quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Os boatos sobre a morte de Lutero (Parte I)





Perguntamo-nos agora quais foram os boatos que tinham espalhado em torno do ataúde de Lutero, sobre o modo cujo ele tinha morrido. Deveríamos de preferência perguntar inicialmente quem tinha difundido estes boatos, ou quem os tinha feito circular? Coelius diz que os autores destas invenções malevolentes, mesmo diabólicas, só poderiam ser os "papistas". Mas então, como estes vieram a Eisleben, a cidade luterana onde, em 1546, a "liberdade da doutrina cristã" florescia a tal ponto que um "papista" não poderia mais viver em suas muralhas?[1] Como eles teriam podido penetrar no séquito de Lutero, seja no círculo dos teólogos e da nobreza de Eisleben, seja em seu serviço pessoal? Sendo dada a persistência dos boatos em questão, eles só poderiam sair deste círculo; neste caso eles poderiam se espalhar com maior facilidade na cidade e nas redondezas. 

Portanto, os autores destes boatos só poderiam ser partidários de Lutero. Seguramente eles não teriam dito nada, declarado nada, se uma ocasião repentina, extrapolando o comum, não os tivesse forçado a dar uma resposta ao público que os pressionava com inumeráveis perguntas. 

Em tais conjecturas, Coelius demonstraria muita imprudência ao acreditar que com seu alarido ele "silenciaria o diabo e suas línguas de mentira". Ele só soube despertar suspeitas sobre esta questão, e tornar os ouvidos surdos à sua narração. Ele também parece ter se arrependido muito cedo de sua falta de cautela, visto que, na Historia impressa, que ele tinha terminado e assinado em acordo com Jonas e Aurifaber, um, um pouco mais astuto, e o outro mais flexível do que ele, ele não trata mais destes famosos rumores. Como mencionamos mais acima, essa Historia permaneceu como a primeira fonte histórica sobre a morte de Lutero para os biógrafos protestantes. Eis porque esses boatos teriam sido abafados na controversa protestante, se escritores católicos não os tivessem registrado e os mantido como credíveis, ou mesmo os proposto como fatos históricos. 


Assim sendo, de que natureza eram estes propósitos que eram murmurados ao pé do ouvido? Ainda que eles se diferenciem nos detalhes, resta-lhes, contudo, um fundo comum de concordância. Ou seja, sobre o ponto capital eles estão de acordo, a saber, que Lutero tinha acabado de um modo "completamente súbito, inesperado, e, ademais, lamentável[2]".

Lutero tinha chegado à Eisleben na noite de 28 de janeiro. No dia 29 ele já se ocupava de questões de interesse daquele que o patrocinava, o conde Albert de Mansfeld. Fora isso, deste dia até o dia de sua morte, ele "pregara" quatro vezes e até "ordenara e consagrara"[3] dois "padres"[4].

Na noite de 17 de fevereiro, ele tomara sua refeição como de costume, no dizer da Historia: no dia 18, pela manhã, ele não era além de um cadáver. Enquanto era de conhecimento de todos que Lutero, não somente gostava muito de comer e beber, mas ainda que ele chegava à intemperança - ele mesmo se vangloriava de "comer" como um boêmio e de "beber" como um alemão[5] - não seria natural que se espalhasse tão logo o boato de que por ter comido demais, ele tinha sido abatido por uma apoplexia?  (sem contar que suas forças físicas estavam enfraquecidas).

Pode-se ler em Cochlaeus (De actis et scriptis Lutheri; Mayence 1546, Paris e Cologne 1565, p. 298 e seguintes) uma narração de um burguês de Mansfeld que dá numerosos detalhes diferentes daqueles da Historia. Segundo este documento, na noite que precedeu sua morte, Lutero teria alegrado companheiros de mesa com suas piadas de costume, porém, por volta das oito horas, ele teria ficado indisposto. Depois da meia noite, os dois médicos de Eisleben teriam sido chamados repentinamente para junto dele. Estes, em sua chegada não teriam encontrado mais sinal de vida nele: 

"Post medium noctis repente vocati sunt duo medici, quorum alter doctor alter magister erat[6]; qui ubi advenerunt, non repererunt int eo ullum amplius pulsum[7]. Scripserunt tamen mox Receptum quoddam pro immittendo clisterio seu enemate".

Depois eles teriam mandado buscar um clister no boticário. A narração continua: 

"Is ubi advenit, et medicorum jussu temperasset atque calefecisset clisterium, putabat illum adhuc vivere. Cumque versum esset corpus, ut ei clisterium applicaretur, apothecarius videns eum mortuum jam esse, ait ad medicos: Mortuusest, quid opus est enemate! Aderat comes Albertus et nonnulli homines eruditi. Responderunt autem medici: "Quid tum? Appone clisterium si forte supersit ullus adhuc spiritus, ut reviviscat". Ille ergo cannulam apponens, sensit in saccum clisterii exire quasdam ventositates et bombos. Erat enim totum corpus refertum humoribus ex supefluo cibo potuque. Habuerat enim coquinam magnifice instructam et vinum dulce atque exoticum permultis metretis abundans in hospitio. Ajunt sane, Lutherum, omni prandio et coena unum ebibisse sextarium (várias garrafas) vini dulcis et exotici[8]. Ubi igitur apothecarius clisterius in corpus torsit, totum refusum est e corpore in lectum, qui splendide praeparatus erat. Ait itaque medicis apothecarius: "Non remanet clisterium" - dixerunt illi "Omitte igitur[9]".

Neste momento, os dois médicos chegam a uma opinião diferente sobre o tipo de morte. O que era médico, acreditava em uma apoplexia: "Por causa da contorção da boca e do negrume de todo o lado direito. O que era mestre, estimava que um homem tão santo não poderia ter sido atingido de apoplexia por Deus, e que se tratava de um catarro sufocante que o tinha asfixiado. Nisso chegam outras pessoas, como todos os condes. Jonas estava sentado na cabeceira do defunto, e se lamentava grandemente, contorcendo as mãos e gesticulando. Quando lhe perguntaram se Lutero tinha se queixado de algumas dores na véspera à noite, (eles já estavam no raiar do dia, na segunda-feira de 18 de fevereiro[10]), ele respondeu:

"Ó, não! Pois ontem ele estava mais alegre do que nunca. Ah! Senhor Deus, Senhor Deus[11]!"


O relato diz em seguida que fizeram novas tentativas para trazê-lo à vida, mas que elas foram inúteis. Estes meios empregados para ressuscitar um morto que a Historia afirma ter dormido na "alegria e na suavidade do Senhor" não são de uma raridade sem precedentes?

Não menos notável é a seguinte passagem da mesma narração: 

"Lutero tinha em sua casa como familiar um tal de magister. Interrogado pelos condes para saber se Lutero tinha se queixado na véspera, ele lhes respondeu que há muito ele não estivera tão alegre; pois ele contara a história do homem faminto que fez um pacto com o diabo para que ele lhe desse de comer. O diabo lhe traz carnes em abundância; ele lhe dá carnes cozidas, assadas. O homem uma vez saciado, o diabo lhe pede sua alma, cuja ele lhe tinha prometido. Porém o outro responde que ele deveria esperar até que ele morresse, pois não fora seu corpo, mas sua alma que ele lhe tinha prometido. Ao que o diabo coloca um termo: Aquele que compra o cavalo, não compra o freio com ele? Absolutamente, diz o homem. E o diabo argumenta por esta inferência: "O cavalo, é a alma; o freio, é o corpo". E então ele o leva de corpo e alma[12]". Ao ouvir narrar esta história e muitas outras do mesmo gênero, toda a companhia ficara exultante".

Mais adiante, há o quadro da solenidade dos funerais. A narração se afasta da Historia quando é dito que várias pessoas e doutores da Universidade de Wittenberg quiseram carregar o corpo de Lutero, de Eisleben à Wittenberg, desde a porta da cidade até a capela do castelo. Neste intuito, fizeram uma maca rapidamente. Porém, por causa do fedor pestilento[13] que exalava do cadáver, ainda que o tivessem colocado em um ataúde de metal (de estanho) e que fazia um frio glacial, fora impossível carregá-lo. Eis porque tiveram de conduzi-lo sobre uma carroça até a capela do castelo. 

Coehlaeus menciona, sem entrar nos detalhes, os boatos que circulavam sobre a morte de Lutero. Porém ele também relata que o defunto, na noite que precedeu sua morte, tinha feito uma rica refeição e provocado o riso no meio de seus convivas. "Muitos escreveram, prossegue ele, numerosos relatos sobre sua morte. De nosso lado, os católicos contam algo diferente do que dizem e escrevem os luteranos. Estes publicaram de comum acordo pequenos escritos que devem persuadir todo o mundo da santa morte de seu santíssimo pai, como eles dizem[14]". Em outra parte (página 298), Coehlaeus diz que a Historia de Jonas é "mentirosa e fútil, mendax et futilis, e que ela contém mais de uma estupidez, complures stultitias, que serve mais para denegrir a reputação de Lutero junto dos eruditos e dos homens de coração do que para se celebrar, quae apud eruditos et cordatos viros Lutheri faman magis denigrant quam celebrant".

Ainda que tenham distribuído por toda parte a Historia, bem conhecida do leitor, e os elogios fúnebres (em tiragem à parte) que Jonas tinha pronunciado, em 19 de fevereiro, e Coelius, em 20, em Eisleben, Bugenhagen; e Melanchton, no dia 22, em Wittenberg, com um retrato onde Lutero era representado na glória dos santos; ainda que tenham mesmo mandado cunhar medalhas comemorativas com a mesma efígie[15], a crença na morte de Lutero em odor de santidade encontrou apenas poucos partidários. E, segundo o que vários autores católicos concluem, a opinião dominante, mesmo do lado dos protestantes, deve ter sido de que o Reformador tinha morrido subitamente, miseravelmente. 

Helmesius, da ordem de São Francisco, em seu livro: Captivitas Babylonica Martini Lutheri, publicado em Colônia em 1557, faz esta observação: 

"Adveio-lhe subitamente como uma dor semelhante àquela do parto, e Deus lhe deu sua parte com os infiéis e os pérfidos hereges, no mais profundo do inferno".


Dr. Paul Majunke. La fin de Luther. Paris, Hte Walzer. Traduit par l'abbé Scklincker, 1893, p.7-16.
_________

[1] Em La Réfome de Dollinger, I, p. 27.

[2] Em Inquisition wahrer und falscher Religion, Dollingen 1573.

[3] A famosa Historia dá sem dúvida a esta "ordenação" a mesma consideração que aos quatro sermões.

[4] Seria necessário citar aqui a carta que Lutero escreveu em 1º de fevereiro "Vigilia Purificationis" para anunciar sua chegada à Eisleben, à sua "cara mulher".

[5] No original, "fressen" e "saufen", que designam as funções nutritivas e gastronômicas nos animais. O francês não tem equivalente. 

[6] Jean Nas e P. de Coster. Luthers Testament. p. 193.

[7] Cf. Vita Lutheri nummis atque iconibus illustrata. Francofurti et Lipsiae 1899, p. 177 e seg.

[8] Garasse, "Doctrine Curieuse", p. 772, 773; Fitz Simon "Britannomachia", lib. I, c. XI, p. 95; Mathnesius "De ritu bibendi", lib. I, c. IX, p. 76.

[9] A pluma se recusa a traduzir este texto latino até aí.

[10] Ver a nota 2 da página precedente.

[11] O autor, em Luthers Testament, demonstra por numerosas testemunhas quanto foi difícil aos protestantes determinar a doença de Lutero: o doutor Brück, chanceler do eleitor do Saxe, escreve para este que Philippe Mélanchton o informou, sobre a doença de Lutero, que ele tinha sido curado no ano anterior com casca de romã. Lutero não foi asfixiado por um catarro, como pensam comumente (Arquivos de Weimar). Mélanchton, em um sermão de 19 de fevereiro de 1546, dizia aos seus auditores de Wittenberg, que em 17 de fevereiro, Lutero começou a sentir novamente os ataques de seu mal crônico, a opressão dos humores no orifício do ventrículo (Cf. Historiae de vita et actis Rev. viri D. Mart. Lutheri... conscripta a Phil. Melanchtone). 

[12] Lutero parece ter contado algo de sua história. Segundo os Tischreden, teria se tratado não de "carnes", mas de vinho. Cf. Michelet, Mémoires de Luther, Tom. III, p. 175.

[13] Vejam mais abaixo a relação de Helmesius, de Thyraeus.

[14] Loc citato, p. 294.

[15] Cf. Jean Nas, 5º centurie. Vejam Cardeal Hergenroether, Histoire de l'Église, tome V, p. 350



Fonte: Annales Historiæ


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