Na primeira parte,
o confronto da teoria da reencarnação com a fé católica nos mostrou sua oposição
radical. Resta-nos esclarecer o tema à luz da razão natural. A tese com que nos
deparamos conforma-se com a realidade? É compatível com a natureza das coisas?
A segunda parte de nosso estudo exige notas preliminares. Nosso primeiro ponto
de vista fora o da fé, o principal argumento era a autoridade de Deus, que fala
pela Tradição, pela Santa Escritura e pelo Magistério da Igreja. Por assim
dizer, contribuímos passivamente ao julgamento da reencarnação pelos guardiões
da fé.
Aqui, o itinerário
é bem diferente. Nosso ponto de partida não é mais um argumento de autoridade,
mas a observação do mundo sensível. Conforme
o princípio realista, “nada há na inteligência que não seja antes nos
sentidos”, o homem que deseja compreender o mundo físico e dele extrair as leis
fundamentais deve começar a observar as coisas que o rodeiam. Assim, para
analisar as complexas noções de vida, de alma, e as relações da alma e do
corpo, convém que partamos do real concreto. Caso contrário, nos arriscaríamos
construir um sistema ― coerente e sedutor, talvez ―, mas sem relação com a
realidade. Não se trata de escrever um romance, mas de descobrir a verdade.
Todavia, o mundo sensível é apenas um ponto de partida. A inteligência busca os
princípios explicativos da natureza. Portanto, deve penetrar na intimidade
mesma das coisas, ultrapassando a ordem sensível. Deve se elevar do visível ao
invisível, a um grau de conhecimento que lhe é próprio e que deixa muito atrás
de si a sensibilidade e a imaginação. É bom tocarmos nesse assunto logo no
início do estudo, pois os temas abordados aqui são particularmente delicados. Muitos se equivocaram por não saberem
desapegar-se de uma visão puramente sensível e materialista do mundo. É o que
já constatava São Tomás de Aquino: “os antigos filósofos, não conseguindo ir
para além de sua imaginação, diziam que o princípio do conhecimento e do
movimento é um corpo”1. “E como os antigos naturalistas criam que nada
existiria se não fosse corpo, diziam que a alma é corpo”2. Não
surpreenderá, pois, se, nos desenvolvimentos que se seguem, algumas passagens
difíceis forem encontradas. Não podemos fazer economia se queremos dar à teoria
da reencarnação uma resposta fundamentada que vá para além do “bate-boca”. É
sinal de atenção e respeito aos sectários de um erro levar a sério suas
objeções e lhes responder com exatidão.
Expostos tais
pontos, vamos à tese da transmigração das almas. Quais são seus pressupostos
filosóficos e quais dificuldades suscitam?
Se a alma deve
atravessar várias vidas terrestres antes de alcançar a felicidade, passando de
corpo em corpo, está claro que não está ligada particularmente a nenhum deles.
A alma só ocasionalmente está no corpo, pois a alma é estrangeira ao corpo.
Isso pressupõe uma concepção especial da alma e de suas relações com o corpo.
Ademais, a metempsicose — que admite a reencarnação em outros seres que não os
humanos – parece dar às almas dos vegetais e dos animais as mesmas
prerrogativas da alma humana.
Alguns partidários
dessa tese afirmam ainda se lembrar de suas vidas passadas. Está posto o
problema da memória. Ela reside na alma espiritual ou no corpo? Nesse último
caso, uma mudança de corpo não deveria apagar qualquer lembrança do passado?
Somos, portanto, levados a estudar sucessivamente a alma em si, e após, suas
relações com o corpo e, finalmente, as potências da alma, em particular a
memória3.
A alma se apresenta
a nós sob os diversos aspectos, que aproveitamos para estudar separadamente com
o fim de penetrar progressivamente na sua natureza, ainda que estes aspectos
não sejam separados na realidade: a alma é o princípio da vida, a forma do
corpo, o ato do corpo.
O princípio da vida
A primeira
experiência que nos propiciam os sentidos, após a da existência das coisas, é a
do seu movimento. Vemos nuvens e pássaros se deslocar, as estações sucederem-se;
brotar a erva, os seres aparecerem e desaparecerem. Contudo, a atenta
observação desses vários momentos nos faz descobrir entre eles uma linha
demarcatória que separa o mundo em duas partes bem distintas. Alguns seres, com
efeito, só se movimentam sob a ação de um princípio exterior. Seu movimento não
segue uma determinação interna. Não têm iniciativa. Outros, pelo contrário, têm
em si mesmos o princípio de seu movimento. Os primeiros são movidos por outro.
Os segundos se movem a si mesmos.
Ora, essa diferença
é precisamente a que distingue os seres vivos dos seres não vivos. O movimento
está de tal modo ligado à vida, que — quando algo não se move mais —, dizemos
que está morto e — ao contrário, que vive — quando o movimento aparece. “O que
distingue os vivos dos não vivos é aquilo porque a vida se manifesta em
primeiro lugar e que se conserva até o fim. Ora, a primeira coisa que nos faz
dizer que um animal vive é o fato de ele começar a se mexer, e dizemos que vive
na proporção medida que esse movimento aparece nele”4. Mas o movimento que
revela a vida é somente aquele que a coisa dá a si mesma. “Quando não há mais
movimento por si mesmo, mas que é movido por outro, dizemos que o animal está
morto, que a vida o deixou. Daí parece que são propriamente chamados de vivos
os que se movem a si mesmos segundo certo tipo de movimento.”5
Observemos os
principais movimentos que se apresentam a nós: quanto ao movimento local,
constatamos que as dunas das bordas oceânicas se deslocam e mudam de forma, mas
isso se deve à ação do vento. Por si mesmas, são inertes. Ao contrário, é por
um dinamismo interior que a mosca voa e que o cão corre. Quanto ao aumento, as
estalactites subterrâneas crescem, mas unicamente por influência da infiltração
de água. Seu crescimento é apenas uma acumulação de matéria e não um processo
de desenvolvimento interno, ao passo que o musgo no teto cresce por si mesmo. O
jardineiro que poda a grama sabe que ela crescerá novamente devido a um
fenômeno que não se explica somente por influências exteriores. Em
contrapartida, o metal só se dilata se exposto a uma fonte de calor. Se os
minerais se desenvolvessem por si sós, teríamos todos nós diamantes, prata e
ouro em profusão!
A análise das
outras espécies de movimento próprias aos seres vivos, tais como a nutrição e a
geração, isso nos conduziria aos mesmos resultados. O ser vivo é o que se move
por si mesmo, graças a um dinamismo interno que não se reduz a ações
exteriores. Os filósofos resumiram isso numa definição concisa: a vida é o
movimento próprio de si, motus sui.
Mas o que, na
natureza do ser vivo, lhe permite o movimento por si próprio e, assim,
distingue-o radicalmente dos não vivos? Qual o segredo da vida, o princípio
desse movimento próprio de si? A linguagem corrente nos dá uma indicação:
“dizemos que os vivos são animados, e que os não vivos são inanimados”6. É o
fato de ser animado, de possuir uma alma, que permite a algo ser vivo.
Ser vivo é ter
alma. Isso é confirmado por uma constatação: para cada alma distinta, uma
atividade distinta. O animal, por exemplo, se desloca por um movimento próprio,
diferentemente dos vegetais. “A percepção sensível é certa mudança; ora, só a
encontramos nos que têm uma alma. Da mesma forma, o movimento de crescimento e
decréscimo só se encontra naqueles que se alimentam. Ora, só os que têm uma
alma se alimentam. É, pois, a alma o princípio de todos os movimentos”. Eis o
primeiro aspecto, a primeira definição da alma que nos dá a experiência: a alma
é o princípio da vida do vivente.
Esse primeiro
resultado vai fornecer dois elementos para responder ao problema que nos ocupa.
De fato, a alma nos foi mostrada sob seu aspecto dinâmico. Ela é a função vital
de um corpo vivo. Não é somente a harmonia ou a boa organização das partes do
corpo, mas fonte de vida e de movimento. ”A alma é causa e princípio do corpo
vivo”7. A etimologia é esclarecedora: o latim anima traduz o grego yuchv, que vem do verbo “eu respiro”. A
alma é como o sopro vital que sustenta o corpo. Isso quer dizer que a alma está
em contato direto com o corpo; sua função é ser a fonte de vida de um corpo.
Uma alma não se pode conceber sem seu correlativo ― o corpo que ela vivifica.
Ao contrário, os
adeptos da reencarnação imaginam a alma como criada para si mesma,
justificando-se por si só, sem possuir relação necessária com um corpo. A união
da alma e do corpo seria o fruto de um erro, não um estado natural. Por outro
lado, se a alma é por sua mesma natureza o princípio vital de um corpo, isso
quer dizer que ela não é o próprio vivente, mas uma de suas partes. O que vive não é apenas a alma, mas o
composto corpo e alma. Aristóteles faz uma comparação: “se o olho fosse um
animal independente, a visão seria sua alma”8. Ora, o que vê não é somente o
olho, nem é somente a visão, mas o olho dotado de visão. Uma visão sem órgão
não vê absolutamente nada! Do mesmo modo, “não dizemos que a alma anda, vê ou
escuta, pois é o homem que o faz, graças a ela”… “é o lutador que luta graças à
aptidão de lutar adquirida por ele, e não a luta que luta por si mesma”… “Da
mesma maneira, não é a alma que, por si mesma, desempenha qualquer uma das
funções vitais, mas sim o ser animado que as exerce pela alma”9.
Não é isso o que se observa na experiência comum?
Suponhamos um homem a passear por um jardim: ele cheira uma flor, recorda-se de
um fato, reflete sobre o futuro e se põe a rezar. Quem é o sujeito de todas
essas operações? Por acaso seria, sucessivamente e sem um laço entre elas, cada
uma de suas potências: a faculdade motora, o odor, a memória e a inteligência?
Seria ora seu corpo, ora sua alma? Não seria antes o mesmo personagem, que é composto
alma e corpo? Cada um de nós possui o sentimento desta unidade de nossa vida e
experimentamo-la cada vez que empregamos o pronome “eu”. É um só e mesmo “eu”
que dorme, come, sonha ou lamenta suas faltas.
Para a reencarnação, ao contrário, o vivente é só a
alma. O corpo é apenas uma morada fortuita e permutável.
A forma do corpo
O resultado a que
chegamos é confirmado ao considerarmos a alma sob um segundo aspecto. Ela é a
forma do corpo.
Afastemos o quanto
antes o significado trivial dessa palavra, segundo o qual dizemos estar “em
forma” aquele que goza de todo vigor de uma boa saúde. Tampouco se trata aqui
da “forma” exterior, da silhueta de um objeto, que nos permite dizer que a lua,
por exemplo, possui uma forma circular, ou que a bola de rúgbi, uma forma
alongada. Tratamos aqui de um componente íntimo e necessário à realidade
natural, de um elemento imperceptível pela experiência sensível e científica,
mas de que depende todo o real físico que nos cerca.
Por essa noção ser
ainda mais abstrata que a de princípio da vida, deve-se, com muito maior razão,
proceder com prudência e método para lhe esclarecer o teor. Comecemos por
analisar uma realidade que possua o nome de forma, ainda que só imperfeitamente
realize a definição ― o que os filósofos chamam de forma acidental. Estando
mais próximo de nossa percepção sensível das coisas, ela será uma etapa para
compreender a riqueza da forma de qual tratamos, a forma substancial.
Observemos o crescimento de uma cereja durante a primavera. Miudinha ao fim da
floração, aos poucos cresce, sob a influência da seiva e do sol, até atingir em
junho seu tamanho adulto. Com suas dimensões, muda também a sua cor. De verde,
torna-se vermelha, passando pelo amarelo. Além disso, se alguma mão gulosa a
colhe quando madura, ela sofre um deslocamento até então desconhecido.
Assistimos, pois, ao seguinte fenômeno: uma só e mesma coisa, uma substância ―
aquela determinada cereja ― conhece uma série de variações. A cereja apresenta
sucessivamente qualidades distintas. Ora, é fácil de ver que as diferentes
características (tamanho, cor, lugar) que lhe compõe não são a própria cereja.
Apenas lhe dão uma maneira particular de ser. Elas sobrevêm ao fruto já
existente para determiná-lo. Isso é o que chamamos de acidentes (de accidere, sobrevir), de formas
acidentais.
Pode-se, de igual
forma, analisar o tecido de uma roupa. Por causa de sua estrutura, possui certa
realidade: é uma “coisa”, independentemente de sua cor. A brancura da lã não é
a lã. Mas a cor lhe dá uma maneira determinada de ser, faz com que seja branca.
Da mesma maneira,
se olharmos uma criança manejar a massa de modelar, a matéria que ela
transforma possui certamente uma figura, mas sempre permanece apta a receber
outra, segundo o capricho da criança.
Assim, nesses três
exemplos como em toda a realidade, a observação nos revela dois elementos
correlativos. Por um lado, o sujeito que existe por si mesmo. Ele apresenta
qualidades próprias, mas é totalmente distinto delas e permanece apto a outras
determinações. É o elemento “material”. A matéria, nesse sentido, compreende-se
como um sujeito que recebe, como uma pura espera, como uma indeterminação de
ser de tal ou qual forma, de sofrer uma mudança. No patamar onde nos pusemos, o
elemento material é a substância mesma que recebe os acidentes. Por outro lado,
os seres físicos comportam um elemento determinante que lhes dá uma dada
disposição concreta, tal ou qual maneira de ser. É o elemento “formal”, a forma
acidental. Ela sobrevém a uma coisa, ou existe em uma coisa, que se relaciona
com ela como uma matéria.
Passemos agora à
análise da forma substancial. A distinção que acabamos de fazer encontra-se num
nível muito mais profundo, se nos interessarmos não tanto pelas variações das
coisas, mas pela sua constituição íntima. Todas as coisas naturais são
compostas de um princípio material absolutamente indeterminado, e de um
princípio formal que dá ao composto a sua própria natureza. Dois fenômenos da
vida ordinária no-lo fazem descobrir: a destruição e a nutrição. Quando um
jardineiro corta e queima a erva, cada haste sofre uma transformação muito mais
radical que a que encontramos mais acima. Ela é destruída em seu próprio ser.
Após passar pelo fogo, deixa absolutamente de existir. Mas nem tudo o que a
constituía desapareceu. Um elemento de sua natureza transformou-se em cinzas.
Uma parte da erva perdeu seu ser de haste de erva e recebeu outro, o de cinza.
Esse elemento ― substrato da coisa material, que recebe o ser de uma
determinada natureza ― faz o papel de matéria, que vimos acima, mas de uma
forma muito mais radical. Isso é o que os filósofos chamam de matéria-prima.
Ela não é objeto de experiência científica, mas tampouco um composto menos
necessário a toda realidade natural. A matéria-prima é em si absolutamente
indeterminada e, por isso, pura espera, toda receptividade. Ele tem de receber
um princípio alheio para existir e ser a matéria de uma determinada coisa.
O princípio que
tira a matéria-prima de sua indeterminação é a forma substancial. Esta não se
contenta em dar uma qualidade ou maneira de ser particular, como, um pouco
depois, o faz a forma acidental. Ela dá ao composto a sua própria natureza. Faz
com que a matéria-prima se torne a matéria de um ser de determinada natureza.
O mesmo fenômeno
ocorre na nutrição. O alimento é destruído pela digestão, perde sua natureza
própria para ser assimilado ao corpo vivo. A matéria é, ainda neste caso,
revestida de uma nova forma substancial, que é a do ser vivo.
Outro fato permite
descobrir a existência e as funções respectivas da matéria-prima e da forma
substancial. Cada realidade natural é, com efeito, dotada de propriedades
opostas. Se considerarmos uma de suas partes, ela está sujeita à divisão. Todas
as suas partes, consideradas em si mesmas, tendem a se separar do todo.
Contudo, a coisa física goza de unidade enquanto existe: ela perfaz um todo. Do
mesmo modo, se por um lado, a coisa tende a se difundir ou a crescer, por outro
lado, ela é limitada.
Tais fenômenos
contraditórios só podem ser explicados por princípios internos irredutíveis,
que entram na constituição íntima das coisas: a matéria-prima, princípio da
divisibilidade; e a forma substancial, princípio da unidade e da limitação.
Esforcemo-nos por tirar dessas observações as funções próprias da forma
substancial. Elas são em número de três.
A matéria-prima nos
aparece antes de tudo como um componente de coisas totalmente indeterminado,
apto a ser matéria de qualquer realidade. A forma substancial tem por função
primeira dar uma natureza à matéria. Ela a faz ser de uma determinada espécie,
é o princípio de tal ser. “Porque determinada matéria é determinada coisa?
pergunta Aristóteles. Por exemplo, estes materiais são uma casa, por quê?
Porque a quididade de casa lhes pertence como atributo. Diríamos ainda que esta
coisa aqui é um homem ou que este corpo, possuindo tal determinação, é um homem”.
Qual é a sua causa? “Essa causa é a forma em virtude da qual a matéria é uma
coisa determinada”10. “É pela alma que a matéria torna-se uma natureza, e não o
contrário”11. “É a forma que dá ao composto sua qüididade, ela é ‘aquilo que a
coisa tinha de ser’”12.
Também constatamos
que a matéria era princípio de divisibilidade. A forma é, pois, princípio de
unidade da coisa. Ela une aquilo que, por si, é vário. O que quer dizer que,
entre os vivos, é a forma que preside a organização e o crescimento do corpo.
Ela dirige as transformações da matéria para fazer dela um todo coerente e
organizado.
Enfim, isso se depreende
claramente da observação de que a forma substancial não dá à matéria somente
sua qüididade (ser de tal espécie) e sua unidade, mas ainda lhe dá o existir
enquanto tal. Antes de receber sua forma, a matéria não existe. Esta encontra
naquela sua perfeição. Dizemos, em linguagem filosófica, que a forma é o ato da
matéria.
Tais considerações
nos distanciam de nosso tema? Veremos que não. Ao contrário, são decisivas para
responder à tese da reencarnação.
No ser vivo, a
forma substancial que acabamos de analisar não é outra coisa senão a alma. O
que dissemos da matéria e da forma se aplicará diretamente ao corpo e à alma.
Provemo-lo, com Santo Tomás. A alma, como vimos, é o princípio da vida do
corpo. Ora, a vida é o “movimento próprio de si”. Vivo é o que é capaz de atividades próprias. Ora, a observação nos
mostra a ligação entre o ser e o agir. Por um lado, vemos que a natureza do
agente (seu ser, tomado como sua qüididade) determina a natureza da ação ―
assim, uma cerejeira produz cerejas e não peras ― e, por outro lado, que nada
pode agir antes de existir e que um ser encerra toda operação após sua
destruição. Desta forma, a alma, princípio da vida e do agir do ser vivo, é
também o princípio de seu ser; é dizer, sua forma. “O porquê de uma coisa agir
de certa maneira é a sua forma, à qual atribuímos a operação… A razão disso é
que nada age senão enquanto está em ato: logo, é por um mesmo princípio que uma
coisa está em ato e age. É manifesto o seguinte: em primeiro lugar, aquilo que faz
que um corpo esteja vivo, é sua alma”13.
A alma é, pois, a
forma substancial do corpo. Esta nova definição dá-nos três novas respostas à
reencarnação. É suficiente aplicar ao caso da alma as três funções da forma
substancial, estudadas acima. Limitamo-nos aqui às duas primeiras, reservando
para um parágrafo ulterior o estudo mais aprofundado da alma enquanto ato do
corpo.
Primeiramente,
vimos que a forma dá à matéria sua natureza. É o princípio que constitui o
composto numa determinada espécie. Se determinado animal é um gato, deve-o à
sua alma felina. Determinado homem deve o ser homem à sua alma humana. Não se
pode conceber uma alma sem relação a um corpo. Sua função primeira é a de ser o
princípio da essência desse corpo. Por conseguinte, uma determinada alma não
pode dar outro ser senão o seu. Ela é realmente a origem de uma determinada
natureza. Se a transmigração das almas fosse possível, um indivíduo que tivesse
sido, numa vida passada, um esquilo ou um nabo, seria para sempre um esquilo ou
um nabo. Se tivesse alma de suíno, seria, no sentido próprio da palavra, um
suíno em sua própria natureza. Eis algo para tirar o ânimo de um bom número de
nossos oponentes!
A forma
substancial, diga-se também, é o princípio da unidade da coisa. Assim, num ser
vivo, a alma preside o desenvolvimento e a estruturação do corpo. “O movimento
de crescimento ou diminuição só existe nas coisas que se alimentam, e só se
alimenta o que possui uma alma. É, pois, a alma o princípio desses
movimentos”14. O corpo assim constituído é, para a alma, um organismo ― no
sentido etimológico da palavra. “Órgão” vem do grego organon, instrumento, utensílio. O corpo é um composto de partes
várias e hierarquizadas, a serviço da alma para lhe permitir exercer suas
funções. “Todos os corpos físicos são órgãos da alma… como que existindo tendo
em vista a alma”15.
Logo, uma alma de
uma dada espécie vai elaborar um corpo que corresponda exatamente à sua
natureza, o que lhe permitirá perpetrar os atos que lhe são próprios. Eis a
razão proposta por Santo Tomás para mostrar que a uma alma humana, dotada de
tal forma de inteligência, somente poderia corresponder um corpo dotado de tais
faculdades e tais sentidos externos16. Isso vale não somente quanto às espécies
(num corpo humano, alma humana), mas também para cada indivíduo. Uma alma
concreta é formada para si mesma, e não pode ter senão tal corpo, de tal
compleição. Isso contradiz, de forma absoluta, a reencarnação. Ela só seria
possível para uma alma num corpo absolutamente idêntico.
A união da alma ao
corpo, a título de forma, levanta uma dificuldade. Como é possível que a alma
humana, tão elevada em dignidade por sua inteligência e vontade livre, esteja
unida tão intimamente à matéria, realidade vil e desprezível? Não é uma
insuportável humilhação para o espírito ter parte com esse princípio de
corrupção? Com certeza, essa objeção mora no coração de muitos adeptos da
metempsicose, é como que a raiz oculta de seu posicionamento. É possível
enxergar aqui um traço de maniqueísmo, para o qual tudo que é espiritual vem de
um princípio bom e é, portanto, a única realidade válida, enquanto a matéria,
procedente de um princípio mau, é objeto de desprezo. A presença da alma no
corpo torna-se um castigo, uma escravidão da qual convém libertar-se na medida
do possível. Tal estado é uma imundice, uma humilhação, uma limitação contra a
natureza.
A definição de
alma, que acabamos de esclarecer, responde por si mesma tal dificuldade. Uma
vez que as relações da alma e do corpo são as da forma com a matéria, o corpo é
o órgão, o instrumento da matéria. Ora, não é de forma alguma humilhação a um
agente se valer de um utensílio. Ao contrário, a aptidão para se servir de um
instrumento é, para ele, sinal de dignidade. A mão do homem, por exemplo,
excede os demais membros pelo fato de ser capaz de utilizar uma régua ou uma
tesoura. A causa principal (a mão) eleva as causas instrumentais (os
utensílios) a uma dignidade superior, mas de modo algum se diminui. Santo Tomás
teve o cuidado de precisar que “quanto mais nobre é uma forma, mais domina a
matéria corporal e menos se submete a esta; logo, ultrapassa-a por sua operação
e virtude”17.
Mas a superioridade
da alma humana sobre o corpo material não torna sua união caduca ou artificial.
Santo Tomás ainda nos diz: “A união entre uma substância intelectual e a
matéria corporal não resulta em qualquer coisa de menos una que a forma do fogo
com sua matéria; ao contrário, resulta numa unidade muito maior. Porque quanto
mais uma forma domina a matéria, mais perfeita será a unidade entre a matéria e
esta forma”18.
Desta feita, o fato
de a alma ser forma do corpo assegura ao composto alma-corpo uma unidade
substancial, única, superior a qualquer outra unidade natural, ao mesmo tempo em
que assegura à alma humana sua dignidade de substância espiritual, que
sobrevive à destruição do corpo. Essa função da alma impede os extremos opostos:
o da reencarnação, que nega toda solidariedade, toda união substancial entre a
alma e o corpo; e o erro dos que vêem a alma humana apenas como organizadora da
matéria, recusando-lhe, pois, o papel de substância espiritual indestrutível.
O ato do corpo
Retornemos um pouco
e detenhamo-nos na terceira característica da forma substancial: ela é o ato da
matéria. Isso vai nos permitir chegar a uma definição mais precisa da alma: ela
é o ato do corpo.
Ao final desse novo
esforço, daremos à reencarnação o golpe definitivo. Tratemos, pois, de estudar
a noção de ato, e a de potência, que lhe é correlata, para aplicá-las ao caso
da alma, e, daí, tirar luzes para o nosso objeto.
Antes de tudo,
afastemos de ambos os termos a acepção da linguagem corrente: o ato tomado como
ação, atividade, e a potência entendida como força. Aqui falamos de realidades
muito mais profundas, inalcançáveis pela experiência científica. Nós analisamos
o real que nos rodeia, não sob o ângulo da vida ou da qüididade, mas na ordem
da existência. Três fatos da experiência vão nos conduzir à noção de ato e
potência. Primeiramente, o movimento. Ele só se explica pela existência de uma
coisa que está privada de algum bem, de uma qualidade, de uma determinação, e
que busca possuí-los. Duas realidades bem distintas apresentam-se em todo
movimento: por um lado, um ser que tende a um fim e recebe progressivamente uma
nova qualidade e, por outro lado, uma perfeição realmente possuída, o mesmo ser
que chegou a seu fim. O movimento só se explica se existe uma coisa perfectível
― que dizemos estar “em potência” ― e um termo, uma perfeição alcançada, “o
ato”.
Por exemplo,
ponhamos uma panela de água fria sobre o fogo. Ela é toda receptividade, toda
tendência, em relação ao calor. Desejamos que ela atinja a temperatura de
oitenta graus — enquanto não a tiver atingido, estará “em potência” quanto à
essa temperatura. Quando a possuir atualmente, realmente, dela se dirá estar
“em ato”. Os oitenta graus terão se tornado realidade.
O mesmo vale para a
cerejeira do jardim. Por sua natureza, ela é apta a produzir cerejas. Estas,
uma vez maduras às pontas dos galhos, são uma perfeição da árvore, o termo de
toda sua atividade. A cerejeira carregada de cerejas é dita em ato em relação à
mesma árvore sem os frutos, que está em potência em relação às cerejas. Em
todos os casos de movimentos que conhecemos, chamamos “ato” o termo, a
conclusão do movimento. A coisa que atinge sua finalidade é dita possuir “em
ato” tal perfeição, encontrou o pleno desenvolvimento que buscava. Essa mesma
realidade, enquanto imperfeita, enquanto tendia a tal riqueza para possuí-la,
estava “em potência”.
Encontramos a mesma
distinção ato e potência em outra ordem ― a da atividade. É um caso particular
do exemplo precedente. A ação é certa perfeição. Quando um sujeito passa da
inação à ação, conhece certo desenvolvimento, exerce suas faculdades. “O ato
será como o ser que constrói está para o ser que possui a faculdade de
construir; ou o ser acordado para o que dorme; ou o ser que vê para aquele que
possui a visão, mas está com os olhos fechados; ou ao que foi separado da
matéria à matéria; ou o que é elaborado para o que não foi elaborado. Damos o
nome ato ao primeiro membro dessas várias relações; ao outro, o de potência”19.
A terceira
experiência, que nos faz descobrir as noções de ato e de potência, é a da
linguagem. Limitemo-nos a considerar os significados do verbo ser e estar. [N.
da P.: Esse texto foi escrito originalmente em francês, língua que possui, como
a maioria das línguas europeias, um só correspondente para os verbos “ser” e
“estar”, o verbo être]. Esses verbos possuem distintos significados, como nas
seguintes expressões: Pedro é homem, Pedro está doente; ou nessa que se segue:
Pedro é20. No primeiro caso, traduz uma essência, uma natureza ou modo de ser;
no segundo caso, exprime a existência real, o fato de Pedro exercer a
existência. Tal distinção da linguagem traduz a distinção, na realidade
concreta, entre essência (qüididade) e existência, que é ademais uma distinção
entre potência e ato. Podemos perfeitamente pensar num Pedro que possua
natureza humana e esteja doente, sem que, para tanto, exista realmente. A
existência concreta é um termo, uma perfeição sem a qual o sujeito considerado
é apenas aptidão a ser. Passar desta pura capacidade de ser à existência é
passar da potência ao ato. “O ato, portanto, é o fato de uma coisa existir
realmente e não do modo por que dizemos que existe em potência, como quando
dizemos, por exemplo, que Hermes está em potência na madeira (a estátua de
Hermes está em potência na matéria da madeira), ou o segmento da reta na reta
inteira, porque aquela poderia ser extraída desta; ou quando chamamos de sábio
em potência aquele que não especula, caso ele possua a faculdade de especular:
pois bem! modo bem diferente deste é a existência em ato”21. A existência em
ato é a existência plenamente realizada.
Esta perfeição, que
é a existência, é o ato mais fundamental, é o que mais perfeitamente realiza a
noção de ato: o ato de existir. É o ato fundamental, pois é o que sustenta e
possibilita os demais. Antes de ser belo, de correr rápido e de se reproduzir,
o cão deve existir. Deve possuir a existência em ato. Os outros atos que o
podem aperfeiçoar, estes se apoia no seu ato de ser. Ato que é isento de toda
outra consideração anterior. O ato de ser é simplesmente a perfeição que tira
uma coisa do nada e da virtualidade de sua causa.
Em suma, as três
observações precedentes chegam a esta conclusão: o ato é uma entidade que
aperfeiçoa e determina uma coisa em certa linha. É a sua realização, sua
plenitude. É a efetiva realização de uma qualidade. Ao contrário, a potência é
uma entidade imperfeita, capaz de aperfeiçoamento. É a capacidade, o movimento
para tal perfeição. É espera do ato, recebendo o aperfeiçoamento e o ser do
ato.
Quais são as
relações entre o ato e a potência?
• A potência e o
ato são correlativos. O ato, dizíamos, é o que dá uma determinada perfeição,
única, e a potência é o que recebe tal perfeição. Um não pode ser concebido sem
o outro e, exceção feita a Deus, que é ato puro, não pode haver um sem o outro.
Uma potência não é capacidade para qualquer perfeição, mas de um determinado
ato. E o ato é tal realização, tal plenitude. A potência é potência para um ato
único. O ato é ato de tal potência. Por exemplo, não pode existir um trem
correndo sobre os trilhos que não vá a nenhuma parte. O movimento só existe em
função de sua conclusão, de seu termo efetivamente alcançado.
• A potência está
para o ato. Ela é, com efeito, o objeto apto a receber uma perfeição, está toda
orientada para isso. O ato é o fim da potência, o termo para o qual tende. A
coisa imperfeita, inacabada, está para a coisa perfeita, acabada, tal como o
movimento está para seu termo. A potência está para o ato e é determinada por
ele, não se compreende senão por ele. Assim, ela é dependente do ato no seu
mesmo ser. O termo grego enteleceia (enteléquia),
que traduz a palavra “ato”, exprime-o à perfeição, visto que construído sobre o
radical telos ― o fim, o resultado, a
conclusão.
• Nenhum
intermediário intervém no composto potência-ato para assegurar-lhe a unidade.
Se o suposto intermediário fosse ele mesmo uma potência, não existiria,
propriamente falando ― seria indeterminado, e não faria senão aumentar a
indeterminação da potência. Se fosse ato, daria à potência o ato de ser; uma
vez que este é o ato fundamental, que sustém todos os outros, formaria com a
potência uma realidade determinada, o que tiraria desta o caráter de potência.
O composto desta potência e do ato intermediário estaria, como conjunto, em
potência em relação ao ato pretendido. Basta compreender as noções de potência
e de ato para entender que elas são ordenadas uma a outra e que se unem
imediatamente.
• O que acaba de
ser dito vale, em primeiro lugar, para a união da potência e do ato que resulta
num ser uno, subsistente por si mesmo, uma substância. Acima, demos o exemplo
de uma panela de água aquecida a oitenta graus. Naquele caso, um ser completo,
a água, recebe um ato acidental, a temperatura. O objeto, que já realizava
perfeitamente a essência da água, só se considerava em potência de certo ponto
de vista ― a temperatura de oitenta graus. O todo, doravante formado — água e
calor —, é um todo acidental. A potência já estava em ato naquele modo de ser.
Aqui, a unidade do composto ato-potência é apenas ocasional. A união
substancial, pelo contrário, resulta em um ser que é absolutamente uno por si
mesmo, antes de toda outra determinação acidental. Ora, essa unidade primeira e
elementar só pode originar-se da união com uma potência “que nada mais é que a
potência daquele ato (…). Todas as vezes que um só ato se une a uma só
potência, só se produz um só ser em razão daquele ato; e, por conseguinte,
temos um ser que é ser por si mesmo e uno por si mesmo”22. Isso nos faz
compreender melhor a unidade das coisas, em razão de sua composição de potência
e de ato. As substâncias são absolutamente “unas”, uma vez que constituem o
fruto da união de uma só potência e de um só ato: de uma potência que só é
potencia desse ato; de um ato que só é ato dessa potência.
Essas precisões das
relações do ato e da potência esclarecem o problema da reencarnação, que nos
ocupa? Nós a vemos desde a primeira questão que Santo Tomás se colocou, no seu
estudo da alma humana na Suma Teológica: A alma é corpo?23. Sua resposta nos
leva diretamente ao cerne da essência da alma: a alma é o ato do corpo. Com
efeito, a alma não é somente um princípio de vida do corpo, ela é seu primeiro
princípio de vida. Ora, é pelo fato de ser um corpo que um corpo é vivente?
Claro que não, porque há corpos que não são viventes ― os minerais, por
exemplo. “Convém a um corpo ser vivo, ou mesmo ser princípio da vida, pelo fato
de ser tal corpo”24; isto é, pelo fato de ser constituído em uma espécie
determinada, de realizar em ato as potencialidades de sua essência, de formar
uma substância. Em um corpo vivo, o princípio primeiro da vida, que é sua alma,
como vimos, é também o princípio que o faz estar em ato, é o seu ato. Enquanto
estiver em potência, o corpo não estará vivo. O princípio de vida é também o
princípio que lhe dá o ser. A alma é o ato que concorre com o corpo para formar
uma substância, é o ato primeiro do corpo. “Na matéria, a coisa está em
potência; na forma, está em ato”25. Daí a definição de alma, descoberta por
Aristóteles: “A alma é o ato primeiro (enteléquia) de um corpo natural (para
distingui-lo dos corpos artificiais), orgânico (dotado de instrumentos, organa,
bastantes para as operações da alma), possuindo a vida em potência (o composto
alma-corpo é algo vivo e pode desempenhar as atividades vitais de sua
espécie).”26
Recapitulemos as
considerações que fizemos sobre as relações do ato e da potência. Ao tratarmos
de alma e corpo, estamos precisamente naquele caso da união substancial. Ato
primeiro do corpo, a alma é, pois, sua realização na ordem do ser, sua
conclusão. Desse fato, ela constitui com o corpo uma substância, uma realidade
completa, una. O fruto dessa união é um ser único e, no caso do homem, uma
pessoa. Suponhamos o impossível, que a alma possa se unir com outro corpo: ela
formaria com este uma realidade outra, um sujeito de vida e responsabilidades
totalmente diferentes. Seria absurdo dizer, por exemplo: “Fui tal homem”, ou
“serei tal outro”. Ademais, unidos como ato e potência, a alma e o corpo são
feitos um para o outro. O corpo é para a alma. Em sua constituição íntima, tal
alma não é senão o ato de tal corpo. Esse mesmo corpo é apenas a potência de
tal alma. Esta só existe em função daquele corpo ― só pode dar existência
àquela potência, àquele corpo concreto ao qual vemos que está presentemente
unida. Nós o constatamos mais uma vez: a reencarnação contradiz radicalmente a
estrutura mais íntima da realidade natural. Logo, ela é impossível.
Resumamos os
resultados obtidos:
• A alma é o princípio
da vida do corpo: logo, está necessariamente em relação com um corpo.
Contrariamente à tese da reencarnação, o que vive não é somente a alma, e sim,
aquele composto de alma-corpo.
• A alma é a forma
do corpo. A alma dá ao corpo sua essência. Uma alma humana não pode comunicar a
um corpo a natureza vegetal. Se sua alma foi a alma de uma banana, você ainda é
uma banana.
• A alma é o ato
primeiro do corpo. Ela dá ao corpo, e só a esse corpo, seu próprio existir. O
composto alma-corpo é único.
A análise atenta da natureza da alma desmente, por si só, a tese da
reencarnação.
O estudo das potências da alma confirma tal resultado. Limitar-nos-emos aqui às
potências que mais se relacionam com nosso objeto: a inteligência e a memória.
A inteligência
humana
Os filósofos
oscilam entre duas concepções contraditórias da inteligência humana. Uns
gostariam de reduzi-la a um fenômeno biológico. O que chamamos espírito não
seria senão o exercício de um cérebro desenvolvido ou da imaginação. Eis a
tendência sensualista. Para outros, ao contrário, a inteligência humana seria
um puro espírito decaído. Atribuem-lhe ora a estrutura da inteligência divina,
que cria ela mesma seu objeto; ora a dos anjos, que recebem seus conhecimentos
por iluminações vindas do alto. Eis a tendência idealista. Esta última corrente
encontra-se na raiz da versão contemporânea da tese da reencarnação. Argumentam
que tendo nasa inteligência humana nascido para estar em relação direta com o
mundo dos espíritos, sua estada no corpo é contra a natureza. Ele vela o olhar
da alma e obscurece a inteligência. A união da alma e do corpo dá-se em
detrimento da alma, que se encontra como que paralisada por sua queda.
Santo Tomás
responde a esta maneira de ver num artigo de singular beleza27, onde brilham a um
tempo o bom senso e a sabedoria do doutor. “Convém à alma intelectiva estar
unida a certo corpo?”, i. é, a um corpo material dotado de sentidos.
Antes de tudo, precisemos uma questão de método:
“Uma vez que não é a forma que está para a matéria, mas a matéria que está para
a forma, é da forma que se retira a razão por que a matéria é tal, e não o
contrário”. Como dizíamos acima, o corpo está para a alma, é a alma que o
determina e o constrói. Assim, para saber se a união da alma humana com o corpo
é boa ou, ao contrário, se é nociva à alma, é preciso analisar a estrutura
desta e, no presente caso, a natureza mesma da inteligência humana.
“Ora, a alma intelectiva, como vimos acima28,
segundo a ordem da natureza, possui o grau mais baixo entre as substâncias
espirituais, pela razão de que não tem, por sua natureza, um conhecimento
infuso da verdade, como os anjos, mas tem de apreender a verdade a partir das
coisas divisíveis (materiais), através dos sentidos” (realismo de Santo
Tomás!). Eis um fato que não podemos negar, salvo se negarmos a evidência.
“Como nos mostra a experiência, uma vez que a alma está unida ao corpo, não
pode conhecer nada senão dirigindo-se às imagens das coisas sensíveis”29. Por
si mesma, a inteligência é uma como tábula rasa. Não pode formar conceitos
senão a partir do mundo material que o rodeia. “Ora, na natureza não há
privação das coisas necessárias. É preciso, pois, que a alma intelectiva possua
não somente a virtude de apreender (virtus intelligendi), mas também a virtude
de sentir. Ora, a ação do sentido só se pode dar com um instrumento corporal. É
necessário que a alma intelectual esteja unida a certo corpo que lhe possa ser
o órgão conveniente do sentido”30.
A análise da
realidade da inteligência humana, seu funcionamento, seus limites, mostra-nos
que a união da alma e do corpo é uma necessidade da natureza. “É para o
proveito da alma que ela está unida ao corpo, conhecendo à medida que se dirige
às imagens das coisas sensíveis”31.
Eis posta novamente
em xeque a reencarnação.
A memória
Recordemos a
mensagem religiosa da metempsicose: as almas conhecem uma sucessão de vidas
terrestres em expiação de suas faltas passadas. Mas, para que uma punição tenha
razão de ser, convém que o culpado lembre-se um pouco que seja dos atos de que
é incriminado. De fato, ainda que seja um caso raro, algumas pessoas dizem recordar-se de suas vidas passadas. Por
exemplo, Paco Rabane nos garante que fazia parte da conjuração que tentou
assassinar Tutankamon, no Egito, e que se lembra dos menores detalhes do
caso32. Sem dúvida! Mas, que é a memória? Se ela é uma faculdade sensível,
ligada então ao corpo, não deve desaparecer com este? Se ela reside na
inteligência, pode conservar as lembranças sensíveis e concretas, tais como
cores, odores, circunstâncias de tempo e lugar? Santo Tomás resolve essa
dificuldade no artigo I, q. 79, a. 6: “A memória está na parte intelectual da
alma?”
A “Memória” pode
ser entendida de duas maneiras. Em sentido amplo, ela é uma faculdade cuja
função é conservar as formas das coisas. Quando conhecemos, nossos sentidos ou
nossa inteligência são determinados pela forma do objeto conhecido. O próprio
ato de conhecimento consiste em que a potência cognitiva possui em si, de certo
modo, a forma do objeto. Ora, bem sabemos por experiência que, mesmo depois de
ter abandonado a coisa conhecida, guardamos-lhe a impressão em nós. Conservamos
a imagem de um ser que nos é caro, podendo rapidamente trazer de volta à
consciência essa ideia, essa verdade espiritual.
Desse ponto de
vista, podemos dizer que há uma memória na inteligência ― que nada mais é que a
mesma inteligência. Quando ela não está mais em contato com seu objeto, guarda
o conhecimento que dele tem ― pelo menos, em estado de suspensão. Poderá
reconsiderá-lo à vontade. Mas notemos logo que uma potência não pode conservar
senão o que ela recebeu. Se eu colocar cinco reais num cofrinho, ele só me dará
cinco reais. Se eu introduzir certa informação na memória do computador, será
essa mesma informação que ele guardará. Ora, a inteligência é uma faculdade
espiritual. As formas que recebe são formas abstratas, conceitos universais,
separados de toda consideração de tempo e lugar, despojados de toda
característica particular de cor, odor etc. Por exemplo, numa pessoa, a
inteligência só considera sua natureza humana, seus caracteres universais, não
a cor de seus cabelos ou o tom de sua voz. Só a memória sensível ― ligada à
matéria corporal ― recebe e retém tais circunstâncias concretas.
Ora, precisamente,
o lembrar-se não é somente considerar uma coisa em nós, com as informações que,
no passado, tenhamos recebido dela, mas considerar sua relação com esse
passado. Em sentido estrito, a memória baseia-se no passado enquanto passado.
Consiste em situar determinadas coisas no passado. Tais formas aparecem em mim
como as de uma coisa que não é mais e que, num certo momento do tempo, era. Em
sentido estrito, a memória se interessa por uma circunstância determinada ― o
tempo. Ora, justamente “o passado, enquanto passado, pois que significa ser num
determinado tempo, é uma condição particular”33. É uma característica concreta,
particular, ligada à matéria. Nesse sentido, a memória não se situa na
inteligência, mas na sensibilidade, ligada à constituição do corpo.
Assim, mesmo que a
reencarnação fosse verdade, seria estritamente impossível lembrar-se de um
determinado evento concreto de nossas vidas passadas. Cada mudança corporal
destruiria ipso facto todas as informações particulares recebidas durante uma
vida inteira.
À guisa de
explicação
Resta-nos
confrontar um argumento que é tido como definitivo a favor da reencarnação ― o
dos fatos. Contra factum non fit
argumentum. Os melhores argumentos não se sustentam contra os fatos. Se a
reencarnação é impossível, como interpretar os abundantes testemunhos dos que
dizem se lembrar de vidas passadas? São todos charlatões? Parece-nos difícil
sustentar tal solução; convém proceder por eliminação. Nosso primeiro artigo
excluiu por absoluto uma intervenção divina. Deus não pode ― visto que não pode
se contradizer ― querer a reencarnação, nem dela dar a ilusão aos homens.
Quanto a isso, a sã filosofia acaba de mostrar-nos que essa tese está em
oposição radical às leis da natureza. Um pensamento sadio e reto não pode
portanto aderir a tal tese.
Dois fenômenos
restam, pois, que poderiam explicar tais experiências impactantes: influência
preternatural e doença psíquica.
Não se deve rejeitar
rapidamente a intervenção diabólica. O demônio possui efetivamente um poder
sobre nossa imaginação e sentidos. Ele pode perfeitamente simular em suas
vítimas a lembrança de uma vida passada, com detalhes espantosos, fazendo-lhes
falar uma língua até então deles desconhecida34. Ademais, como se espantar que
o diabo exerça até hoje uma influência tão larga, visto que muitas são as
pessoas que se consagram a ele, apelam às forças ocultas, aos “espíritos”, às
fábulas da astrologia? Por assim agirem, abrem suas almas ao demônio.
Demais,
lembremo-nos do caráter religioso da metempsicose. Ela não é um sistema
filosófico, mas se pretende uma explicação global do mundo, do homem, do seu
destino. Ela é uma religião, e tanto mais perigosa por se apresentar sob o aspecto
de uma disciplina austera. Somos autorizados a nos perguntar: a quem aproveita
o crime? Não há mão invisível, força preternatural, por trás das numerosas
variantes da reencarnação, de sua propaganda prodigiosa e até mesmo de certos
fatos sobre que se apoiam? Duas vozes autorizadas parecem-nos soprar a
resposta: “Afirmo que o que os pagãos oferecem em sacrifício, fazem-no aos
demônios, e não a Deus”35. “Não somente os deuses dos gentios (os pagãos) não
são deuses, senão que são ídolos de demônios”36.
Mas é preciso ir
tão longe para interpretar todos os casos de reminiscências de outras vidas?
Parece que não; devemos examinar outra explicação, que não exclui a primeira:
os problemas mentais. As doenças psíquicas, das quais que se fazem vítimas
muitos de nossos contemporâneos, o abuso do álcool, o uso de alucinógenos, não
podem explicar o fenômeno que estudamos? Para não fazer afirmações gratuitas,
nos dirigimos a um profissional, a um psiquiatra. Seu conhecimento de doenças
mentais e sua experiência vêm confirmar os resultados que obtivemos por meio da
filosofia. Eis o texto de sua resposta:
“Refutar a
metempsicose e todas as teorias que gravitam em torno da reencarnação... Algo realmente
louvável. Tais ideias se propagam mui rapidamente, e adere-se a elas sem
refletir, por esnobismo.
Em termos de patologia
psiquiátrica, deparamos com discursos delirantes em duas circunstâncias. Foram a
propósito da vida passada.
O primeiro caso é o
das psicoses delirantes crônicas:
― na psicose alucinatória crônica;
― nos delírios imaginativos (ou delírios
parafrênicos);
― nos delírios esquizofrênicos.
“Convém saber que o
delírio, ou as alucinações, enquanto sintoma, é um meio de defesa. O paciente
escolhe. sem o saber, inconscientemente, tornar-se delirante, para amainar a
angústia que lhe acomete face ao enfrentamento de uma realidade penosa e com a
qual não pode estabelecer laços. Daí, então, uma convicção inabalável do
delirante por seu delírio, uma apego desesperado a esses sintomas. Seria
preciso ser louco para não crer nisso, dizia Gaëtan de Clérambault. Pudemos
observar que alguns delirantes, brutalmente despojados do delírio através de
uma cura neuroléptica, apresentavam grave estado depressivo, podendo-se
suicidar.
O segundo caso é o do
uso, por parte de toxicômanos, de alucinógenos (tais como, LSD, cogumelos, etc..).
Encontramos na embriaguez alucinatória um bom número dos sintomas clássicos da
esquizofrenia e eventuais episódios delirantes.
“Você não me pediu
como explicar o fato de que muitas pessoas se lembram, de boa fé, das vidas
passadas?:
― se se tratar de
pessoas “normais”, de nenhuma forma merecem crédito. São mistificadores
― no caso de delirantes
‘curados’, digamos que possam ter lembranças dos momentos fecundos da
respectiva existência.
Pessoalmente, nunca
encontrei pessoa, tida como normal. com lembranças de vida passada”.
Este estudo sobre a
reencarnação deu-nos a felicidade de constatar novamente o acordo perfeito
entre a Revelação, a sã filosofia e as ciências humanas. Ele nos propõe
igualmente o único remédio para essa epidemia: o retorno à uma fé profunda, à
filosofia realista de Aristóteles e de Santo Tomás, assim como à uma vida
equilibrada.
Fonte: Permanência
Originalmente Publicado na revista Le Sel de La Terre nos. 11 e 12.
Tradução: Permanência
1. ”Horum autem principium antiqui philosophi, imaginationem
transcendere non valentes, aliquod corpus ponebant.” I, q. 75, a. 1.
2. Et quia antiqui Naturales nihil esse credebant nisi corpora, posuerunt
(…) quod anima per se movetur, et est corpus.”, I. q. 75, a. 1, ad 1.
3. Eis o plano que Santo Tomás segue em seu Tratado da Alma Humana, na Suma
Teológica, I pars, q. 75: A natureza da alma em si; I pars, q. 76: A união da
alma e do corpo; I pars, q. 77: As potências da alma.
4. I, q. 18, a. 1.
5. I, q. 18, a. 1.
6. ”Animata enim viventia dicimus, res vero inanimatas vita carentes.” I, q.
75, a. 1.
7. Santo Tomás, com. In De Anima, l. 2, c. 4, l. 7, 323, Marietti, Turin,
1956, p. 83.
8. Aristóteles, Da Alma, II, 4, 415.
9. Aristóteles, Da Alma, II, 1, 412, b.
10. Alexandre de Afrodisia, Filósofo ateniense do começo do séc. III de
nossa era, comentador de Aristóteles. Tratado da Alma, 23, 8. Estas citações
foram tiradas do livro de Louis Millet, Pour connaître Aristote, Bordas, Paris,
1987, p. 47.
11. Aristóteles, Metafísica, I. Z 17, II, 121-134.
12. Aristóteles, Part. Na. I, 1 641, a, 30.
13. Aristóteles, Física, I, 2, 194, B, 8.
14. I, q. 76, a. 1.
15. Santo Tomás, in. Da Al., l. 2, lição 7, 323, Marietti, Turim, 1959, p.
83.
16. Aristóteles, Da Alma, II, 4, 415, b, 18.
17. I, q. 76, a. 5. Para mostrar a correlação unívoca entre a alma humana e
o corpo, Santo Tomás chega a dizer aqui que “entre os homens, os que possuem a faculdade
do tato mais desenvolvida, são também os mais inteligentes”
18. I, q. 76, a. 1. “Quanto forma est nobilior, tanto magis dominatur
materiae corporali, et minus ei immergitur, et magis sua operatione vel virtute
excedit eam”
19. C. G. II, c. 68.
20. Notemos que, se a expressão “Pedro é homem” pretende afirmar uma
realidade, o verbo “ser” diz também sobre a existência real. Pelo contrário, na
expressão “o homem é um animal racional”, o verbo “ser” é apenas uma ligação
entre duas qüididades.
21. Aristóteles, Metafísica, livro IX, 1048, b5.
22. Caetano, in I, q. 76, a. 1, n. 31.
23. I, q. 75, a. 1.
24. ”Manifestum est enim quod esse principium vitae, vel vivens, non
convenit corpori ex hoc quod est corpus: alioquin omne corpus esset vivens, aut
principium vitae. Convenit igitur alicui corpori quod sit vivens, vel etiam
principium vitae, per hoc quod est tale corpus. Quod autem est actu tale, havet
hoc ab aliquo principio quod dicitur actus eius. Anima igitur (…) est corporis
actus” I, q. 75, a. 1. A brevidade deste raciocínio deve ser interpretado à luz
do comentário de Santo Tomás a respeito do livro segundo do tratado “Da Alma”,
onde Aristóteles estabelece, com exatidão, a definição da alma.
25. Aristóteles, Metafísica, l. VIII, c. 6, 1045, b.
26. Aristóteles, Da Alma, II, 1, 412, b, 5-6.
27. I, q. 76, a. 5.
28. I, q. 55, a. 2.
29. I, q. 89, a. 1. Ver também I, q. 84, a. 7.
30. I, q. 76, a. 5.
31. I, q. 89, a. 1. Neste artigo, Santo Tomás chega a dizer que a união da
alma e do corpo é de tal forma íntima, que o conhecimento da alma unida ao
corpo é mais perfeito que o da alma em estado de separação (se nos limitamos à
ordem natural, claro).
32. Annick Lacroix, “La réincarnation est-elle possible?” Madame-Figaro,
junho de 1989, p. 87.
33. Santo Tomás, loc. Cit.
34. Notemos que o ritual do grande exorcismo, em suas advertências ao padre
para ajudá-lo a discernir um caso de possessão, lhe recomenda que antes ele se
faça esta questão: “Fala em línguas estranhas?”, considerando tal fenômeno como
um primeiro sintoma de influência demoníaca. “Signa autem obsidentis daemonis
sunt: ignota língua loqui pluribus verbis, vel loquentem intelligere”, etc.
Rituale romanum, Ratisbone, Pustet, 1937, p. 327, par. 3. Tal observação também
não pode ajudar a interpretar o “falar em línguas”, de que os carismáticos são
tão orgulhosos?
35. São Paulo, 1 Cor 10, 19.
36. Santo Irineu, adv. Haer., l. 4, n. 703.
Nenhum comentário:
Postar um comentário