Na primeira parte,
o confronto da teoria da reencarnação com a fé católica nos mostrou sua oposição
radical. Resta-nos esclarecer o tema à luz da razão natural. A tese com que nos
deparamos conforma-se com a realidade? É compatível com a natureza das coisas?
A segunda parte de nosso estudo exige notas preliminares. Nosso primeiro ponto
de vista fora o da fé, o principal argumento era a autoridade de Deus, que fala
pela Tradição, pela Santa Escritura e pelo Magistério da Igreja. Por assim
dizer, contribuímos passivamente ao julgamento da reencarnação pelos guardiões
da fé.
Aqui, o itinerário
é bem diferente. Nosso ponto de partida não é mais um argumento de autoridade,
mas a observação do mundo sensível. Conforme
o princípio realista, “nada há na inteligência que não seja antes nos
sentidos”, o homem que deseja compreender o mundo físico e dele extrair as leis
fundamentais deve começar a observar as coisas que o rodeiam. Assim, para
analisar as complexas noções de vida, de alma, e as relações da alma e do
corpo, convém que partamos do real concreto. Caso contrário, nos arriscaríamos
construir um sistema ― coerente e sedutor, talvez ―, mas sem relação com a
realidade. Não se trata de escrever um romance, mas de descobrir a verdade.
Todavia, o mundo sensível é apenas um ponto de partida. A inteligência busca os
princípios explicativos da natureza. Portanto, deve penetrar na intimidade
mesma das coisas, ultrapassando a ordem sensível. Deve se elevar do visível ao
invisível, a um grau de conhecimento que lhe é próprio e que deixa muito atrás
de si a sensibilidade e a imaginação. É bom tocarmos nesse assunto logo no
início do estudo, pois os temas abordados aqui são particularmente delicados. Muitos se equivocaram por não saberem
desapegar-se de uma visão puramente sensível e materialista do mundo. É o que
já constatava São Tomás de Aquino: “os antigos filósofos, não conseguindo ir
para além de sua imaginação, diziam que o princípio do conhecimento e do
movimento é um corpo”1. “E como os antigos naturalistas criam que nada
existiria se não fosse corpo, diziam que a alma é corpo”2. Não
surpreenderá, pois, se, nos desenvolvimentos que se seguem, algumas passagens
difíceis forem encontradas. Não podemos fazer economia se queremos dar à teoria
da reencarnação uma resposta fundamentada que vá para além do “bate-boca”. É
sinal de atenção e respeito aos sectários de um erro levar a sério suas
objeções e lhes responder com exatidão.
Expostos tais
pontos, vamos à tese da transmigração das almas. Quais são seus pressupostos
filosóficos e quais dificuldades suscitam?
Se a alma deve
atravessar várias vidas terrestres antes de alcançar a felicidade, passando de
corpo em corpo, está claro que não está ligada particularmente a nenhum deles.
A alma só ocasionalmente está no corpo, pois a alma é estrangeira ao corpo.
Isso pressupõe uma concepção especial da alma e de suas relações com o corpo.
Ademais, a metempsicose — que admite a reencarnação em outros seres que não os
humanos – parece dar às almas dos vegetais e dos animais as mesmas
prerrogativas da alma humana.
Alguns partidários
dessa tese afirmam ainda se lembrar de suas vidas passadas. Está posto o
problema da memória. Ela reside na alma espiritual ou no corpo? Nesse último
caso, uma mudança de corpo não deveria apagar qualquer lembrança do passado?
Somos, portanto, levados a estudar sucessivamente a alma em si, e após, suas
relações com o corpo e, finalmente, as potências da alma, em particular a
memória3.
A alma se apresenta
a nós sob os diversos aspectos, que aproveitamos para estudar separadamente com
o fim de penetrar progressivamente na sua natureza, ainda que estes aspectos
não sejam separados na realidade: a alma é o princípio da vida, a forma do
corpo, o ato do corpo.
O princípio da vida
A primeira
experiência que nos propiciam os sentidos, após a da existência das coisas, é a
do seu movimento. Vemos nuvens e pássaros se deslocar, as estações sucederem-se;
brotar a erva, os seres aparecerem e desaparecerem. Contudo, a atenta
observação desses vários momentos nos faz descobrir entre eles uma linha
demarcatória que separa o mundo em duas partes bem distintas. Alguns seres, com
efeito, só se movimentam sob a ação de um princípio exterior. Seu movimento não
segue uma determinação interna. Não têm iniciativa. Outros, pelo contrário, têm
em si mesmos o princípio de seu movimento. Os primeiros são movidos por outro.
Os segundos se movem a si mesmos.
Ora, essa diferença
é precisamente a que distingue os seres vivos dos seres não vivos. O movimento
está de tal modo ligado à vida, que — quando algo não se move mais —, dizemos
que está morto e — ao contrário, que vive — quando o movimento aparece. “O que
distingue os vivos dos não vivos é aquilo porque a vida se manifesta em
primeiro lugar e que se conserva até o fim. Ora, a primeira coisa que nos faz
dizer que um animal vive é o fato de ele começar a se mexer, e dizemos que vive
na proporção medida que esse movimento aparece nele”4. Mas o movimento que
revela a vida é somente aquele que a coisa dá a si mesma. “Quando não há mais
movimento por si mesmo, mas que é movido por outro, dizemos que o animal está
morto, que a vida o deixou. Daí parece que são propriamente chamados de vivos
os que se movem a si mesmos segundo certo tipo de movimento.”5
Observemos os
principais movimentos que se apresentam a nós: quanto ao movimento local,
constatamos que as dunas das bordas oceânicas se deslocam e mudam de forma, mas
isso se deve à ação do vento. Por si mesmas, são inertes. Ao contrário, é por
um dinamismo interior que a mosca voa e que o cão corre. Quanto ao aumento, as
estalactites subterrâneas crescem, mas unicamente por influência da infiltração
de água. Seu crescimento é apenas uma acumulação de matéria e não um processo
de desenvolvimento interno, ao passo que o musgo no teto cresce por si mesmo. O
jardineiro que poda a grama sabe que ela crescerá novamente devido a um
fenômeno que não se explica somente por influências exteriores. Em
contrapartida, o metal só se dilata se exposto a uma fonte de calor. Se os
minerais se desenvolvessem por si sós, teríamos todos nós diamantes, prata e
ouro em profusão!
A análise das
outras espécies de movimento próprias aos seres vivos, tais como a nutrição e a
geração, isso nos conduziria aos mesmos resultados. O ser vivo é o que se move
por si mesmo, graças a um dinamismo interno que não se reduz a ações
exteriores. Os filósofos resumiram isso numa definição concisa: a vida é o
movimento próprio de si, motus sui.
Mas o que, na
natureza do ser vivo, lhe permite o movimento por si próprio e, assim,
distingue-o radicalmente dos não vivos? Qual o segredo da vida, o princípio
desse movimento próprio de si? A linguagem corrente nos dá uma indicação:
“dizemos que os vivos são animados, e que os não vivos são inanimados”6. É o
fato de ser animado, de possuir uma alma, que permite a algo ser vivo.
Ser vivo é ter
alma. Isso é confirmado por uma constatação: para cada alma distinta, uma
atividade distinta. O animal, por exemplo, se desloca por um movimento próprio,
diferentemente dos vegetais. “A percepção sensível é certa mudança; ora, só a
encontramos nos que têm uma alma. Da mesma forma, o movimento de crescimento e
decréscimo só se encontra naqueles que se alimentam. Ora, só os que têm uma
alma se alimentam. É, pois, a alma o princípio de todos os movimentos”. Eis o
primeiro aspecto, a primeira definição da alma que nos dá a experiência: a alma
é o princípio da vida do vivente.
Esse primeiro
resultado vai fornecer dois elementos para responder ao problema que nos ocupa.
De fato, a alma nos foi mostrada sob seu aspecto dinâmico. Ela é a função vital
de um corpo vivo. Não é somente a harmonia ou a boa organização das partes do
corpo, mas fonte de vida e de movimento. ”A alma é causa e princípio do corpo
vivo”7. A etimologia é esclarecedora: o latim anima traduz o grego yuchv, que vem do verbo “eu respiro”. A
alma é como o sopro vital que sustenta o corpo. Isso quer dizer que a alma está
em contato direto com o corpo; sua função é ser a fonte de vida de um corpo.
Uma alma não se pode conceber sem seu correlativo ― o corpo que ela vivifica.
Ao contrário, os
adeptos da reencarnação imaginam a alma como criada para si mesma,
justificando-se por si só, sem possuir relação necessária com um corpo. A união
da alma e do corpo seria o fruto de um erro, não um estado natural. Por outro
lado, se a alma é por sua mesma natureza o princípio vital de um corpo, isso
quer dizer que ela não é o próprio vivente, mas uma de suas partes. O que vive não é apenas a alma, mas o
composto corpo e alma. Aristóteles faz uma comparação: “se o olho fosse um
animal independente, a visão seria sua alma”8. Ora, o que vê não é somente o
olho, nem é somente a visão, mas o olho dotado de visão. Uma visão sem órgão
não vê absolutamente nada! Do mesmo modo, “não dizemos que a alma anda, vê ou
escuta, pois é o homem que o faz, graças a ela”… “é o lutador que luta graças à
aptidão de lutar adquirida por ele, e não a luta que luta por si mesma”… “Da
mesma maneira, não é a alma que, por si mesma, desempenha qualquer uma das
funções vitais, mas sim o ser animado que as exerce pela alma”9.
Não é isso o que se observa na experiência comum?
Suponhamos um homem a passear por um jardim: ele cheira uma flor, recorda-se de
um fato, reflete sobre o futuro e se põe a rezar. Quem é o sujeito de todas
essas operações? Por acaso seria, sucessivamente e sem um laço entre elas, cada
uma de suas potências: a faculdade motora, o odor, a memória e a inteligência?
Seria ora seu corpo, ora sua alma? Não seria antes o mesmo personagem, que é composto
alma e corpo? Cada um de nós possui o sentimento desta unidade de nossa vida e
experimentamo-la cada vez que empregamos o pronome “eu”. É um só e mesmo “eu”
que dorme, come, sonha ou lamenta suas faltas.
Para a reencarnação, ao contrário, o vivente é só a
alma. O corpo é apenas uma morada fortuita e permutável.