quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Uma questão de bom senso



Monsenhor de Ségur



Fora em 1837. Dois jovens subtenentes, recém-saídos de Saint-Cyr, visitavam os monumentos e curiosidades de Paris. Entraram na igreja da Assunção, perto de Tulherias, e puseram-se a observar os quadros, as pinturas e demais detalhes artísticos da bela rotunda. Não pensavam em rezar, de modo algum.



Próximo ao confessionário, um deles notara um jovem padre de sobrepeliz, adorando o Santíssimo Sacramento. 

“Vê bem este padre, disse a seu camarada; dir-se-ia que espera alguém. 

– Talvez a ti, respondera o outro. 

– A mim! E por que tal?

– Quem sabe? Para confessar-te, talvez. 

– Confessar-me! Pois bem, queres apostar que vou para lá? 

– Tu? Ir confessar? Bah!” E puseram-se a rir, sacudindo as espáduas.

“Que queres tu apostar? retorquiu o jovem oficial, com aspecto fanfarrão e decidido. Apostemos um jantar, com direito a champanha espumante. – Vá para comer e beber. Eu te desafio de entrar naquela caixa.”

Acabara de dizer isso quando o outro, dirigindo-se ao jovem padre, sussurra algo em sua orelha; ele levantou-se, entrou no confessionário, enquanto o penitente improvisado lançava ao camarada um olhar triunfante e se ajoelhava, como se fosse confessar. 

“Esse aí é atrevido!”, murmurou o outro; e sentou-se para assistir ao que ia acontecer.

Esperara cinco minutos, dez, quinze. “Que ele está fazendo? perguntava-se com leve e impaciente curiosidade. Que poderia ele ainda estar falando depois desse tempo todo?”

Finalmente, abriu-se o confessionário: o padre saiu, animado o rosto e grave; depois de saudar o jovem militar, entrara na sacristia. A seu turno, levantou-se o oficial, vermelho como um camarão, cofiando o bigode com 
aparência um tanto conturbada; fez sinal para que o amigo o seguisse, para saírem da igreja.

“Pois então, disse o amigo, que foi que te aconteceu? Saibas que ficaste lá cerca de vinte minutos com o padre. Por um instante pensei que fosses te confessar à vera, é sério. De qualquer modo, ganhaste o jantar. Queres para esta noite? 

– Não, respondeu o outro com mau humor; não, hoje não. Vamos ver um outro dia. Tenho mais que fazer; tenho de ir agora.” Apertando a mão do companheiro, afastou-se bruscamente, com aspecto perturbado.

Que se passou, de fato, entre o subtenente e o confessor? Eis aqui:
Mal abrira o padre a rótula do confessionário, percebera pelo tom do jovem que se tratava duma brincadeira. Este fora impertinente até ao ponto de dizer, ao encerrar uma frase qualquer: “Eu faço pouco da religião e da confissão!”.

O padre era homem espirituoso. “Parai um pouco, meu caro senhor, lhe disse interrompendo-o com candura; bem vejo que não estais a levar a sério. Deixemos a confissão um pouco de lado e, se quiserdes, conversemos um instante. Gosto muito de militares. E além disso, me pareces tu um rapaz bom e afável. Dizei-me, qual é vossa patente?”

O oficial começava a pensar que cometera uma estupidez. Contente de encontrar um meio de se livrar da situação, respondeu educadamente: 

“Sou um mero subtenente. Acabo de sair de Saint-Cyr. 

– Subtenente? Permanecereis muito tempo como subtenente? 

– Não sei direito; uns dois, três anos, talvez quatro. 

– E depois? 

– Depois? Passarei para tenente? 

– E depois? 

– Depois? Serei capitão. 

– Capitão? A que idade um pessoa pode ser capitão? 

– Se eu tiver sorte, disse o outro sorrindo, serei capitão com vinte oito ou vinte nove anos. 
– E depois? 

– Oh, aí é difícil; a pessoa permanece muito tempo como capitão. Depois, passa-se a chefe de batalhão, a tenente-coronel, e depois, coronel. 

– Pois bem, eis aí vós coronel, com quarenta, quarenta e dois anos. E depois disso? 

– Depois? Tornar-me-ei general de brigada, e aí general de divisão. 

- E depois? 

E depois? - Só fica faltando um galão para marechal. Mas minhas pretensões não chegam a tal. 

– Seja; mas não pretendeis vos casar? 

– Claro, claro. Quando for oficial superior. 

– Pois bem, eis-vos casado, oficial superior, general, general de divisão, quem sabe até mesmo marechal de França. E depois, senhor? acrescentou o padre com autoridade. 

– Depois? Depois? replicou o oficial um tanto intrigado. Oh, minha nossa, não sei o que virá depois.”

“Vede como é curioso, disse o padre com um tom cada vez mais grave. Sabeis tudo o que se passará até aí, mas não o que virá depois. Contudo, eu o sei, e vou dizer-vos. Depois, senhor, depois o senhor morrerá. Depois da vossa morte, comparecereis diante de Deus, e sereis julgado. E a continuar a fazer o que fazeis, sereis condenado e queimareis eternamente no inferno. Eis o que vai acontecer depois!”

Como o jovem estivesse confuso e aborrecido deste final, parecia esquivar-se: “Um momento, senhor! acrescentara o padre. Tenho ainda algo a vos dizer. Tendes honra, não é verdade? Pois então, também eu. Zombastes de mim gravemente; me deveis uma reparação. Peço-vo-la, e exijo-a, em nome da honra. Ademais, será bem simples. Vais me dar a palavra de que, durante oito dias, todas as noites antes de se deitar, vos poreis de joelhos e direis em alta voz: “Um dia, morrerei; mas eu não me importo. Depois de meu julgamento, serei condenado; mas eu não me importo. Irei queimar eternamente no inferno; mas eu não me importo.” É só isso. Mas me dareis a palavra de honra de não faltar ao dever, não é?

Cada vez mais aborrecido, querendo a todo custo sair da enrascada, o subtenente prometeu tudo; o bom padre despedira-o com bondade, falando ainda: “Escusado dizer, meu bom amigo, que vos perdôo de coração. Ainda que de mim não tivesses necessidade, sempre me encontraríeis aqui a postos. Somente não vos esqueceis da palavra dada.” Mais a frente, despediram-se, como já víramos. 

O jovem oficial jantou sozinho. Estava claramente envergonhado. À noite, no momento de se deitar, hesitou um pouco; mas dera a palavra, e executara-se:

“Eu morrerei, serei julgado, irei talvez para o inferno...”. Não teve coragem de acrescentar: “Eu não me importo.”

Ainda se passaram alguns dias assim. Sua “penitência” retornava-lhe ao espírito sem cessar, parecia-lhe tinir aos ouvidos. No fundo, como noventa e nove por cento dos jovens, ele era mais confuso que mau. Não havia terminado a oitava, e lá estava ele de volta, desta vez só, na igreja da Assunção, confessando-se de boa vontade; saiu do confessionário com o rosto banhado em lágrimas e alegria no coração.

Desde então, tornou-se, como me asseguraram, um digno e fervoroso cristão.

Fora a meditação sobre o inferno que, com a graça de Deus, operou a metamorfose. Ora, se ela mudara a alma do jovem oficial, por que não mudaria a vossa, amigo leitor? É preciso refletir com sinceridade.
É preciso refletir: é uma questão pessoal - como se não fosse - e, acrediteis, terribilíssima. Ela se impõe a cada um de nós, e, de bom ou mau-grado, forçoso é uma solução positiva.


Iremos, se vós o quiserdes, examinar juntos, breve mas cuidadosamente, duas coisas: 1º se de fato existe um inferno e, 2º que é o inferno.

Aqui faço apelo tão-só à vossa boa fé e a vossa fé

Sancte Michael Archangele, defende nos in prælio; contra nequitiam et insidias diaboli esto præsidium.Imperet illi Deus, supplices deprecamur: tuque, Princeps militiæ cælestis, Satanam aliosque spiritus malignos, qui ad perditionem animarum pervagantur in mundo, divina virtute in infernum detrude. Amen


PRÓLOGO do Livro: O Inferno, de Monsenhor de Ségur.
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