Por Cristiana de Magistris | Tradução: Fratresin Unum.com * – O nome do bispo
inglês Robert Grossateste (1175-1253) é quase totalmente desconhecido do mundo
italiano. Para os poucos que têm alguma erudição, ele é notável por sua
genialidade no campo científico, onde suas obras são consideradas de valor
inestimável, a ponto de lhe terem merecido o título de “pioneiro” de um
movimento científico e literário, bem como de “primeiro” matemático e físico de
seu tempo.
Mas Robert
Grossetesta foi acima de tudo um Bispo santo, que se distinguiu por seu zelo em
promover a salus animarum e por seu amor ao papado.
Mente absolutamente prodigiosa e versada não apenas
em estudos científicos, mas também no literário, teológico e bíblico, Robert
Grossateste tornou-se bispo de Lincoln em 1235. “Desde que fui nomeado bispo –
escreveu – considero-me o pastor e guarda das almas que me comprometo a cuidar
com toda a minha força, porque do rebanho que me foi confiado vou prestar
estrita conta no Dia do Juízo” [1]. Seu principal objetivo era de “reformar a
sociedade através da reforma do clero” [2]. A disciplina austera que exigia de
seus sacerdotes era conhecida em toda a Inglaterra: renúncia à recompensa
pecuniária, obrigação de residência, reverência na celebração da Santa Missa,
fidelidade na recitação do Ofício Divino, educação do povo, total
disponibilidade para os doentes e as crianças. Com essas regras, o bispo inglês,
além de elevar o nível das pregações e do ensino do clero, queria melhorar sua
conduta moral.
Mas uma das
características mais originais de Grossateste foi a sua veneração pelo primado
petrino, descrita nestes termos por um de seus biógrafos: “O mais interessante
aspecto da teoria de Grossateste na formação e função da hierarquia
eclesiástica é a exaltação do Papado. Ele foi provavelmente o papista mais
fervoroso e resoluto entre os escritores ingleses medievais.” [3]
Tal veneração pela plenitudo potestatis do
Romano Pontífice assume um significado todo especial e um alcance mais
interessante em relação à sua próxima resistência a Inocêncio IV.
No ano de 1239, em discurso dirigido ao Decano e ao
Capítulo de Lincoln sobre a hierarquia eclesiástica, Grossateste disse: “[...]
seguindo o prefigurado no Antigo Testamento, o Senhor Papa tem o primado do
poder sobre as nações e sobre os reinos, tem o poder de demolir e erradicar,
destruir e dispersar, plantar e construir [...] Samuel era entre o povo de
Israel como um sol, assim como na Igreja universal é o Papa e todos os bispos
em suas dioceses”. [4]
Em 1237, escreveu
ele a um legado pontifício: “Deus não permita que a Santa Sé e os que a
presidem, aos quais normalmente cumpre prestar obediência em tudo quanto
ordenam, tornem-se, pelo contrário, a causa da perda da fé para as pessoas que
comandam, o que é contrário aos preceitos de Cristo e à Sua vontade. Deus não
permita que para qualquer pessoa verdadeiramente unida a Cristo, não querendo
de forma alguma ir contra a Sua Vontade, esta Sé e aqueles que a presidem
possam ser causa da perda da fé ou de aparente cisma, ordenando fazer aquilo
que se opõe à vontade de Cristo.”
O bispo Grossateste
via com horror a simples idéia de desobedecer à autoridade eclesiástica
legalmente constituída, pois considerava a obediência como a única resposta
adequada a tal autoridade que vem de Deus. Mas a autoridade existe dentro de
limites claramente definidos. Não há nenhuma autoridade além desses limites
– ultra vires – e recusar-se a obedecer à autoridade quando
ela ultrapassa esses limites não é um ato de desobediência, mas a afirmação de
que a autoridade está abusando de seu poder. Muitos teólogos, como Suárez,
acreditam que é lícito resistir até ao Papa, “se este faz algo manifestamente
oposto à justiça e ao bem comum” [5].
Ninguém na Idade
Média era tão convencido como Grossateste de que o Papa possuía a plenitudo
potestatis. Mas, com os medievais de seu tempo, ele sustentava que tal poder
não é um poder arbitrário, e sim um ofício a ele conferido “para o serviço de
todo o Corpo (de Cristo)”, que é a Igreja. Tal poder é dado ao Papa para a
salvação das almas, para edificar o Corpo de Cristo, e não para destruí-lo. O
Papa – nós não devemos nos esquecer – é o Vigário de Cristo, não o próprio
Cristo, e deve exercer seu poder de acordo com a vontade de Cristo, e não em
manifesto conflito com esta. Deus não permita – dizia Grossateste – que a Santa
Sé se torne a “causa” de um aparente cisma, ordenando aos fieis qualquer coisa
que se opõe à Vontade de Cristo Senhor.
A ocasião que provocou a resistência de Grossateste
dizia respeito ao problema dos benefícios eclesiásticos, cuja primeira função
era o cuidado das almas. A complexa relação Igreja-Estado daquele tempo
transtornou essa função, sendo os benefícios muitas vezes largamente concedidos
a clérigos que não teriam podido (ou querido) de nenhum modo cuidar da grei a
eles confiada. Aconteceu de o próprio Papa nomear para [receber] um benefício, uma
prebenda ou um cabido, eclesiásticos que com frequência não residiam no lugar
para o qual haviam sido designados, ou em alguns casos eram incapazes por um
motivo ou por outro de se ocuparem disso. Por sua alta estima ao Papado,
Grossateste se opôs a esta prática, que tinha forte odor de simonia e às vezes
de nepotismo. Ele aceitou plenamente as nomeações do Papa quando os
beneficiários NÃO estavam em condição de cumprir as funções para as quais
recebiam os benefícios. Tanto o poder papal quanto os benefícios tinham de fato
para Grossetesta um único objetivo: a salvação das almas.
O Bispo inglês resistiu a este estado de decadência
com todos os meios possíveis, especialmente através de um uso inteligente e
sábio do direito canônico. Em 1250, já
octogenário, ele foi até Lyon – onde então residia Inocêncio IV – e
confrontou-se com o Papa em pessoa. “Ele simplesmente levantou-se [...]. O Papa
Inocêncio sentou-se com os seus cardeais e familiares para ouvir o ataque mais
veemente e completo que um papa jamais ouviu em pleno uso de seu poder” (6).
O objeto da acusação era a falta de cuidado
pastoral, que colocava a Igreja em um estado de profundo sofrimento. “O ofício
dos pastores encontra-se em condições miseráveis. E a causa do mal deve ser
encontrada na Cúria papal [...] que provê maus pastores para seu rebanho. O que
é um ofício pastoral? Suas funções são variadas, mas, em particular, envolve o
dever de visitas (aos fiéis) … ” [7]. Agora, como poderia um pastor não
residente prover a seu rebanho? A esta questão nem sequer o Papa podia
responder. Grossateste, além disso, ensinava
mais pelo exemplo do que com palavras. Anos antes, em 1232, ele havia desistido
de todos seus benefícios e gratificações, exceto uma prebenda que detinha em
Lincoln, algo que o tinha coberto de ridículo aos olhos dos contemporâneos. Mas
ele respondeu com estas palavras sublimes que revelam a nobreza de sua alma:
“Se forem mais desprezados aos olhos do mundo, então serão mais agradáveis aos cidadãos do céu” [8] .
A heroica visita do Bispo inglês a Inocêncio IV –
heroica tanto pela ousadia do evento quanto pela idade avançada de Grossateste
– não teve nenhum efeito. O Papa dependia do sistema de comissão para manter a
Cúria e para financiar as guerras intermináveis contra
Frederico II.
Em 1253, o Papa deu a seu sobrinho, Frederico de
Lavagna, um canonicato na catedral de Lincoln. Grossateste recebeu a ordem de
colocar em execução a vontade do Pontífice Romano e encontrou-se num terrível
dilema. A ordem do Papa era absolutamente legal, já que ele tinha todo o
direito de atribuir um canonicato e, como tal, era necessário obedecer. Mas,
apesar de ser legal, a ordem era um claro “abuso de poder”, porquanto o
sobrinho do papa nunca pusera os pés na terra dos anglos e, portanto, nunca
exerceu seu ministério em Lincoln, para o qual, no entanto, teria recebido o
benefício.
Neste caso, o Papa
usou de seu cargo de Vigário de Cristo em sentido oposto àquele para o qual ele
estava revestido. A resposta de Grossateste foi recusar obedecer a uma ordem
que era um claro abuso de poder. O Papa naquele momento estava agindo ultra
vires, ou seja, além dos limites de sua autoridade. A resistência de
Grossetesta não foi pelo fato de ele desconhecer a autoridade do Papa, mas pela
imensa estima e respeito que tinha por esta.
O bispo Grossateste se recusou a dar ao sobrinho do
Papa o canonicato da Catedral de Lincoln e escreveu uma carta de reclamação e
recusa, não para o Papa em pessoa, mas a um comissário, Mestre Inocêncio,
através do qual ele recebera a ordem.
Eis o que ele
afirma: “Nenhum fiel sujeito à Santa Sé, nenhum homem que não está excluído
pelo cisma do Corpo de Cristo e da Sé Apostólica, pode obedecer a
determinações, regras ou outras ordens desse tipo, mesmo que elas viessem do mais
alto coro de Anjos. Ele deve rejeitá-las e rejeitá-las com toda a sua força.
Pela obediência que me liga e pelo amor que tenho à Santa Sé no Corpo de
Cristo, como filho obediente eu desobedeço, contradigo e rebelo-me.
Não se pode fazer nada contra mim, porque cada palavra minha e cada ação minha
não é uma rebelião, mas um ato de honra filial devido ao pai e à mãe por meio
do mandamento de Deus. Como eu disse, a Sé Apostólica em sua santidade não pode
destruir, mas somente construir. Esta é a plenitudo potestatis:
deve fazer tudo para a edificação. Agora, essas chamadas “comissões” não
constroem, mas destroem. Elas não podem ser obra da Sé Apostólica, porquanto
são ditadas “pela carne e pelo sangue”, que não possuem o reino de Deus, e nem
do Pai que está nos céus ” [9].
Comentando essas
palavras, W. A. Pantin, em seu estudo sobre a relação entre o bispo Grossateste
e o Papado, escreve: “Parece haver duas linhas de pensamento aqui. A primeira,
de acordo com a qual aplenitudo potestatis existe para edificação e
não para destruição, todo ato tendente à destruição ou à ruína das almas não
pode ser considerado um verdadeiro exercício da plenitudo potestatis…
A segunda, conforme a qual, se o Papa ou qualquer outra pessoa ordenasse algo
contrário à lei de Deus, então seria errado obedecer, e, finalmente, ao se
afirmar a própria fidelidade, deve-se recusar a obedecer. O problema básico é
que, enquanto a doutrina da Igreja é sobrenaturalmente garantida contra o erro,
os ministros da Igreja, do Papa para baixo, não são impecáveis e podem formular julgamentos e emitir ordens
erradas”[10].
“Não se pode fazer nada contra mim”, protestou
Grossateste, e os acontecimentos deram razão a ele. Quando Inocêncio IV leu a
carta, irritado além da medida, queria pedir sua prisão, mas os cardeais o
dissuadiram. “Sua Santidade – disseram – não tem nada que fazer. Não podemos
condená-lo. Ele é um homem católico e santo, o melhor homem que temos, sem
igual entre os outros prelados. O clero francês e inglês sabe disso e nossa
intervenção não teria nenhuma vantagem. A verdade contida nesta carta, que é
provavelmente conhecida de muitos, poderia empurrar os outros a agir contra
nós. Grossetesta é estimado como um grande filósofo, conhecedor da literatura
latina e grega, zeloso pela justiça, teólogo, pregador e inimigo de abuso.”
[11]
Inocêncio IV percebeu que a melhor coisa a fazer
era abster-se de qualquer intervenção. E assim foi. Nesse mesmo ano de 1253, o
Grossateste morreu. Em seu túmulo aconteceram muitos milagres e logo se tornou
um local de culto e devoção, nem faltaram tentativas para dar início à sua
causa de canonização. [12] A Inglaterra possui apenas um outro santo bispo,
John Fisher, cujo amor e lealdade para com a Santa Sé não excedia o de
Grossateste. Certamente, se este tivesse vivido nos dias de John Fisher, não
teria hesitado em dar, como ele, a vida pela Sé Apostólica. Mas também é certo
que, se John Fisher tivesse vivido no século XIII, sob o pontificado de
Inocêncio IV, teria resistido aos abusos do poder papal.
O caso do bispo
Grossateste reveste-se de particular importância, pois sua resistência não é
motivada por heresia, em cujo caso é opinião comum que não é necessário
obedecer. Ele não defendeu a ortodoxia católica, mas se recusou a colocar em
prática uma diretiva do Papa que ele considerava prejudicial para asalus
animarum.
O “caso
Grossateste” fez história. Sylvester Prierias, insigne dominicano e estrênuo
defensor da autoridade papal, em seu Dialogus de Potestate Papae (1517),
citando as palavras e o exemplo de Grossateste, afirmou que o Sumo Pontífice
pode abusar de seu poder: “Se o Papa quisesse desperdiçar os bens da Igreja ou
distribuí-los aos seus familiares, se quisesse destruir a Igreja ou praticar
qualquer ato dessa magnitude, então seria um dever impedi-lo e uma obrigação
opor-se a ele e resistir-lhe. A razão é que ele não possui o poder de destruir.
Disto se segue que, se ele agisse assim, seria legítimo resistir-lhe”.
Durante o Concílio
Vaticano I, o caso Grossateste foi mencionado várias vezes, não para condenar a
resistência do bispo Inglês, mas para mostrar que a plenitudo
potestatis do Romano Pontífice – não obstante a infalibilidade papal
que aquele Concílio estava para definir – tem limites bem definidos, não sendo
nem absoluta nem arbitrária.
Ecoando as palavras de Grossateste – “a Sé
Apostólica em sua santidade não pode destruir, mas apenas construir” – o bispo
D’Avanzo disse no Concílio: “Pedro tem tanto poder quanto quis dar-lhe Nosso
Senhor, não para a destruição, mas para a edificação do Corpo de Cristo que é a
Igreja.” [13]
E assim, depois de seis séculos, a resistência do
maior “papista” dos bispos ingleses do século XIII contribuiu para a definição
da infalibilidade pontifícia. Esta é a ironia de Deus, pela qual os Anjos e
Santos – e também Grossateste! – se alegram no céu.
*
Nosso agradecimento a um caro amigo pela tradução fornecida.
*** * ***
[1] D. A. Callus, Robert
Grosseteste, Oxford 1955, p .150.
[2] Ivi,
p. 85.
[3] Ivi,
p. 183.
[4] Ivi,
p. 185.
[5] “Se il
papa comanda qualcosa che sia contrario alla morale non bisogna obbedirgli. Se
prova a fare qualcosa che sia contrario alla giustizia e al bene comune, è
lecito resistergli. Se egli attacca con la forza, può essere respinto con la
forza, con la moderazione propria di una giusta difesa”: De fide,
disp. X, sect. VI, n. 16.
[6] M. Powicke,
“Robert Grossateste, Bishop of Lincoln”, Bullettin of the John Rylands
Library, Manchester, vol. 35, n. 2, march 1953, p. 504.
[7] M. Powicke, King
Henry III and the Lord Edward , Oxford 1959, p. 284.
[8] D.
A. Callus, cit., XIX.
[9] M. Powicke, King
Henry III and the Lord Edward , cit., p. 286.
[10] W.
A. Pantin, “Grosseteste’s relations with the papacy and the crown”, in D. A.
Callus, cit., pp. 190-191.
[11] M. Powicke, King
Henry III and the Lord Edward , cit., p. 287.
[12] Cf
E. W. Kemp, “The attempted canonization of Robert Grossateste”, in D. A.
Callus, cit., pp. 241-246.
[13] J. D.
Mansi, Sacrorum Conciliorum nova et amplissa collectio, Parigi
1857-1927, LII, p. 715
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