sexta-feira, 19 de abril de 2013

O canto litúrgico segundo Santo Tomás de Aquino





Ave Verum Corpus (Mozart) - King's College, Cambridge
(Para ler ouvindo)



[In Suma Teológica, II-II, q. 91, a. 2.]

 “O louvor pela voz é necessário para estimular a afeição humana por Deus. Por isso, qualquer coisa que seja útil para tal é assumido convenientemente no louvor divino. Também é verdade que, segundo as diferenças das melodias, as pessoas são movidas a sentimentos diferentes. A esta conclusão chegaram Aristóteles e Boécio. Por isso foi salutar a introdução do canto nos louvores divinos para que os espíritos mais fracos fossem mais incentivados à devoção. A este respeito, escreve Agostinho: ‘Inclino-me a aprovar a prática do canto na Igreja para que, pelo deleite auditivo, as almas fracas se elevem em piedoso afeto’. E diz de si mesmo: ‘Chorei a ouvir os teus hinos e cânticos, profundamente emocionado pelas vozes de tua Igreja, que canta suavemente’”(corpus).

 “Deve-se dizer que os cantos espirituais podem significar não só o que se canta interiormente, mas também o que as palavras sonoras dizem exteriormente: assim, a devoção é estimulada por tais cantos” (ad 1).

 “Deve-se dizer que Jerônimo não condena em absoluto o canto, mas repreende os que na Igreja cantam de modo teatral, não para excitar a devoção, mas antes para exibir-se e deleitar-se. Razão por que diz Agostinho: ‘Quando atendo mais à melodia que ao significado das palavras cantadas, confesso que o faço e devo penitenciar-me: prefiro então não ouvir o cantar’” (ad 2).

 “Deve-se dizer que é mais excelente aumentar a devoção das pessoas pelo ensino da doutrina e pela pregação do que pelo canto. Por isso os diáconos e os bispos, aos quais compete excitar as almas à devoção a Deus pelos ensinamentos doutrinários e pela pregação, não devem dedicar-se aos cantos, para que por causa destes não descuidem das tarefas mais importantes [...]. Afirma Gregório: ‘É muito repreensível o costume dos diáconos de dedicar-se aos cânticos, pois a eles compete o ofício da pregação e da distribuição de esmolas aos pobres’” (ad 3).

 “Deve-se dizer, como ensina Aristóteles: ‘Para ensinar, não se devem usar flautas nem instrumentos semelhantes, como a cítara e outras, mas tudo o que possa contribuir para os ouvintes serem bons’, até porque tais instrumentos musicais movem mais a alma ao deleite que à formação da boa disposição interior. No Antigo Testamento, usavam-se esses instrumentos quer porque o povo era mais grosseiro e carnal, e por isso devia ser estimulado não só por tais instrumentos, como pelas promessas terrenas; quer porque tais instrumentos materiais eram figurativos” (ad 4).

 “Deve-se dizer que, quando dá muita atenção ao canto para deleitar-se, o espírito deixa de considerar as palavras cantadas. Se porém a pessoa canta em razão da devoção, mais atentamente perceberá o sentido das palavras, porque se demora mais nelas, e porque, como diz Agostinho: ‘Todos os afetos de nosso espírito, conforme a sua diversidade, descobrem modalidades próprias da voz e do canto pelas quais se movem por uma secreta familiaridade’. O mesmo se aplica aos que ouvem os cânticos, os quais, ainda que às vezes não entendam o que se canta, entendem, todavia, a razão do canto, ou seja, o louvor a Deus. E isto é suficiente para despertar a devoção” (ad 5).


Devemos recitar os mistérios luminosos do Rosário?




Nossa Senhora entregando o Rosário a São Domingos de Gusmão

Na Carta Apostólica Rosarium Virginis Mariae, de 16 de Outubro de 2002, João Paulo II propôs uma modificação no Rosário: adicionar 5 novos mistérios, chamados luminosos (ou da luz), que se somariam aos Gozosos, Dolorosos e Gloriosos, conhecidos desde a origem.

Esse documento — cujo escopo aparente consistiria em promover o Rosário — está, de fato, eivado de espírito naturalista. Isso porque essa sublime devoção, ensinada por Nossa Senhora a São Domingos, é aí considerada como uma experiência psicológica muito similar ao gênero de orações e meditações das religiões não católicas. Daí a ênfase que atribui à [suposta] "implicação antropológica do Rosário" (25), que, segundo a nova interpretação, tornaria mais compreensível o mistério do homem. Sem dúvida, os “aperfeiçoamentos” introduzidos corroboram esse sentido: os 5 novos mistérios foram especialmente escolhidos de molde a não contrariar os protestantes. Haja vista que, dentre todos os mistérios, agora aduzidos, embora narrados no Evangelho, nenhum faz menção explícita da Virgem Maria. Isso se alinha com a intenção do Papa em tornar o Rosário mais "cristocêntrico", o que significa, na prática, torná-lo menos Mariano.

Os 5 "significativos" e "luminosos" momentos que ele escolhe são:

.O Batismo no Rio Jordão

.Sua Manifestação em Caná

.A Proclamação de Seu Reinado e o chamado a conversão

.Sua Tranfiguração

.Instituição da Eucaristia

Embora todos os elementos acima sejam retirados do Evangelho (como demonstrações características da bondade, poder e misericórdia divina), cumpre notar que, exceto no caso da instituição da Eucaristia, não existe nenhuma correlação direta dos referidos episódios com o Mistério da Redenção. Não há, pois, como deixar de ver, na surpreendente inovação, um esforço para obnubilar ou deslocar a atenção do fiel dos mistérios fundamentais da Redenção, definidamente expressos nos três terços, ou seja, via contemplação dos Mistérios Gozosos, Dolorosos e Gloriosos.

Não foi por acaso que os tradicionais mistérios do Rosário apareceram alinhados nessa ordem. Uma vez concebidos nessa sequência, significa que é sobre cada um deles que nos devemos debruçar para chegar à salvação eterna. Em uma das suas Encíclicas anuais sobre o Rosário, o Papa Leão XIII explica que:

5. Além do valor que o Rosário tira da própria natureza da oração, o mesmo constitui um meio fácil para recordar e inculcar nas almas (...), mediante a repetição cadenciada das mesmas preces, a contemplação dos principais mistérios de nossa religião: em primeiro lugar, daqueles pelos quais "o Verbo se fez carne", tendo Maria, Virgem intacta e Mãe, concorrido para isso, com santa alegria, pela sua santa maternidade. Vêm depois as amarguras, os tormentos, a morte de Cristo, correspondendo ao preço da salvação do gênero humano.

Finalmente, entram os mistérios gloriosos (...) (Magnae Dei Matris, 8 de Set., 1892)

A razão para essa mudança de orientação é, pouco a pouco, mover nossa atenção para longe do mistério da Redenção (entendida como o resgate das almas dos pecadores). Resumindo, Nosso Senhor nos redime de nossos pecados, trazendo-nos de volta à amizade de Deus, pois, sendo Deus e Homem ao mesmo tempo, é capaz de satisfazer a justiça divina, oferecendo-se na Cruz em expiação de nossos pecados. Este é o ensinamento tradicional.
Para a teologia moderna, porém, a realidade é outra. Chega-se a alegar que tudo isso é supérfluo, acrescentando, de modo sofístico e blasfemo, que Deus não seria tão infantil a ponto de exigir resgate pelos nossos pecados. Segundo essa visão distorcida, para sermos salvos, bastaria refletir nas manifestações de amor, dádiva e glória de Deus, pois "cada um destes mistérios é revelação do Reino divino já personificado no mesmo Jesus". (Rosarium Virginis Mariae, 21) [sic! sic! sic!].

O resultado da recitação habitual desses luminosos mistérios redundaria, portanto, na evidente dessacralização do Rosário, com a perda do específico foco mariano, desviando a nossa atenção do indispensável propósito de nos unirmos à obra salvífica da Redenção, pela observância dos Mandamentos — sem o que é impossível agradar a Deus e obter a remissão de nossos pecados.  Com efeito, se essa nova prática for introduzida, a própria idéia do Rosário acabará por se descaracterizar, perdendo a natural razão de ser. Uma devoção vazia de sentido tende a tornar-se estéril e, aos poucos, vai caindo no esquecimento. Consequentemente, cabe-nos recusar esse "acréscimo" opcional, conservando-nos ancorados na sábia e combativa tradição da Igreja, que, ao promover a devoção ao Santo Rosário tradicional, contribuiu decisivamente para a santificação de incontáveis gerações de santos. Apesar, de per se, não constituir pecado recitar esses mistérios adicionais, compete-nos jamais estimular tal inovação, sobretudo evitando difundir ou aconselhar uma prática dessa natureza.

Padre Peter Scott
Angelus Abril 2010

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