O sábio doutor da Sorbonne,
Génébrard, escreve em suas Chronographiae, editadas em Colônia, em 1582
(pag. 1181):
"Lutero, estando em Eisleben, após
ter comido e bebido muito à noite, se encontrou, pela manhã, a caminho do
diabo[1]".
Floremond de Raemond diz em
sua Histoire de la naissance, progrès et décadence de l'hérésie de ce
siècle (traduzido em latim, em Colônia, 1655; em alemão, em Glogau,
1695):
"Encontrei este fato relatado por
alguns autores: é que Lutero, tendo se levantado para se aliviar, derramou suas
entranhas do mesmo modo que Arius[2]".
Floremond de Raemond não cita as
fontes de sua comunicação; porém, como veremos mais tarde, ocorreu-lhe
geralmente de trabalhar sem ser rigoroso na citação das fontes históricas.
O cardeal Belarmino oferece uma
versão que se aproxima da de Bozio. Encontrá-la-emos mais adiante. Ele diz em
um de seus sermões (pregados de 1570 a 1576 em Lovaina, publicados em Colônia
em 1615):
"Martinho Lutero não viveu como
voluptuoso, não morreu como voluptuoso? Numa noite, algumas horas depois de ter
comido bem segundo seu costume, e alegrado todos os seus convivas com seus
contos e suas piadas, ele rendeu sua alma ao diabo[3]".
O cardeal Hosius acreditava que,
como Lutero, em quase todos os seus discursos, escritos ou ações, falava,
escrevia ou agia sob o impulso do diabo, a mesma coisa deve ter ocorrido em sua
morte. Em sua obra clássica Confutatio prolegomenon Brentii (Coloniae
1550), o cardeal se exprime assim:
"Enquanto que em todos os seus
dizeres, seus escritos, seus feitos e gestos, ele não teve outro conselheiro -
muito mau, sem dúvida - senão o ódio e a ira, pode-se ainda duvidar de que o
que ele fez veio, aliás, senão do diabo? Se alguém ainda duvida disso, que ele
se deixe esclarecer pelo próprio Lutero, que, em seu livro intitulado: Da
Missa privada, não dissimula quem foi o seu autor. Ali ele mostra o diabo discutindo
com ele, trazendo contra a missa argumentos tão fortes que ele não pode
refutá-los. Ele descreve o tom de sua voz, grave e robusta, diz ele, terrível
de se ouvir, de tal forma que acontece de por vezes algumas pessoas, depois de
terem tido uma conversa noturna com o diabo, serem encontradas mortas na manhã
seguinte. O diabo, diz ele ainda, pode matar o corpo: além disso, ele coloca a
alma em tais angustias, que por vezes, em um piscar de olhos, ele a faz sair do
corpo. Ainda um pouco, segundo ele, e isso teria lhe acontecido[4]. E
definitivamente isso lhe aconteceu, pois este que, à noite, tinha comido bem e
se alegrado, foi encontrado morto em sua cama na manhã seguinte, após ter
causado na Igreja de Deus grandes perturbações, durante vinte e nove anos. Eis
aqui este evangelho, esta palavra de Deus, tão magnificamente exaltada por
alguns: isso não vem de Cristo, mas de Satanás, que é seu autor, como confessa
aquele que, por primeiro, a lançou ao público; ele se gaba de ter tido de
responder a argumentos que subverteram o sacerdócio e o sacrifício[5]".
Hosius intitula esse capítulo
de: Lutherum malo spiritu actum pluraque perfecisse -
"Lutero agiu geralmente sob a influência do espírito mau".
A passagem das obras de Lutero
que ele cita se encontra no libelo impresso em 1533, "A missa privada e
a consagração dos padres". É aí que Lutero narra que numa noite, ele
teve uma discussão serrada com o diabo sobre esse assunto. Eis o que ele
diz[6]:
"Uma vez, por volta da meia noite,
fui acordado: quando o diabo começou em meu coração uma argumentação comigo,
como ele soube me fazer em mais de uma noite, com bastante aspereza e amargura:
"Escute, você, o grande sábio, disse o diabo; você sabe que você celebrou
a missa privada quase todos os dias durante quinze anos! Com missas
semelhantes, é como se você tivesse praticado uma soberba idolatria, adorando
não o corpo e o sangue de Cristo, mas sim pão e vinho, e fazendo os outros
adorá-los".
Respondi: "Todavia sou um padre
devidamente consagrado; o bispo me deu o santo crisma e a unção; com isso,
fazendo tudo por dever e por obediência, eu não teria realmente operado a
consagração, quando pronunciara as palavras com toda minha gravidade e
concedera toda minha atenção à missa? Você sabe que isso é verdade?"
"Sim, retomou ele, é verdade, mas
os turcos, os pagãos, em seus templos, fazem todas as suas funções por dever e
por obediência, com gravidade. Os sacerdotes Jeroboão de Dan e Berseba,
deveriam sem dúvida realizar tudo com grande recolhimento, como os verdadeiros
sacerdotes de Jerusalém. Tua unção, tua consagração, teu santo crisma são,
portanto, tão pouco cristãos e tão falsos quanto entre os turcos e os
samaritanos".
"Então o suor correra sobre meu
corpo; meu coração se pôs a tremer e a palpitar...
Uma disputa semelhante não lhe
demandaria reflexão: em um piscar de olhos uma coisa respondia à outra. E é aí
que eu entendi como acontecia de, pela manhã, encontrarem pessoas mortas, em
suas camas. O diabo pode matar o corpo; isso é certo. Graças a disputa, ele
pode terrificar a alma ao ponto dela sair incontinente do corpo, como ele
tentou fazer muito frequentemente comigo. Pois bem, nesta discussão, ele tinha
me pegado: para Deus, na verdade, eu não queria me deixar fazer semelhante
abominação, pois ela é imperdoável, porém defender somente minha inocência: eu
o escutei expor as razões que ele tinha contra minha unção e minha
consagração".
A discussão durou uma hora ainda,
até que o "homem de Deus" deu razão ao diabo[7].
Eis o passo das ideias que Hosius
segue. O cardeal quer dizer que como Lutero se devotara ao diabo enquanto ele
fora vivo, ele teve de fazer o mesmo em seu último instante. Porém, - é o que
devemos ler nas entrelinhas - resta saber se Lutero morreu de medo e
de superexcitação, ou se o diabo o matou, com a permissão de
Deus, quando a medida dos malfeitos do Reformador ficou completa, ou ainda se
Lutero, agindo como instrumento do diabo, não teria se suicidado, como fez
Montano. Esta última interpretação parece convir mais ao autor, ao jugarmos pelo
título do capítulo: "Que Lutero agiu geralmente sob a influência do
diabo".
Em relação à citação precedente
de Hosius, o teólogo Gabriel Prateolus Marcossius acredita poder constatar em
sua obra: De vitis omnium hacreticorum, que Lutero morreu antes de
asfixia que de morte natural: "Lutherum non tam mortuum quam suffocatum
esse". (Cologne 1583, p. 294).
Da mesma forma, Claude de Sainctes (bispo de Evreux, e teólogo do rei da França no concílio de Trento) se reportando a Hosius, porém visivelmente auxiliado por alguns documentos mais especiais, se expressava assim sobre o mesmo assunto, em seu livro de Rebus Eucharistiae (Paris, 1575, p. 26):
"O diabo tem se manifestado ainda
nos acessos de fúria e nas perturbações do espírito. Aqueles com quem ele tem se
ocupado não têm descanso dia e noite, e são como que também arrastados
nas mortes súbitas e violentas, por onde ele eliminou alguns, como
Zwingle, Lutero, Carlostadt, Empser, OEcolampade e outros. Por vezes aprouve a
este espírito se mostrar tal como ele é, por espectros e aparições: isso tem
acontecido segundo os decretos de Deus para impedir que se confunda seu anjo
com o anjo decaído. Lutero, em seu livro da Missa privada, faz o
diabo intervir para conversar com ele. O diabo lhe traz argumentos contra o
sacrifício da missa, muito fortes para que ele pudesse respondê-los. Ele
descreve sua voz grave, forte, com um som terrível, tal como acontece por vezes
com homens que, depois de terem tido uma conversa noturna com o demônio, foram
encontrados mortos na manhã do dia seguinte, e isso porque Satanás vem até
asfixiar a respiração... Por nossa própria conta, é preciso acrescentar que
cremos que Lutero partiu do mesmo modo. Deitando-se à noite entupido de bebida,
na manhã ele foi encontrado estendido, enegrecido, com a língua esticada, como
um homem estrangulado. Portanto, devemos repetir isso, encontraram Lutero, na
manhã de 18 de fevereiro, "enegrecido, com a língua esticada, como
estrangulado[8]".
Todos esses dados estão de acordo
entre si, enquanto eles conduzem a informações certas. Elas estão
suficientemente de acordo com o testemunho dado pela doméstica de Lutero,
testemunho conhecido mais tarde. Ainda hoje, é possível verificar os sintomas
que acabamos de descrever baseados apenas na máscara mortuária do
Reformador.
Dr. Paul
Majunke. La fin de Luther. Paris, Hte Walzer. Traduit
par l'abbé Scklincker, 1893.
______
[1] Lutherus Islebii cum vespere
egregie esset pastus et potus, mane repertus est ad Satanant descendisse.
[2] A quibusdam proditum invenio,
eodem modo Lutherum, cum e lectulo ventris exonerandi caussa surrexisset, quo
Arius intestina fudisse". (pag. 265)
[3] Concio IX, p. 562.
[4] Contra Brent., em Feu-Ardent,
Entremangeries ministrales, p. 10, Paris, 1601.
[5] P. 8 e seguintes.
[6] Histor. Sacrament, part. II, fol. 131.
[7] Entremangeries ministrales, p. 63.
[8] P. 26
Fonte: Annales Historiæ
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