quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Não existe um Deus Católico?






Padre João Batista de Almeida Prado Ferraz Costa

Confesso que fiquei perplexo lendo esta frase ontem: “Não existe um Deus católico”.
Embora a expressão “Deus católico” seja insólita, negá-la no contexto em que foi negada tem consequências desastrosas.  Realmente.
O Antigo Testamento está repleto da expressão o Deus de Israel, o Deus de Abraão, Isac e Jacó, atestando que o Deus vivo e verdadeiro se revelava ao povo eleito, depositário de suas promessas e ensinamentos, e se distinguia dos ídolos dos falsas religiões que aterrorizavam os povos pagãos.
Completando-se com a encarnação do Verbo de Deus a Revelação Divina, a qual se encerra com a morte do último apóstolo, e sendo a Igreja Católica a depositária de tal revelação, dizer que não se crê em um “Deus Católico” parece-me favorecer a heresia  monolátrica, isto é, a crença em um deus único, concebido pela mente humana, distinto do Deus Uno e Trino, que se revelou, encarnou, fundou a Igreja Católica para perpetuar sua obra de salvação do mundo.
Dizer “não existe um Deus Católico”, no ambiente atual de ecumenismo maçônico e diálogo inter-religioso sem fronteiras, só contribui para a demolição da fé católica e reforça a marcha do mundo contemporâneo rumo ao deísmo, ao panteísmo, à gnose universal. Afirmar “não existe um Deus Católico”  é um convite dirigido aos “irmãos” pedreiros livres e aos “homens de boa vontade” para trabalharem todos juntos na fundação de uma nova religião de uma nova era da humanidade, em que o homem será a sua própria lei.
A infelicidade de tal afirmação cresce ainda mais quando se tem presente que nos dias de hoje o Deus da Metafísica, o Ser Absoluto, o primeiro Motor Imóvel, a Causa Primeira incausada, o Ato Puro dos estudiosos da Ontologia, que serve de base para uma exposição racional do mistério da Revelação Divina, desapareceu completamente da cultura contemporânea. De modo que negar o “Deus Católico” não significa ceder lugar ao Ser Absoluto na mente dos homens de hoje, mas sim ceder lugar à “energia cósmica” que alguns imaginam como um demiurgo.
Acresce que na mesma entrevista o bispo de Roma disse que “cada um tem a sua própria concepção de bem e mal e deve escolher seguir o bem e combater o mal como concebe .” Ora, isto equivale a proclamar a soberania absoluta da consciência individual, que já não terá sua autoridade e legitimidade à proporção em que aplica fielmente a lei de Deus na direção da vida humana.
Sinceramente, estou convencido de que a chave para entender o drama dos nossos tempos, não está tanto em meditar as promessas de Cristo de que as portas do inferno não prevalecerão contra a Igreja, quanto na meditação da passagem  do Evangelho segundo Lucas: “Mas,  quando vier o Filho do homem, julgais vós que encontrará fé sobre a terra? “(Lc. 18, 8). Sim, as portas do inferno não prevalecerão, mas os homens maus têm um poder enorme de corromper a fé e desfigurar a Igreja e reduzi-la a frangalhos.
Se se dispensa um “Deus Católico”, se cada um pode seguir o bem como o concebe, será necessária a Igreja para a salvação? No máximo, será um auxílio para aqueles que querem construir uma utopia de um mundo novo, de um mundo melhor de liberdade, igualdade e fraternidade.  Em tal perspectiva, que restará da Igreja? Restarão grupos esparsos de homens que conservam a fé imutável no Deus Uno e Trino.
Que Deus tenha misericórdia de nós. As tentações são muitas. Que Nossa Senhora das Vitórias, neste mês do Rosário, esmague as esquadras do modernismo, como em Lepanto esmagou o inimigo infiel.
Anápolis, 2 de outubro de 2013.
Festa dos Santos Anjos Custódios.

Da Submissão à Vontade de Deus





Retirado do livro
Pe. de La Colombière
Excertos
 Livro de 1934 - 54 págs
(Em breve este livro estará no Alexandria Católica)

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Uma das verdades mais bem estabelecidas e das mais consoladoras que jamais nos tenham sido reveladas é que, com ressalva do pecado, nada nos sucede na terra senão porque Deus o quer; é Ele quem dá as riquezas e é Ele quem envia a pobreza; se estais doente, Deus é a causa do vosso mal; se haveis recuperado a saúde, foi Deus quem vo-la restituiu; se viveis, é unicamente a Ele que deveis tão grande bem; e quando a morte vier terminar a vossa vida, será da mão Dele que recebereis o golpe mortal.
Mas, quando os maus nos perseguem, é então a Deus que o devemos imputar? Sim, cristãos ouvintes, é ainda a Ele que deveis então acusar unicamente do mal que sofreis. Ele não é causa do pecado que comete o vosso inimigo, maltratando-vos, mas é causa do mal que esse inimigo vos faz pecando. Esse homem injusto é como uma torrente que, do alto dum rochedo, vem despenhar-se num vasto campo. Não é o lavrador que dá a essa torrente rápida o movimento que a arrasta, mas é o lavrador quem, ora rompendo um dique, ora tapando um valado ou levantando uma represa, lhe faz entrar as águas num campo antes que em outro, quer pretenda adubar, quer pretenda desolar por esse meio aquele campo. Ou se preferis, aquele mau homem é nas mãos de Deus como um veneno nas mãos dum artista hábil: não foi o artista que deu àquela erva ou àquele mineral a virtude maligna que lhes é própria, mas foi ele quem as misturou na beberagem que vos apresenta, quer tenha o intento de vos dar a morte, quer talvez o de vos restituir a saúde. Assim, não foi Deus quem inspirou ao vosso inimigo a má vontade que tem de vos prejudicar, mas foi Ele quem lhe deu o poder, foi Ele quem fez voltar sobre vós a malícia daquela pessoa, quem dispôs as coisas de tal sorte que ele se tenha achado em estado de perturbar o vosso repouso, que o tenha efetivamente perturbado. 
O Senhor quis que caísseis na cilada, já que não a evitou, já que prestou mesmo mão aos que vo-la armavam; é Ele que vos entrega sem defesa aos vossos inimigos, e foi Ele que dirigiu, por assim dizer, todos os golpes que eles vos desfecharam. Não duvideis: se recebeis alguma chaga, foi o próprio Deus quem vos feriu. Quando todas as criaturas se ligassem contra vós, se o Criador não quisesse, se se lhes não juntasse; se lhes não desse tanto as forcas como os meios de executar os seus maus desígnios, nunca o conseguiriam: Não teríeis nenhum poder sobre mim se ele vos não fosse dado do alto, dizia o Salvador do mundo a Pilatos. Nós podemos dizer outro tanto aos homens como aos demônios, mesmo às criaturas que são privadas de razão e de sentimento. Não, vós não me afligiríeis, não me prejudicaríeis como fazeis, se Deus não vo-lo tivesse ordenado; é Ele quem vos envia, é Ele quem vos dá o poder de me tentardes e de me fazerdes sofrer: Não teríeis nenhum poder sobre mim, se ele não vos tivesse sido dado do alto.
Se de quando em quando meditássemos seriamente este artigo da nossa crença, não seria preciso mais para abafar as nossas murmurações em todas as perdas, em todas as infelicidades que nos acontecem. Era o Senhor que me tinha dado todos aqueles bens, foi Ele mesmo quem mos tirou; não foi nem aquela parte, nem aquele juiz, nem aquele ladrão quem me arruinou, não foi aquela mulher que me denegriu a reputação com as suas maledicências; se esse menino morreu, não foi nem por ter sido maltratado, nem por ter sido mal servido; foi Deus, a quem tudo aquilo pertencia, quem não me quis deixar fruir dele por mais tempo.
É, pois, uma verdade de fé que Deus conduz todos os acontecimentos de que a gente se queixa no mundo; e, demais, não podemos duvidar de que todos os males que Deus nos manda nos sejam utilíssimos: não podemos duvidá-lo sem suspeitar a Deus de carecer de luz para discernir o que é vantajoso.
É prova dum orgulho insuportável, diz são Basílio, que nos próprios negócios a gente não necessita de tomar conselho de ninguém, e que tem por si mesmo bastante prudência para escolher o melhor partido. Mas, se nas coisas que nos dizem respeito qualquer outro vê melhor do que nós aquilo que nos é útil, que loucura pensar que o vemos melhor do que Deus mesmo, Deus que é isento das paixões que nos cegam, que penetra o futuro, que prevê os acontecimentos e o efeito que cada causa deve produzir! Sabeis que os acidentes mais molestos têm às vezes felizes consequências, e que, ao contrário, os sucessos mais favoráveis podem finalmente terminar em funestos desfechos. É mesmo uma regra que Deus observa assaz comumente, ir aos seus fins por vias inteiramente opostas às que a prudência humana costuma escolher.
Na ignorância em que estamos do que deve acontecer no futuro, como então ousamos murmurar daquilo que sofremos pela permissão de Deus! E mesmo por simples vantagens deste mundo, quantos exemplos não temos desse proceder! Vendem José, trazem-no em servidão, lançam-no numa prisão: ele se aflige das suas desditas aparentes, aflige-se com efeito da sua felicidade, pois são outros tantos degraus que o elevam insensivelmente ao trono do Egito. Saul perdeu as mulas de seu pai, tem que as ir buscar muito longe e muito inutilmente: é muito tempo e muito trabalho perdido, é certo; mas se essa mágoa o aflige, jamais houve pesar tão desarrazoado, visto que tudo aquilo só foi permitido para o conduzir ao profeta que o deve ungir da parte do Senhor, para ser o rei de seu povo. Qual não há de ser a nossa confusão, quando comparecermos perante Deus, quando virmos as razões que Ele terá tido de nos mandar essas cruzes que nós tão mal lhe agradecemos! Eu lamentei a perda daquele filho único morto na flor da idade: ai! Se Ele tivesse vivido ainda alguns meses, alguns anos, teria perecido da mão dum inimigo, teria morrido em pecado mortal. Eu não me pude consolar do rompimento daquele casamento: se Deus tivesse permitido que ele se concluísse, eu iria passar os meus dias no luto e na miséria. Devo trinta ou quarenta anos de minha vida àquela doença que sofri com tanta impaciência. Devo a minha salvação eterna àquela confusão que me custou tantas lágrimas. Minha alma estaria perdida, se eu não tivesse perdido aquele dinheiro. Com que nos embaraçamos, cristãos ouvintes? Deus se encarrega da nossa direção, e nós estamos na inquietude! Abandonamo-nos à boa fé dum médico porque supomos que ele entende da sua profissão; ele ordena que vos façam as operações mais violentas, às vezes até que vos abram o crânio com o ferro: ali, que vos furem o corpo; aqui que vos cortem um membro para deter a gangrena que poderia enfim chegar até ao coração; a gente sofre tudo isso, fica-lhe agradecido, recompensa-o liberalmente, porque julga que ele não o faria se o remédio não fosse necessário, porque julga que cumpre fiar-se na sua arte; e não queremos fazer a mesma honra ao nosso Deus! Dir-se-ia que desconfiamos da sua sabedoria e que tememos que ele nos transvie! Que? Entregais vosso corpo a um homem que se pode enganar e cujos menores erros vos podem tirar a vida, e não vos podeis submeter à conduta do Senhor!
Se nós víssemos tudo o que Ele vê, quereríamos infalivelmente tudo o que Ele quer; haviam-nos de ver pedir-lhe com lágrimas as mesmas aflições que tratamos de desviar pelos nossos votos e pelas nossas preces. Por isto, é a nós todos que Ele diz nas pessoa dos filhos de Zebedeu: Nescitis quid petitis; homens cegos, a vossa ignorância me faz pena, não sabeis o que me pedis; deixai-me cuidar dos vossos interesses, conduzir-vos à fortuna; Eu conheço o que vos é necessário, melhor do que vós mesmos; se até aqui eu tivesse levado em conta os vossos sentimentos e os vossos gostos, já estaríeis perdidos sem recurso.
Mas quereis, cristãos ouvintes, quereis ficar persuadidos de que em tudo o que Deus permite, em tudo quanto vos sucede, não tem Ele em mira senão as vossas verdadeiras vantagens, a vossa felicidade eterna? Fazei um momento de reflexão sobre tudo o que Ele há feito por vós. Estais agora na aflição: pensai que quem é o autor dela é Aquele mesmo que quis passar toda a sua vida nas dores para vo-las poupar eternas; que é Aquele cujo anjo está sempre ao vosso lado, velando por sua ordem sobre todos os vossos caminhos, e se aplicando a desviar tudo o que vos possa ferir o corpo ou manchar a alma; pensai que quem vos expõe a essa pena é Aquele que nos nossos altares ora incessantemente e se sacrifica mil vezes ao dia para expiar os vossos crimes e aplacar a cólera de seu Pai, à medida que O irritais; que é Aquele que vem a vós com tanta bondade no sacramento da eucaristia; Aquele que não tem prazer maior do que conversar convosco, do que se unir a vós. Que ingratidão, após tamanhas provas de amor, desconfiar ainda Dele, duvidar de se é para nos prejudicar ou para nos fazer bem que Ele nos visita! Mas Ele me fere cruelmente, faz pesar a Sua mão sobre mim. E que temeis duma mão que foi transfixada, que se deixou pregar na cruz por vós? Ele me faz andar por um caminho espinhoso. Se não há outro para ir ao céu, ai de vós, se preferis perecer para sempre a sofrer por um tempo! Não foi esse mesmo caminho que Ele seguiu, antes de vós e por amor de vós? Achais acaso Nele um espinho que Ele não tenha marcado, que não tenha enrubescido com o seu sangue?
Ele me apresenta um cálice cheio de amargura. Sim, mas pensai que é o vosso Redentor que vo-lo apresenta; amando-vos tanto quanto vos ama, poderia resolver-se a tratar-vos com rigor se não houvesse uma utilidade extraordinária ou uma urgente necessidade? Ouvistes falar daquele príncipe que preferiu expor-se a ser envenenado, a recusar a bebida que seu médico lhe receitara, porque reconhecera sempre naquele médico muita fidelidade e muito apego à sua pessoa; e nós, cristãos ouvintes, nós recusamos o cálice que Nosso Divino Mestre nos preparou Ele próprio, atrevemo-nos a ultrajá-lo até esse ponto! Rogo-vos não esquecerdes esta reflexão; ela basta, se me não engano, para nos fazer aceitar, para nos fazer amar as disposições da vontade divina que nos parecem mais incômodas, e nos conformarmos desse modo com essa vontade suprema; é, aliás, assegurar infalivelmente a nossa felicidade, mesmo desde esta vida.
Eu suponho, por exemplo, que um cristão está liberto de todas as ilusões do mundo, pelas suas reflexões e pelas luzes que recebeu de Deus; que reconhece que tudo não passa de vaidade; que nada lhe pode encher o coração; que aquilo que há desejado com mais afã é muitas vezes fonte dos mais mortais pesares; que a gente custa a distinguir o que nos é útil e o que nos é contrário, por isto que o bem e o mal estão quase por toda a parte misturados, e porque aquilo que ontem era o mais vantajoso é hoje o pior; que os seus desejos só fazem atormentá-lo; que os cuidados que emprega para lograr êxito o consomem e até lhe prejudicam às vezes os desígnios, ao invés de os adiantar; que, ao cabo de tudo, é uma necessidade que a vontade de Deus se cumpra; que nada se faz senão por suas ordens, e que Ele nada pode ordenar a nosso respeito que não nos reverta em vantagem.
Após todas essas vistas, suponho ainda que ele se lance nos braços de Deus como às cegas; que se lhe entregue, por assim dizer, sem condição e sem reserva, inteiramente resolvido a confiar Nele para tudo, e nada mais desejar, nada mais temer, numa palavra, nada mais querer senão aquilo que Ele quiser; digo que, desde esse momento, essa feliz criatura adquire uma liberdade perfeita, que não pode mais nem ser molestada nem constrangida; que não há autoridade, não há poder na terra que seja capaz de lhe fazer violência ou de lhe dar um momento de inquietação.
«Como me quereis obrigar a fazer o que eu não quero? dizia um santo homem cujos sentimentos são referidos. Seria preciso poder constranger o próprio Deus, para me pôr no caso de fazer algo contra minha vontade; porque, enquanto Deus fizer tudo o que quiser, eu não posso deixar de ser perfeitamente livre, visto que só quero o que Ele faz. Deus quer que eu adoeça? Pois a moléstia me é mais agradável do que a saúde; que eu seja pobre? Pois eu não queria ser rico; que eu seja o repúdio de todos? Consinto que toda a gente me despreze, fundo toda a minha glória nos seus desprezos. Importa que eu viva aqui ou alhures, que eu passe os meus dias no repouso ou na trica dos negócios, que morra na flor ou no declínio da idade? De tudo isso eu não poderia dizer o que gosto mais; mas, desde que Deus tiver feito a sua escolha, e me tiver feito conhecer para que lado pende o seu coração, o meu seguirá esse pendor, e achará nele a sua felicidade.»
Mas não é uma quimera um homem em quem os bens e os males fazem uma igual impressão? Não, não é uma quimera; conheço pessoas que estão igualmente contentes na moléstia e na saúde, nas riquezas e na indigência; algumas conheço mesmo que preferem a indigência e a moléstia às riquezas e à saúde.
De resto, não há nada tão verdadeiro como o que vos vou dizer: tanta submissão temos à vontade de Deus, tanta condescendência tem Ele para com as nossas vontades. Parece que, desde que a gente se apega unicamente a lhe obedecer, Ele próprio só cuida de nos satisfazer: não só ouve as nossas preces, mas até as previne; vai buscar até no fundo do coração aqueles mesmos desejos que a gente trata de sufocar para lhe aprazer, e os realiza, cumula-os, excede-os todos.
Enfim a ventura daquele cuja vontade é submissa à vontade de Deus é uma ventura constante, inalterável, eterna. Temor algum lhe perturba a felicidade, porque acidente algum a pode destruir. Eu mo represento como um homem sentado num rochedo no meio do oceano: vê virem a ele as mais furiosas vagas sem ficar atemorizado, acha prazer em considerá-las e contá-las, à medida que elas se lhe veem quebrar aos pés; quer o mar esteja calmo ou agitado, quer o vento empurre as ondas para um lado ou para outro, ele fica igualmente imóvel, porque o lugar em que se encontra é firme e inabalável.
Vem daí essa paz, essa calma, esse semblante sempre sereno, esse ânimo sempre igual que notamos nos verdadeiros servos de Deus. Que razão não tendes, almas santas, de ser sem inquietações? Achastes na vontade do vosso Deus um retiro inacessível a todas as desditas da vida; elevaste-vos muito acima da região das tempestades: não há dardo que possa chegar até lá. Não podeis temer nem os homens nem os demônios. Façam o que fizerem, suceda o que suceder, sereis sempre felizes, ou então o próprio Deus deixará de sê-lo.
Resta ver como é que poderemos atingir essa venturosa submissão. Isto só se pode fazer, senhores, pela experiência frequente dessa virtude; e por isto que as grandes ocasiões de praticá-la são raras, todo o segredo consiste em aproveitar as pequenas, que são diárias, e cujo bom uso em breve nos porá em estado de sustentar os maiores revezes sem sermos abalados. Não há ninguém a quem cada dia não aconteçam cem pequenas coisas contrárias aos seus desejos e inclinações, seja que no-las atraia a nossa imprudência ou nosso pouco espírito, seja que elas nos venham da inconsideração ou da malignidade alheia, seja enfim que constituam um puro efeito do acaso ou do concurso imprevisto de certas causas necessárias. Toda a nossa vida é semeada dessas sortes de espinhos, que nos nascem incessantemente debaixo dos pés, que produzem no nosso coração mil frutos amargos, mil movimentos involuntários de ódio, de inveja, de temor, de impaciência, mil pequenas mágoas passageiras, mil ligeiras inquietações, mil perturbações, que, ao menos por um momento, alteram a paz da alma. Escapa-nos, por exemplo, uma palavra que não quiséramos ter dito, dizem-nos outra que nos ofende, um criado vos serve mal ou com vagarosidade, uma criança vos incomoda, um estorvante vos faz parar, um estouvado vos encontrou, um cavalo vos cobre de lama, faz um tempo que vos desagrada, a vossa obra não vai como desejaríeis, um pequeno móvel se quebra, uma roupa se mancha ou se rasga; eu sei que não há aí em que exercer uma virtude bem heroica, mas digo que seria o bastante para adquiri-la infalivelmente se o quiséssemos; digo que todo o que estivesse alerta para oferecer a Deus todas essas contrariedades, e para aceitá-las como ordenadas pela sua providência, esse homem, além de adquirir por essa prática grande número de méritos, além de se dispor insensivelmente a uma união muito íntima com Deus, seria ainda, em pouco tempo, capaz de aguentar os mais tristes e os mais funestos acidentes da vida.
A este exercício, que é tão fácil, e não obstante mais útil para nós e mais agradável a Deus do que vos posso dizer, pode-se ajuntar ainda outro. Embora as grandes desgraças não aconteçam todos os dias, pode-se a gente oferecer a Deus todos os dias para aturá-las quando lhe aprouver. Se Deus vos quisesse tirar ou aquele filho ou aquele marido, se permitisse que perdêsseis aquele processo ou aquele dinheiro que colocastes, precisaríeis duma grande forca de espírito para suportar esses golpes tão rudes. Não sabeis ainda qual será a vontade Dele sobre esses pontos; preveni-lhe as ordens, e desde agora submetei-vos a tudo quanto Ele resolveu fazer; renunciai com frequência em sua presença a todos os desejos que podeis ter de aumentar ou de conservar os vossos bens, a vossa saúde, a vossa reputação, e protestai-lhe que estais pronto a lhe sacrificar tudo. Pensai todos os dias, desde a manhã, em tudo quanto vos pode suceder de mais molesto durante o curso do dia. Pode suceder que no correr do dia tragam a notícia dum naufrágio, duma bancarrota, dum incêndio; talvez que antes da noite recebais alguma afronta pesada, alguma sangrenta confusão; talvez que a morte vos roube a pessoa do mundo que mais amais; não sabeis se vós mesmo não morrereis subitamente e duma maneira trágica. Aceitai todas essas desgraças no caso que praza a Deus permiti-las, coagi a vossa vontade a consentir nesse sacrifício, e não vos deis trégua enquanto não a sentirdes disposta a querer ou a não querer tudo o que Deus pode querer ou não querer.
Enfim, quando uma dessas desditas se fizer efetivamente sentir, em lugar de perderdes tempo em vos queixardes ou dos homens ou da fortuna, ide lançar-vos prontamente aos pés do Divino Mestre, para lhe pedir a graça de suportar com constância aquele infortúnio. Um homem que recebeu uma chaga mortal, se é prudente, não corre atrás de quem o feriu. Vai primeiro ao médico que o pode curar. Mas quando, em tais conjunturas, buscásseis o autor dos vossos males, seria ainda a Deus que cumpriria ir, pois só Ele lhes pode ser a causa.
Ide, pois, a Deus, mas ide prontamente, ide na mesma hora, seja o primeiro de todos os vossos cuidados: ide levar-Ihe, por assim dizer, a flecha que Ele vos atirou, o flagelo de que se serviu para vos provar. Beijai mil vezes as mãos do Vosso Senhor crucificado, essas mãos que vos feriram, que fizeram todo o mal que vos aflige. Repeti-lhe muitas vezes estas palavras que Ele próprio dizia a seu Pai no forte da sua dor: Senhor, faça-se a vossa vontade, e não a minha. Eu vos bendigo mil vezes, eu vos dou graças de que as vossas ordens se cumpram sobre mim; e quando estivesse em meu poder resistir-lhes, eu continuaria a me submeter a elas. Aceito esta calamidade em si mesma como em todas as suas circunstâncias; não me queixo nem do mal que sofro, nem das pessoas que me causam, nem do modo por que ele veio até mim, nem da conjuntura do tempo ou do lugar em que ele me surpreendeu ; estou certo de que o quisestes sob todos esses pontos de vista, e gostaria mais de morrer do que de me opor no que fosse à Vossa Vontade: Fiat voluntas tua... Sim, meu Deus, em tudo o que quiserdes de mim, hoje e por todos os tempos, no céu e na terra, faça-se essa vontade, mas faça-se na terra como se cumpre no céu.

Das Adversidades



Fonte: Almas Devotas

Retirado do livro
Pe. de La Colombière
Excertos
 Livro de 1934 - 54 págs
(Em breve este livro estará no Alexandria Católica)

Para conhecer a vida de São Cláudio de La Colombière CLIQUE AQUI



Das Adversidades
(De como são úteis aos justos e necessárias aos pecadores)

Vede essa terna mãe que por mil carícias trata de acalmar os gritos do filho, que o rega com suas lágrimas, enquanto lhe aplicam o ferro e o fogo; desde que aquela dolorosa operação se faz a seus olhos e por sua ordem, quem pode duvidar de que aquele remédio violento não deva ser extremamente útil àquela criança, e que ela não deva encontrar nele uma saúde perfeita, ou ao menos o alívio duma dor mais viva e mais longa?
Faço o mesmo raciocínio quando vos vejo na adversidade. Vós vos queixais de que vos maltratam, de que vos ultrajam, de que vos mortificam por calúnias, de que vos despojam injustamente dos vossos bens: o vosso Redentor (este nome é ainda mais terno do que o nome de pai e de mãe), o vosso Redentor é testemunha de tudo o que sofreis; Ele que vos traz no seio, Ele que declarou altamente que quem quer que vos toca, O toca na pupila dos olhos, Ele próprio, não obstante, permite que sejais atribulados, embora pudesse impedi-lo, e duvidais de que essa provação passageira vos deva proporcionar as mais sólidas vantagens?

Acrescentai a isso que, quando se tratou de nos poupar penas que visivelmente nos teriam sido inúteis, Ele nada esqueceu, forçou as leis da natureza para nos garantir contra elas. Tudo quanto se atura após a morte, seja nas chamas do purgatório, tudo isso é computado como nada; não se pode esperar daí nem glória nem recompensa; só se sofre então por sofrer. Que não fez Jesus Cristo para nos preservar desses tormentos infrutíferos? Pôs tudo em uso, até o atraí-los sobre sua pessoa inocente. Foi neste intuito que ele derramou todo o seu sangue e expirou na cruz. Sim, Jesus Cristo abandonou-se a si próprio à cólera de seu Pai e à fúria dos judeus, para impedir não só que fôssemos entregues ao fogo eterno, mas ainda que fôssemos um só momento detidos no purgatório; satisfez por nossas culpas, mesmo as mais leves, não deixou nada por pagar; muito mais, deixou um tesouro inesgotável de méritos à sua Igreja para os novos crimes em que incidimos todos os dias. Esta razão única me faz às vezes de mil demonstrações. Quando o Espírito Santo não tivesse chamado bem-aventurados aos que sofrem neste mundo, quando todas as páginas da Escritura não falassem em favor das adversidades, quando não víssemos que elas são o quinhão mais comum dos amigos de Deus, eu não deixaria de crer que estas nos são infinitamente vantajosas. Para me persuadir disto, basta eu saber que um Deus que preferiu sofrer tudo o que a sanha dos homens pode inventar de mais horríveis torturas, a me ver condenar aos mais leves suplícios da outra vida; basta-me, digo, saber que é esse Deus que me prepara, que me apresenta o cálice de amargura que eu devo beber neste mundo. Um Deus que sofreu tanto para me impedir de sofrer, não me faria sofrer hoje para dar A si um prazer cruel e inútil.
Quanto a mim, senhores, quando vejo um cristão abandonar-se à dor nas penas que Deus lhe envia, eu digo primeiro: Aí está um homem que se aflige com a sua felicidade; pede a Deus que o livre da indigência em que se acha, e deveria dar-lhe graças de o haver reduzido a ela. Estou certo de que nada lhe podia suceder de mais vantajoso do que isso que faz o motivo da sua desolação; tenho para crer nisso mil razões sem réplica. Mas se eu visse tudo o que Deus vê, se eu pudesse ler no futuro as consequências felizes com que Ele coroará essas tristes aventuras, quanto mais confirmado me sentiria no meu pensamento.
Com efeito, se pudéssemos descobrir quais são os desígnios da Providência, é certo que desejaríamos com ardor os males que sofremos com tanta repugnância. Toda gente sabe a história célebre de José. Quando os irmãos o despojaram; quando, para se desfazer dele, o venderam aos ismaelitas, quem poderia dizer quantas lágrimas derramou ele, quantas súplicas fez para curvar os irmãos desnaturados, quantas vezes lhes abraçou os joelhos, com que dor desaprovou tudo o que os pudesse ter desgostado no seu proceder? Pode-se duvidar de que ao mesmo tempo ele tivesse feito mil votos para obter algum socorro do céu num extremo tão premente? Filho da Providência, inocente vítima, como Deus vos amaria pouco se vos escutasse! Como faríeis votos bem diversos se ele vos fizesse conhecer aonde vos devem conduzir o exílio e a servidão que temeis! O acontecimento fez ver, cristãos ouvintes, que ele tinha mais motivo de se alegrar do que de se queixar, do indigno tratamento que recebia. Sabeis que Deus o levava ao trono por esse caminho. Meu Deus, se tivéssemos um pouco de fé; se soubéssemos quanto nos amais, quanto tendes a peito os nossos interesses, com que olhos encararíamos as adversidades? Ir-lhes-íamos ao encontro com solicitude, bendiríamos mil vezes a mão que nos ferisse.
Que bem me pode, pois, advir dessa moléstia que me obriga a interromper todos os meus exercícios de piedade? Dirá talvez alguém; que vantagem posso esperar dessa perda de todos os meus bens, que me lança no desespero, dessa confusão que me abate a coragem e me traz a perturbação ao espírito? É verdade que esses golpes imprevistos, no momento que ferem, acabrunham às vezes aqueles sobre quem caem, e os põem fora de estado de aproveitar na mesma hora da sua desdita; esperai porém, e logo vereis que é por esse meio que Deus vos dispõe a receber os mais insignes favores. Se não fosse aquele acidente, não vos teríeis tornado mais malvado, porém nunca teríeis sido tão santo. E não é verdade que, desde que vos havíeis dado a Deus, ainda vos não tínheis podido resolver a desprezar não sei que glória fundada em algum agrado do corpo, ou qualquer talento do espírito, que vos atraía a estima dos homens? Não é verdade que ainda vos restava algum amor ao jogo, à vaidade, ao luxo? Não é verdade que o desejo de adquirir riquezas, de elevar vossos filhos às honras do mundo, ainda não vos havia abandonado inteiramente? Talvez mesmo que algum apego, alguma amizade pouco espiritual, disputava ainda o vosso coração a Deus? Não vos era preciso mais que aquilo para entrardes numa liberdade perfeita; é pouco, mas afinal ainda não tínheis podido fazer esse sacrifício; a quantas graças, entretanto, esse obstáculo detinha o curso. Era pouco, mas não há nada que custe tanto à alma cristã quanto romper esse derradeiro laço que a prende ao mundo e a si mesma. Não é que nessa situação ela não sinta uma parte da sua enfermidade; mas o só pensamento do remédio a espanta, porque o mal está tão perto do coração que, sem o socorro duma operação violenta e dolorosa, não se pode curá-lo; foi por isto que se tornou mister surpreender-vos, que se fez preciso que uma mão hábil, quando menos o pensáveis, tenha levado o ferro bem a dentro na carne viva, para furar essa úlcera oculta no fundo das entranhas; não fora esse golpe, e o vosso langor duraria ainda. Essa moléstia que vos detém, essa bancarrota que vos arruína, essa afronta que vos cobre de vergonha, a morte daquela pessoa que chorais, todas essas desditas farão em breve aquilo que todas as vossas meditações não terão podido fazer, o que todos os vossos diretores teriam tentado inutilmente.
E, se a adversidade em que estais tiver o efeito que Deus pretende, se vos desgostar inteiramente das criaturas, se vos obrigar a vos dardes sem reserva ao vosso Criador, certo estou que de que lhe dareis mais agradecimentos por aquilo que Ele vos houver infligido, do que lhe oferecestes de votos para desviar a aflição: todos os demais benefícios que haveis recebido Dele, todos esses benefícios comparados àquela desdita não passarão aos vossos olhos de favores ligeiros. Havíeis sempre considerado as bênçãos temporais que até aqui Ele derramara sobre vossa família com os efeitos da sua bondade para convosco; mas então vereis claramente, sentireis no fundo d’alma que Ele nunca vos amou tanto como quando derribou tudo o que tinha feito pela vossa prosperidade, e que, se Ele tinha sido liberal dando-vos riquezas, honras, filhos, saúde, foi pródigo retirando-vos todos esses bens.
Não falo dos méritos que a gente adquire pela paciência; é certo que, geralmente, a gente ganha mais para o céu num dia de adversidade do que durante vários anos passados na alegria, por mais santo o uso que deles se faça; e para acabar de vos dizer francamente o meu pensamento, eu desconfio extremamente de todo bem que fazemos na prosperidade, e não creio que a gente se deva fiar lá muito nas virtudes que nela se praticam.
O grande apóstolo só se glorifica das suas cadeias, dos seus naufrágios e dos injustos suplícios a que o condenaram. Não faz menção alguma nem das suas orações nem das suas pregações apostólicas, porque, nessa espécie de obras santas, raramente a gente se defende das surpresas do amor próprio sem o socorro de um longo estudo, duma extrema vigilância, duma graça extraordinária.
Todos sabemos que a prosperidade nos amolenta, e muito é quando um homem feliz segundo o mundo se dá o trabalho de pensar no Senhor uma ou duas vezes por dia: as ideias dos bens sensíveis que o rodeiam ocupam-lhe tão agradavelmente o espírito, que ele se esquece facilmente de tudo o mais. A adversidade, ao contrário, só dando por si mesma pensamentos tristes, leva-nos como naturalmente a levantar os olhos para o céu, para amenizar por essa vista a impressão amarga dos nossos males. Sei que se pode glorificar a Deus em toda a sorte de estados, e que a vida dum cristão que o serve numa fortuna risonha, não deixa de lhe fazer honra; bem longe, porém, que esse homem o honre tanto como o homem que o bendiz nos sofrimentos! Pode-se dizer que o primeiro é semelhante a um cortesão assíduo e regular que não abandona o seu príncipe, que o segue ao conselho, que é de todos os seus prazeres, que lhe faz honra a todas as festas; mas que o segundo é como um valente capitão que toma cidades para seu rei, que lhe ganha batalhas através de mil perigos e à custa do seu sangue, que leva bem longe a glória das armas de seu amo e os limites do seu império.
Assim, senhores, um homem que goza de saúde robusta, que possui grandes riquezas, que vive na honra, que tem a estima do mundo, esse homem, se usa como deve das suas vantagens, se as recebe com gratidão, se as refere a Deus que lhes é a fonte, certamente não se pode duvidar de que glorifique seu divino Mestre por um procedimento tão cristão: mas se a Providência o destitui de todos esses bens, se o cobre de dores e de misérias, e se, no meio de tantos males, ele persevera nos mesmos sentimentos, nas mesmas ações de graças, se segue o Senhor com a mesma prontidão, com a mesma docilidade, por uma senda tão difícil, tão oposta às suas inclinações, é então que ele publica a grandeza de Deus e a eficiência da sua graça, da maneira mais generosa e a mais retumbante.
Daí, cristãos ouvintes, julgai que glória não devem esperar de Jesus Cristo as pessoas que o tiverem glorificado em trilha tão espinhosa; julgai com que aplausos não há de ser recebido no céu um cristão cuja vida não tiver passado de uma série de desventuras, de um exercício contínuo de paciência; um cristão que se apresentar, por assim dizer, coberto de sangue e de feridas, que tiver seguido seu Mestre em todas as suas penosas empresas, que lhe tiver sido o companheiro fiel dos sofrimentos. Será então, cristãos ouvintes, que havemos de reconhecer o quanto Deus nos terá amado dando-nos as ocasiões de merecer recompensa tão abundante; será então que censuraremos a nós mesmos o nos termos queixado daquilo que nos devia aumentar a felicidade, de havermos gemido, de termos suspirado quando tínhamos motivo para nos alegrarmos, de termos duvidado da bondade de Deus, quando Ele nos dava dessa bondade as mais sólidas provas. Se tais devem ser um dia os nossos sentimentos, por que não entrarmos desde hoje em tão feliz disposição? Por que desde esta vida não bendizermos a Deus no meio dos males, pelos quais estou certo de lhe render um dia no céu eternas ações de graças? Por que hei de invejar a sorte dos que vivem na prosperidade, quando eles próprios me invejarão um dia as adversidades que eu tiver padecido?
Santo Agostinho não pode admirar bastante que um senhor tão poderoso como nosso Deus, tão feliz, tão independente das suas criaturas, tenha querido obrigá-las, por um mandamento expresso, a lhe terem amor, isto é, a proporcionarem, a si próprias, a vantagem maior que possam fruir. Eis aqui, porém, a meu ver, um traço de bondade ainda mais admirável: e é que Ele não se contente de impor aos seus inimigos uma obrigação tão vantajosa para eles, e os force de alguma sorte a cumprir essa feliz obrigação.
É pela adversidade, cristãos ouvintes, que Ele coage os homens mais perversos a reentrarem nas suas boas graças; e que outra via mais eficaz para os levar a isso? A palavra de Deus, o uso dos sacramentos, as graças comuns podem manter na prática do bem os que se obrigam a eles, mas um homem sobrecarregado do peso dos negócios públicos e domésticos, uma mulher que vive nos prazeres, que é escrava da vaidade, um cristão, numa palavra, que envelheceu na sua impiedade e nas suas desordens, é mister, senhores, é mister que sofra ou que pereça.
Sei o quanto a palavra de Deus é eficaz, sei que ela é mais penetrante do que uma espada de dois gumes; mas todos os dias não vemos senão sobejamente que os homens lhe resistem e que ela não pode atingir até os corações empedernidos. Que não se há dito contra esse luxo espantoso que devora a substância assim dos pobres como dos ricos, contra esse jogo que consome impiedosamente um bem com que se poderia comprar o céu, esse jogo que nos arrebata um tempo que nos fora dado para ganharmos a eternidade? Que se não diz ainda hoje em dia contra esses desregramentos? Ai! Mas que é que produzem os nossos discursos no espírito dos jogadores de profissão, desses que gastam o mais possível em roupas? Uns esquecem-no um momento após, outros só se lembram deles para escarniçá-los; alguns até se ofendem com eles, e creem ter motivo para se queixar do pregador, porque ele disse da parte de Deus o que não podia calar sem trair a própria consciência e sem se tornar réu de perfídia. Que cumpre então faça o Senhor para fazer essas pessoas tornarem ao dever? Não há outro meio senão a indigência; há que reduzi-las à necessidade de trabalhar para fazer subsistir a família, e de revender, para viverem, aquilo que compraram para se enfeitar. Ide falar de oração e de retiro àquela mulher enamorada da própria beleza, tão vaidosa das atenções que se tem com ela no mundo; acreditais que ela seja capaz de apreciar os vossos conselhos ou sequer de ouvi-los? Para salvá-la, faz-se mister que uma moléstia a desfigure, ou que uma esmagadora confusão a faça banir para sempre das companhias.
Que tempo escolhereis para exortar aquele rico, aquele voluptuoso, a se converter? Não está ele disposto a ouvir a palavra de Deus, e muito menos ainda a vos chamar a casa para tomar junto a vós conselhos salutares. E quando o estivesse, como haveria um pensamento santo de encontrar lugar naquele espírito abarrotado dos seus negócios temporais? A própria graça, por insinuante que seja não acha abertura para lhe passar até o coração. Oh! Como há então, ó meu Deus, que desesperar daquela alma? A vossa sabedoria não tem então meio para retirá-la do precipício? O Senhor tem um meio, cristãos ouvintes, e este meio é o que ele se serve sempre para reconduzir os eleitos seus que a prosperidade lhe arrebatou; esse meio é a adversidade, é a perda daquele processo, a morte daquele marido, daquele filho único, uma paralisia, uma gota violenta, uma febre maligna, um langor incurável, uma afronta insigne. Qual será o efeito dessa desgraça? Disporá aqueles homens à compunção por uma dor mortal, dar-lhe-á desgosto dos prazeres com que estava encantado, levá-lo-á a fazer reflexões sobre os desregramentos da sua vida que lhe atraíram a cólera de Deus; sofrerá que a gente de bem se lhe achegue, quando menos para consolá-lo. E como procurará por toda parte remédios para o seu mal, far-lhe-ão conhecer a causa deste, prepará-lo-ão para receber os remédios convenientes à moléstia de sua alma. Enfim, ver-se-á ele felizmente forçado a mudar de vida, ou pela impotência de perseverar no pecado, ou pelo desejo de deter o braço do Onipotente que pesa sobre ele.
Tudo isto nos faz ver suficientemente que, de qualquer modo que vivamos, deveríamos sempre receber a adversidade com alegria. Se somos bons, a adversidade nos purifica e nos faz melhores; enche- nos de virtudes e de méritos; se somos maus, se somos viciosos, ela nos corrige, força-nos a nos tornarmos virtuosos. Se em algum de nós não tem ela este feliz efeito, se há alguém que ela não transforme ou que torne ainda pior, é esse coração endurecido que tem razão de se afligir; essa resistência inflexível é de todos os indícios de reprovação o mais certo e o mais visível. Um cristão que vive mal e que Deus não castiga, deve tremer; e, se lhe resta ainda algum sentimento, deverá fremir; mas um pecador que Deus castiga e que não verga aos seus golpes, pode-se ousadamente arrolá-lo entre os réprobos e desesperar da sua salvação.
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