamento da Igreja não é Pedro, mas a fé cristã confessada por Pedro. Cristo afirma, de fato, que Ele edificará a sua Igreja não sobre a pessoa de Pedro, mas sobre a fé que Pedro manifestou dizendo: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo”. A esta profissão de fé, Jesus responde: “É sobre esta pedra e sobre esta fé que edificarei a minha Igreja” (Comment.. in Matth., Pars III, cap. XVI, in PL, vol. 165, col. 213).

Elevando Bruno de Segni à honra dos altares, a Igreja chancelou a sua doutrina e o seu comportamento.

 

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Por Roberto de Mattei | Tradução: Fratres in Unum.com – Entre os mais ilustres protagonistas da reforma da Igreja nos séculos XI e XII, destaca-se a figura de São Bruno, bispo de Segni e abade de Monte Cassino.

Bruno nasceu em torno do ano 1045 em Solero, perto de Asti, no Piemonte. Depois de ter estudado em Bolonha, foi ordenado sacerdote no clero romano e aderiu com entusiasmo à reforma gregoriana. O Papa São Gregório VII (1073-1085) nomeou-o bispo de Segni e o teve entre os seus mais fiéis colaboradores. Também seus sucessores Vitor III (1086-1087) e Urbano II (1088-1089) valeram-se da colaboração do bispo de Segni, que unia aos seus trabalhos de estudioso um intrépido zelo apostólico em defesa do Primado romano.

Bruno participou dos concílios de Piacenza e de Clermont — no qual Urbano II convocou a primeira Cruzada — e mais tarde foi legado da Santa Sé na França e na Sicília. Em 1107, sob o novo Pontífice Pasqual II (1099-1118), tornou-se abade de Monte Cassino, cargo que fazia dele uma das personalidades eclesiásticas mais destacadas de seu tempo. Grande teólogo e exegeta, resplandecente pela doutrina, como escreve em seus Anais o cardeal Barônio (tomo XI, ano 1079), é considerado um dos melhores comentadores medievais das Sagradas Escrituras (Réginald Grégoire,  Bruno de Segni, exégète médiéval et théologien monastique, Centro Italiano di Studi sull’Alto Medioevo, Spoleto, 1965).

Sua época foi cheia de choques políticos e de profunda crise espiritual e moral. Na obra De Simoniacis, Bruno oferece-nos uma imagem dramática das deturpações da Igreja de seu tempo. Já no tempo do Papa São Leão IX (1049-1054) “mundustotus in maligno positus erat (todo o mundo estava sob o poder do maligno): não havia mais santidade; a justiça estava em decadência e a verdade sepultada. Reinava a iniquidade, dominava a avareza; Simão o Mago possuía a Igreja, os Bispos e os sacerdotes entregavam-se à volúpia e à fornicação. Os sacerdotes não se envergonhavam de tomar mulher, de abertamente contrair núpcias e matrimônios nefandos. (…) Tal era a Igreja, tais eram os Bispos e os sacerdotes, tais foram alguns dos Romanos Pontífices” (cf. S. Leonispapae Vita inPatrologia Latina (PL), vol. 165, col. 110).

No âmago da crise, além do problema da simonia e do concubinato dos sacerdotes, havia a questão da investidura dos bispos. O DictatusPapae, com o qual, em 1075, São Gregório VII havia reafirmado os direitos da Igreja contra as pretensões imperiais, constituiu a magna carta à qual apelavam Vítor III e Urbano II. Mas Pascoal II abandonou a posição intransigente de seus predecessores e tentou de todas as maneiras um acordo com o futuro imperador Henrique V. No começo de fevereiro de 1111, em Sutri, ele pediu ao soberano alemão que renunciasse ao direito de investidura, oferecendo-lhe em troca a renúncia da Igreja a todos os direitos e bens temporais. As negociações esvaneceram-se como fumaça e, cedendo às intimidações do imperador, Pascoal II aceitou um compromisso humilhante, assinado em Ponte Mammolo, em 12 de abril de 1111. O Papa concedia a Henrique V o privilégio da investidura dos bispos, antes mesmo da sagração pontifícia, com o anel e o báculo que simbolizavam tanto o poder temporal quanto o espiritual, prometendo ao soberano de jamais excomungá-lo. Pascoal coroou então Henrique V em São Pedro.

Essa concessão levantou uma multidão de protestos na Cristandade, porque contrariava a posição de São Gregório VII. O abade de Monte Cassino, segundo o ChroniconCassinense (PL, vol. 173, col. 868 C-D), protestou com força contra o que ele então definiu não como um privilegium, mas um pravilegium [NdT: jogo de palavras contrapondo um privilégio legítimo ao favorecimento do mal – pravus]e promoveu um movimento de resistência ao lapso papal. Numa carta endereçada a Pedro, bispo de Porto, ele definiu o tratado de Ponte Mammolo como “heresia”, apelando para as determinações de muitos concílios: “Quem defende a heresia – escreve – é herético. Ninguém pode dizer que essa não é uma heresia” (Carta Audivimus quod, in PL, vol. 165, col.1139 B).

Dirigindo-se depois diretamente ao Papa, Bruno afirma: “Os meus inimigos vos dizem que eu não vos amo e que falo de vós pelas costas, mas eles mentem. Eu de fato vos amo, como devo amar a um Pai e senhor. Enquanto estiverdes vivo, não quero ter outro pontífice, como vos prometi, junto a muitos outros. Escuto porém Nosso Salvador que me diz: ‘Quem ama o pai ou a mãe mais do que a Mim, não é digno de Mim’ (Mt. 10-37). (…) Devo portanto amar-vos, mas devo amar ainda mais Aquele que criou a vós e a mim”. Com o mesmo tom de filial franqueza, Bruno convidava o Papa a condenar a heresia, porque “quem defende a heresia é herético” (CartaInimicimei, in PL, vol. 163, col. 463 A-D).

Pascoal não tolerou essa voz de dissensão e destituiu Bruno do cargo de abade de Monte Cassino. Mas o exemplo de São Bruno motivou muitos outros prelados a pedirem com insistência ao Papa que revogasse o pravilegium. Alguns anos mais tarde, num Concílio que se reuniu no Palácio de Latrão, em março de 1116, Pascoal II retratou o acordo de Ponte Mammolo. O mesmo Sínodo lateranense condenou a visão pauperista da Igreja, expressa no acordo de Sutri. A concordata de Worms, de 1122, entre Henrique V e o Papa Calixto II (1119-1124), encerrou – pelo menos temporariamente – a questão das investiduras. Bruno morreu em 18 de julho de 1123. Seu corpo foi sepultado na catedral de Segni e, pela sua intercessão, houve a seguir muitos milagres. Em 1181, ou, mais provavelmente, em 1183, o Papa Lúcio III colocou-o entre os santos.

Alguém poderá objetar que Pascoal II (como mais tarde João XXII, na questão da visão beatífica) não incorreu jamais em heresia formal. Mas esse não é o cerne do problema. Na Idade Média o termo heresia era empregado em sentido amplo. Depois do Concílio de Trento, a linguagem teológica tornou-se mais precisa, introduzindo distinções entre proposições heréticas, próximas da heresia, errôneas, escandalosas, etc.

Não vem ao caso, aqui, definir a natureza das censuras teológicas aplicáveis aos erros de Pascoal II e João XXII, mas analisar a liceidade de se resistir a tais erros, os quais certamente não correspondiam a sentenças pronunciadas ex cathedra. A teologia e a história nos ensinam que, se uma declaração do Sumo Pontífice contém elementos censuráveis no plano doutrinário, é lícito — e pode até ser obrigatório — criticá-la, mesmo que não se trate de uma heresia formal, expressa solenemente. Foi o que fizeram São Bruno de Segni contra Pascoal II e os dominicanos do século XIV contra João XXII. Com sua atitude, eles não erraram, mas os Papas daqueles tempos, os quais,aliás se retrataram antes de morrer.

Além disso, aqueles que com mais firmeza resistiram aos Papas que se desviavam da Fé foram precisamente os mais ardentes defensores da supremacia do Papado. Os prelados oportunistas e servis da época adaptaram-se ao flutuar dos homens e dos acontecimentos, antepondo a pessoa do Papa ao Magistério da Igreja. Bruno de Segni, nas pegadas de outros campeões da ortodoxia católica, antepôs, pelo contrário, a fé de Pedro à pessoa de Pedro e redarguiu a Pascoal II com a mesma firmeza respeitosa com que Paulo resistiu a Pedro (Gál. 2, 11-14).

Em seu comentário exegético de Mt. 16, 18, São Bruno explica que o fundamento da Igreja não é Pedro, mas a fé cristã confessada por Pedro. Cristo afirma, de fato, que Ele edificará a sua Igreja não sobre a pessoa de Pedro, mas sobre a fé que Pedro manifestou dizendo: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo”. A esta profissão de fé, Jesus responde: “É sobre esta pedra e sobre esta fé que edificarei a minha Igreja” (Comment.. in Matth., Pars III, cap. XVI, in PL, vol. 165, col. 213).

Elevando Bruno de Segni à honra dos altares, a Igreja chancelou a sua doutrina e o seu comportamento.

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