quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Os boatos sobre a morte de Lutero - (Parte II)








O sábio doutor da Sorbonne, Génébrard, escreve em suas Chronographiae, editadas em Colônia, em 1582 (pag. 1181):

"Lutero, estando em Eisleben, após ter comido e bebido muito à noite, se encontrou, pela manhã, a caminho do diabo[1]".

Floremond de Raemond diz em sua Histoire de la naissance, progrès et décadence de l'hérésie de ce siècle (traduzido em latim, em Colônia, 1655; em alemão, em Glogau, 1695):

"Encontrei este fato relatado por alguns autores: é que Lutero, tendo se levantado para se aliviar, derramou suas entranhas do mesmo modo que Arius[2]". 

Floremond de Raemond não cita as fontes de sua comunicação; porém, como veremos mais tarde, ocorreu-lhe geralmente de trabalhar sem ser rigoroso na citação das fontes históricas.

O cardeal Belarmino oferece uma versão que se aproxima da de Bozio. Encontrá-la-emos mais adiante. Ele diz em um de seus sermões (pregados de 1570 a 1576 em Lovaina, publicados em Colônia em 1615):

"Martinho Lutero não viveu como voluptuoso, não morreu como voluptuoso? Numa noite, algumas horas depois de ter comido bem segundo seu costume, e alegrado todos os seus convivas com seus contos e suas piadas, ele rendeu sua alma ao diabo[3]".

O cardeal Hosius acreditava que, como Lutero, em quase todos os seus discursos, escritos ou ações, falava, escrevia ou agia sob o impulso do diabo, a mesma coisa deve ter ocorrido em sua morte. Em sua obra clássica Confutatio prolegomenon Brentii (Coloniae 1550), o cardeal se exprime assim:

"Enquanto que em todos os seus dizeres, seus escritos, seus feitos e gestos, ele não teve outro conselheiro - muito mau, sem dúvida - senão o ódio e a ira, pode-se ainda duvidar de que o que ele fez veio, aliás, senão do diabo? Se alguém ainda duvida disso, que ele se deixe esclarecer pelo próprio Lutero, que, em seu livro intitulado: Da Missa privada, não dissimula quem foi o seu autor. Ali ele mostra o diabo discutindo com ele, trazendo contra a missa argumentos tão fortes que ele não pode refutá-los. Ele descreve o tom de sua voz, grave e robusta, diz ele, terrível de se ouvir, de tal forma que acontece de por vezes algumas pessoas, depois de terem tido uma conversa noturna com o diabo, serem encontradas mortas na manhã seguinte. O diabo, diz ele ainda, pode matar o corpo: além disso, ele coloca a alma em tais angustias, que por vezes, em um piscar de olhos, ele a faz sair do corpo. Ainda um pouco, segundo ele, e isso teria lhe acontecido[4]. E definitivamente isso lhe aconteceu, pois este que, à noite, tinha comido bem e se alegrado, foi encontrado morto em sua cama na manhã seguinte, após ter causado na Igreja de Deus grandes perturbações, durante vinte e nove anos. Eis aqui este evangelho, esta palavra de Deus, tão magnificamente exaltada por alguns: isso não vem de Cristo, mas de Satanás, que é seu autor, como confessa aquele que, por primeiro, a lançou ao público; ele se gaba de ter tido de responder a argumentos que subverteram o sacerdócio e o sacrifício[5]".

Hosius intitula esse capítulo de: Lutherum malo spiritu actum pluraque perfecisse - "Lutero agiu geralmente sob a influência do espírito mau".

A passagem das obras de Lutero que ele cita se encontra no libelo impresso em 1533, "A missa privada e a consagração dos padres". É aí que Lutero narra que numa noite, ele teve uma discussão serrada com o diabo sobre esse assunto. Eis o que ele diz[6]:

"Uma vez, por volta da meia noite, fui acordado: quando o diabo começou em meu coração uma argumentação comigo, como ele soube me fazer em mais de uma noite, com bastante aspereza e amargura: "Escute, você, o grande sábio, disse o diabo; você sabe que você celebrou a missa privada quase todos os dias durante quinze anos! Com missas semelhantes, é como se você tivesse praticado uma soberba idolatria, adorando não o corpo e o sangue de Cristo, mas sim pão e vinho, e fazendo os outros adorá-los".


Respondi: "Todavia sou um padre devidamente consagrado; o bispo me deu o santo crisma e a unção; com isso, fazendo tudo por dever e por obediência, eu não teria realmente operado a consagração, quando pronunciara as palavras com toda minha gravidade e concedera toda minha atenção à missa? Você sabe que isso é verdade?"

"Sim, retomou ele, é verdade, mas os turcos, os pagãos, em seus templos, fazem todas as suas funções por dever e por obediência, com gravidade. Os sacerdotes Jeroboão de Dan e Berseba, deveriam sem dúvida realizar tudo com grande recolhimento, como os verdadeiros sacerdotes de Jerusalém. Tua unção, tua consagração, teu santo crisma são, portanto, tão pouco cristãos e tão falsos quanto entre os turcos e os samaritanos". 

"Então o suor correra sobre meu corpo; meu coração se pôs a tremer e a palpitar...
Uma disputa semelhante não lhe demandaria reflexão: em um piscar de olhos uma coisa respondia à outra. E é aí que eu entendi como acontecia de, pela manhã, encontrarem pessoas mortas, em suas camas. O diabo pode matar o corpo; isso é certo. Graças a disputa, ele pode terrificar a alma ao ponto dela sair incontinente do corpo, como ele tentou fazer muito frequentemente comigo. Pois bem, nesta discussão, ele tinha me pegado: para Deus, na verdade, eu não queria me deixar fazer semelhante abominação, pois ela é imperdoável, porém defender somente minha inocência: eu o escutei expor as razões que ele tinha contra minha unção e minha consagração".

A discussão durou uma hora ainda, até que o "homem de Deus" deu razão ao diabo[7].

Eis o passo das ideias que Hosius segue. O cardeal quer dizer que como Lutero se devotara ao diabo enquanto ele fora vivo, ele teve de fazer o mesmo em seu último instante. Porém, - é o que devemos ler nas entrelinhas - resta saber se Lutero morreu de medo e de superexcitação, ou se o diabo o matou, com a permissão de Deus, quando a medida dos malfeitos do Reformador ficou completa, ou ainda se Lutero, agindo como instrumento do diabo, não teria se suicidado, como fez Montano. Esta última interpretação parece convir mais ao autor, ao jugarmos pelo título do capítulo: "Que Lutero agiu geralmente sob a influência do diabo".

Em relação à citação precedente de Hosius, o teólogo Gabriel Prateolus Marcossius acredita poder constatar em sua obra: De vitis omnium hacreticorum, que Lutero morreu antes de asfixia que de morte natural: "Lutherum non tam mortuum quam suffocatum esse". (Cologne 1583, p. 294).

Da mesma forma, Claude de Sainctes (bispo de Evreux, e teólogo do rei da França no concílio de Trento) se reportando a Hosius, porém visivelmente auxiliado por alguns documentos mais especiais, se expressava assim sobre o mesmo assunto, em seu livro de Rebus Eucharistiae (Paris, 1575, p. 26):

"O diabo tem se manifestado ainda nos acessos de fúria e nas perturbações do espírito. Aqueles com quem ele tem se ocupado não têm descanso dia e noite, e são como que também arrastados nas mortes súbitas e violentas, por onde ele eliminou alguns, como Zwingle, Lutero, Carlostadt, Empser, OEcolampade e outros. Por vezes aprouve a este espírito se mostrar tal como ele é, por espectros e aparições: isso tem acontecido segundo os decretos de Deus para impedir que se confunda seu anjo com o anjo decaído. Lutero, em seu livro da Missa privada, faz o diabo intervir para conversar com ele. O diabo lhe traz argumentos contra o sacrifício da missa, muito fortes para que ele pudesse respondê-los. Ele descreve sua voz grave, forte, com um som terrível, tal como acontece por vezes com homens que, depois de terem tido uma conversa noturna com o demônio, foram encontrados mortos na manhã do dia seguinte, e isso porque Satanás vem até asfixiar a respiração... Por nossa própria conta, é preciso acrescentar que cremos que Lutero partiu do mesmo modo. Deitando-se à noite entupido de bebida, na manhã ele foi encontrado estendido, enegrecido, com a língua esticada, como um homem estrangulado. Portanto, devemos repetir isso, encontraram Lutero, na manhã de 18 de fevereiro, "enegrecido, com a língua esticada, como estrangulado[8]".

Todos esses dados estão de acordo entre si, enquanto eles conduzem a informações certas. Elas estão suficientemente de acordo com o testemunho dado pela doméstica de Lutero, testemunho conhecido mais tarde. Ainda hoje, é possível verificar os sintomas que acabamos de descrever baseados apenas na máscara mortuária do Reformador. 


Dr. Paul Majunke. La fin de Luther. Paris, Hte Walzer. Traduit par l'abbé Scklincker, 1893.

______

[1] Lutherus Islebii cum vespere egregie esset pastus et potus, mane repertus est ad Satanant descendisse.

[2] A quibusdam proditum invenio, eodem modo Lutherum, cum e lectulo ventris exonerandi caussa surrexisset, quo Arius intestina fudisse". (pag. 265)

[3] Concio IX, p. 562.

[4] Contra Brent., em Feu-Ardent, Entremangeries ministrales, p. 10, Paris, 1601.

[5] P. 8 e seguintes.

[6] Histor. Sacrament, part. II, fol. 131.

[7] Entremangeries ministrales, p. 63. 

[8] P. 26


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