quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Primeiro relato autêntico sobre a morte de Lutero (1592)







A morte de Lutero permaneceria então um segredo; alguns iniciados presentes em seu leito de morte eram os últimos que tinham a chave dele. A questão permaneceu como tal durante mais de quarenta anos, até que enfim, em 1592, um polemista, historiador católico de renome, o oratoriano Thomas Bozio, se colocou à parte e publicou uma relação devida a uma testemunha ocular - o próprio empregado de Lutero. Esse empregado ainda era jovem quando seu mestre morreu. Ele retornou para o seio da Igreja católica. Nesse meio tempo, ele fez contato pessoal seja com Bozio, seja com seus amigos, justo no momento que Bozio escrevia sua famosa obra, frequentemente citada por teólogos do século XVI, de Dignis Ecclesiae (Roma e Colônia, 1592; 1593). Nela há um capítulo sobre o fim desafortunado de todos os hereges. É aí que, confiando em seus dados, ele estabeleceu o que segue: 

"Uma noite, Lutero tinha jantado copiosamente; ele fora dormir com um humor jovial. Na mesma noite, ele morreu sufocado. Eu tomei esse detalhe pouco conhecido de seu criado, de quem recebi o testemunho. Ele era jovem quando esteve a seu serviço; e voltou a ser um dos nossos, há alguns anos. Segundo ele, Lutero morreu miseravelmente, por meio de um laço no pescoço; porém rapidamente fizeram todos os seus familiares que estavam a parte da questão jurarem não divulgar isso, pela honra do Evangelho".

Essa informação autêntica e de fonte estranha, de forma alguma improvável em si, logo encontrou entre os historiadores católicos um crédito universal. Ela foi repetida por Cornelius a Lapide, que disse, em seu comentário sobre a segunda epístola de São Pedro, II, 12 (pseudoprophetae in corruptione sua peribunt), composta por volta de 1600: 

"É certo que Lutero, após um rico jantar, foi tomado de desesperança. Impelido pelo furor diabólico, ele passou um laço pelo pescoço e morreu assim. É o que afirmou seu criado, convertido na sequência à verdadeira fé, segundo o que relata Thomas Bozio[1]".

Assim, o famoso exegeta acrescenta, por sua parte, um esclarecimento ao que Bozio tinha narrado, a saber, que Lutero tinha perpetrado sua última ação "desperatione et furiis daemonis actus", na desesperança e impelido pelo furor do diabo.

Outro logo revelou a informação de Bozio. Foi o jesuíta Martin Becan. Ele ensinava filosofia em Colônia, quando Bozio mandara imprimir seu livro[2].

De acordo com ele, pode-se conhecer até mesmo o texto do esclarecimento devido ao criado de Lutero, pois ele possuía seu testemunho escrito, e várias cópias tinham sido feitas. 

O primeiro que mandou imprimir esse manuscrito, foi Henri Sedulius, homem cheio de obras e grande viajante. Ele tinha tomado conhecimento dele em Fribourg en Brisgau; e ele o publicou em seu livro: "Praescriptiones adversus haereses, Antuérpia 1606".

O empregado, que como vimos, retornou mais tarde ao catolicismo, faz observar desde o princípio que, antes de tudo, lhe foi prescrito guardar o silêncio sobre o triste acontecimento, porém que Deus e a voz de sua consciência tiveram de ser ouvidas mais que os homens. Ademais, ele descreve de um modo muito vigoroso como ele foi o primeiro a encontrar seu mestre, na manhã de 18 de fevereiro de 1546, "pendurado contra sua cama, e miseravelmente estrangulado". 

Encontraremos mais abaixo, no apêndice B, esse texto com a introdução in extenso de Sedulius. Não obstante, a tradução cabe conveniente aqui, dada como o processo verbal redigido pelo criado de Lutero. Ei-la:

"Sem dúvida seu piedoso pedido me insta a rejeitar todo temor em ofender ou em indignar as pessoas, e me chama a dar o testemunho que é devido à verdade; mas o que me arrasta a isso com maior veemência ainda, é o respeito que devo a Deus e a todos os santos. Sei que é preciso dar, por toda parte, glórias às obras admiráveis de Deus, e que, antes vale obedecer as ordens divinas que as dos homens. Assim, ainda que os senhores da Alemanha me tenham assinalado severamente para não revelar a quem quer que fosse a terrível morte de meu mestre Martinho Lutero, eu, contudo, não a esconderia; porém, para a glória de Cristo, farei conhecer, e pela edificação da sociedade cristã, divulgarei o que eu mesmo vi e tomei conhecimento dos primeiros, o que anunciei aos príncipes reunidos em Eisleben, e isso sem ser excitado por nenhum ódio, nem provocado por qualquer amizade ou qualquer favor. Eis, portanto, o que aconteceu:

Lutero, se encontrando em Eisleben, em meio aos ilustríssimos senhores da Alemanha, tinha concedido à sua sede uma generosa satisfação. Bêbado, ele estava absolutamente sem controle, e nós o tínhamos levado para deitar e o acomodado em sua cama. Após ter-lhe desejado boa noite, nos retiramos para nosso quarto, sem predizer, nem suspeitar de algum desfecho sinistro, e dormimos tranquilamente. Na manhã seguinte, chegando perto de nosso mestre para vesti-lo como de costume, qual não é nossa dor, quando percebemos Martinho Lutero pendurado em sua cama e miseravelmente estrangulado. Esse espetáculo de enforcamento horrível nos encheu de pavor. Após um pouco de hesitação, corremos até os príncipes e os companheiros da cidade, para lhes anunciar o execrável fim de Lutero. Eles, não menos assustados que nós, começaram por nos obrigar a prometer todo tido de coisas e levar numerosas testemunhas: em primeiro lugar, era para mantermos o assunto em silêncio, fielmente, constantemente, a fim que nada fosse revelado; depois, recolocar o cadáver maculado de Lutero na cama, porém livre de sua corda; enfim, espalhar entre o público que ele tinha morrido subitamente. Cheios de grandes promessas, iríamos manter nosso compromisso, tanto por apego e fidelidade à memória de nosso mestre quanto por causa do pedido dos príncipes, se não houvesse a força insuportável da verdade para nos impelir a fazer o contrário. A verdade pode por vezes ser oprimida, quando o respeito humano, o medo, ou a esperança do lucro se misturam, mas graças ao sentimento da religião ou ao remorso da consciência, isso não pode durar para sempre".

O cartuxo Théodore Petrejus, em seu Catalogus haereticorum (Colônia, 1629), releva a importância dessa declaração.

Ele acrescenta por conta própria (p. 120): 

"É isso que eu vi consignado em um escrito sincero de nossa biblioteca de Colônia. E eu encontrei em uma biblioteca da Silésia um velho manuscrito segundo o qual Lutero se aplicou o modo de procedimento hoje conhecido entre nós como "com a ajuda de uma toalha"[3].

O esclarecimento dado pelo criado de Lutero leva a entender, ademais, como - segundo a narração do civis Mansfeldensis citada mais acima - dois médicos e um boticário chamados para junto de Lutero apareceram imediatamente após a visita da morte. Ele dá ainda a entender como se tinha podido fazer tentativas para chamar o morto à vida, tentativas que espantam, sem dúvida, mas que são assinaladas pela Historia. Enfim, ele esclarece uma circunstância mais espantosa ainda, igualmente destacada pela Historia, a saber, o transporte do cadáver que ocorreu, do sofá onde o encontraram, para uma cama comum preparada às pressas.

Então, ainda que todos os interessados mantivessem inicialmente o silêncio sobre essa questão capital, parece, contudo, que eles esbanjaram declarações, e que relativamente em certas circunstâncias acessórias, eles não se impuseram nenhuma reserva, por exemplo, ao que concerne ao procedimento de ressuscitação, ao transporte do cadáver para a cama. 

Dr. Paul Majunke. La fin de Luther. Paris, Hte Walzer. Traduit par l'abbé Scklincker, 1893.
_______

[1] Thomas Bozius, de signis Ecclesiae, tom. 2; lib. 23, c.3.
[2] Ouvres complètes, Mayence, 1631, tom. 2, p. 460.
[3] Original em francês: "à l'aide d'un essuie-main".




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