sexta-feira, 20 de junho de 2014

Sociedade Orgânica - Bem Comum e Lei Natural




Raphael de la Trinité

         Qualquer homem tem conhecimento, mais ou menos definido, da lei natural. Aqui entra a questão da consciência, em si mesma e em suas relações com o próximo.
         São Paulo proferiu um lugar-comum, quando falou da lei que se acha inscrita nos corações (Rom. 2,15). E até uma pessoa sem formação jurídica sabe perfeitamente que há uma diferença entre o que é justo e o que é formalmente legal, entre o que é justo e o que é ilegal. Esse apelo para a ideia de justiça, para a “lei” enquanto distinta da simples vontade do legislador, é testemunho irrefutável para a convicção da existência da lei natural.
        O homem, dotado de razão e livre-arbítrio é união do princípio que a constitui, a alma, e do princípio formado, a matéria, isto é, o corpo. Cabe à natureza do homem aperfeiçoar-se numa vida operante, cujo fim é uma vida que corresponda tão perfeitamente quanto possível à ideia do homem, a uma vida de acordo com a razão.
        Aristóteles afirma que esse fim não pode ser alcançado pelo homem solitário, pois só pode ser atingido por homens vivendo nessa comunidade, indicada por todas as qualidades essenciais e pela natureza mesma do homem. A vida social (isto é, viver em comunidade com seu semelhante) é necessidade, não em virtude de “carência”, mas da perfeição intencional da natureza do homem. Desse modo, a comunidade é forma intencional de vida para o indivíduo.
         “Comunidade” emprega-se aqui, não no sentido de modo de vida geral, vago sentimental indefinido, e sim, no sentido de formas sociais, definidas e concretas. Dessas formas, duas ao menos são fundamentais ou necessárias, servindo direta e indiretamente para a geração, a exaltação, a perfeição e a transmissão da vida, esta em seu sentido pleno: a vida intelectual, moral, cultural, e a vida “biológica”. Tais formas essenciais são a família (a comunidade de marido e mulher, de pais e filhos) e o Estado (a comunidade da vida política, de uma ordem de famílias e pessoas). O indivíduo, posto que único, ainda não está perfeito e não tem, no isolamento, oportunidade para uma vida perfeita, a realização da ideia de homem. A própria individualidade de cada um indica a participação em comunidades. O homem chega à existência como fruto da família, cuidado e protegido durante os verdes anos até que fique habilitado para cumprir o seu destino, realizar concretamente sua personalidade e tornar-se homem, atingir o estado de felicidade que cada um busca — isso, na medida em que as paixões e a ânsia das coisas desumanas, não lhe obscureçam a mente. Ora, o individuo não mergulha na comunidade qual órgão sem alma, inconsciente, mas conserva sua personalidade individual e torna-se membro de um conjunto, a fim de desenvolver mais completamente sua personalidade. Por isso, a vida em comunidade engradece, exalta e aperfeiçoa o individuo e sana as dificuldades e carências ligadas à mera individualidade e ao isolamento.
        Neste sentido, entra a distinção fundamental, estabelecida pelo Papa Pio XII, entre povo e massa (Radio-mensagem do Natal de 1944).
        Em síntese, povo é um conjunto de pessoas, ou seja, indivíduos com personalidade própria, inconfundível; quanto à massa, é um amálgama de compostos sem individualidade própria, razão pela qual podem ser plasmados, secundo o bel-prazer de um ditador ou manipulador de multidões.
        Santo Tomás de Aquino (Summa Theol., IIa IIae, q. 58, a; 7 ad 2) faz notar que o bem comum é essencialmente diferente do bem particular. Analogamente, a justiça comutativa da distributiva (abid., q. 60, a. 3).
        Santo Tomás refere-se à dilectio socialis, isto é, à caridade social, ou amor social. O magistério da Igreja entende a caridade como um vínculo de um cidadão para com os demais. A caridade é como que a alma de uma sociedade — a força que lhe dá coesão interna. De fato, a ausência da prática da caridade causa necessariamente um grave enfraquecimento ao próprio edifício social. (Cf. Santo Tomás de Aquino, De caritate, 9).
        Os grandes mestres sempre ensinaram, em uníssono, que o Estado brota da família, em cujo seio se desenvolve.
        Leão XIII exprime esse conceito de forma magistral: “Diversas famílias, não abandonando os direitos e deveres da sociedade doméstica, unem-se sob inspiração da natureza, para se constituir em membros de uma outra grande família, a sociedade cívica” (Acta Sanetae Sedis, XXIV [1891-92], 250).

Igualitarismo e massificação social

        A mentalidade igualitária e o intervencionismo estatal representam as duas principais correntes ideológicas que lutam contra os ideais de liberdade, princípios morais e ordem natural, não obstante encobrirem por vezes as suas intenções.
        As ordens hierárquicas entre os seres humanos exprimem as várias formas e aspectos da perfeição divina. Considerando que Deus é infinito, por mais perfeita que seja a criatura humana, nunca poderá alcançar sozinha a perfeição divina, que é ilimitada. Torna-se, em consequência, necessária a existência de um  número incalculável de seres diferenciados, de maneira que possam refletir a perfeição divina. (“Santo Tomás de Aquino, Summa Teológica¸ I, Q. 47, a. 2, e Summa Contra os Gentios, Livros. 2, cap. 45).
        Ignorar ou pôr de lado a imensa variedade de perfeições, capacidades e funções da natureza humana, em nome de um quimérico ideal de igualdade, constitui uma inversão de valores, um absurdo e uma afronta ao senso comum.
        São João Crisóstomo (344-407), Patriarca de Constantinopla e um dos quatro Doutores da Igreja do Oriente, explicou este assunto com uma lógica e vigor incomparáveis, ao afirmar: “Os inimigos da piedade utilizam as desigualdades que nos é dado observar entre ricos e pobres, com o intuito de formularem um raciocínio capcioso contra a Divina Providência. Contudo, se utilizássemos de forma adequada a nossa inteligência, perceberíamos logo que essa desigualdade é a mãe do trabalho e da produção (...). Como seria a sociedade se todos os homens fossem igualmente ricos? Ninguém trabalharia; ninguém teria uma ocupação braçal ou um trabalho árduo; os campos ficariam por cultivar, e a ociosidade reinaria nas nossas cidades; o comércio, a produção, e todas as artes cairiam em extinção. E as pessoas ainda acusam a Divina Providência de não ter feito todos os homens igualmente ricos?”.
       
Princípios de uma Sociedade Orgânica

        Primeiro princípio: A existência de potencialidades como algo inerente a cada homem.
        A base da concepção orgânica da sociedade reside no princípio de que, em linhas gerais, os homens possuem personalidades muito ricas e variadas. A sociedade deve encorajar cada um  a atualizar suas potencialidades, fornecendo-lhe meios abundantes para tal.

        Segundo princípio: A existência de leis naturais
        Como já referido acima, as leis naturais decorrem da própria natureza humana, dai serem normas imperativas.
        “Orgânico” deriva de organismo, ou seja, estrutura viva, ordenada pela própria natureza, cujas leis são fundamentalmente imutáveis.

        Terceiro princípio: Uma sociedade se constrói de baixo para cima.
        A sociedade medieval, por exemplo, organizou-se de modo orgânico. Não foi um rei que decretou: “De hoje em diante, passa a existir o Reino da França, e começarei a governá-lo”. Precisamente foi o contrário que sucedeu. Tudo começou de baixo para cima: das famílias para as mesnadas (associação de clãs ou famílias com laços mais próximos); destas para as vilas; daí para o os feudos; e, dos grandes feudos, para o Reino. Organização foi piramidal.
        Em tais condições tudo se processou de um modo verdadeiramente conforme as necessidades locais. Não foram elucubrações de um “filósofo de gabinete” que construíram os reinos do Velho Continente, quer se trate da França ou Espanha, quer se trate do Sacro Império Romano-Germânico ou de qualquer outra nação do concerto europeu.
        Quarto Princípio: Subsidiariedade
        A formação das sociedades maiores não elimina as que são menores, pois aquelas só devem fazer aquilo que estas não são capazes de fazer por si só. Com efeito, a união dos pequenos feudos num maior não destruía os pequenos, nem a reunião dos grandes feudos suprimia os menores.
        Algo disso se verifica nas associações futebolísticas, Assim, a existência da federação de clubes não prejudica a dos clubes, com base no princípio de que a federação não se imiscui nos assuntos internos de cada clube. É uma vantagem para estes. O processo é semelhante ao que vemos na organização política medieval. A formação das sociedades mais altas constituía um enriquecimento para as inferiores.

        Quinto Princípio: Espírito associativo intenso
        Como resultado desse espírito associativo, a sociedade medieval compreendia um sem número de subdivisões em agrupamentos dos mais variados tipos e dimensões.
        Lubeck,  por exemplo, cidade no norte da Alemanha, que deveria ter no século retrasado de 50 a 60 mil habitantes, possuía nessa mesma época duas mil organizações culturais, artísticas, esportivas e religiosas. Na Idade Média tal número era consideravelmente maior.

        Sexto Princípio: Vida própria e entrelaçamento das sociedades
        Ainda hoje, nas regiões antigas que conservam vivas muitas tradições medievais, nota-se o grande amor cultivado por todos em relação à sua terra natal e respectivos costumes. Quem é ejetado, extirpado desse meio, sente-se, mais do que qualquer outro, como “peixe fora d’água”, ficando a alma cheia de recordações, e com natural dificuldade para se adaptar a outras paragens. Explica-se. Em sua terra todos são tendentes a se achar membros de uma grande e verdadeira família.
        Em certo sentido notamos aqui o oposto de uma globalização massiva e desproporcional, como a que se dissemina nos dias atuais.
        Reportando-nos, mais uma vez, à Idade Média, cumpre lembrar que as classes sociais se compunham, nessa época, de três grandes grupos: clero, nobreza e povo. No interior de cada um de cada um desses agrupamentos, por sua vez, uma enorme gama de variedades e subdivisões.

        Sétimo Princípio: Caráter típico dos agrupamentos sociais
        Em nossos dias, todas as sadias particularidades locais vã fenecendo.
        No contexto medieval, pelo contrário, as sociedades procuravam manifestar-se de um modo muito visível e abundante. Proliferavam trajes característicos, músicas e emblemas próprios. Não poucas vezes, modos peculiares de se exprimir, dialetos e expressões locais naturalmente vicejavam.
         Entre os mais diversos cenários da vida, corporações de artesãos, associações de burgueses, categorias nobiliárquicas, em belas sedes, festejavam seus feriados, e davam curso a cerimônias extremamente originais. Numa sadia emulação (algo que, quando bem compreendido, só pode ser fator de ânimo e incentivo para a virtude), cada entidade procurava sobrepujar as outros, mediante a exaltação de inconfundíveis valores, prenhes de vida própria e realizações dignificantes, tudo em meio a feitos gloriosos e heroicos.
       
Oitavo Princípio: Desigualdade e pujança
        Por sua natureza, as coisas mais pujantes têm mais títulos para se distinguir entre si do que as de menor expressão ou significado. Em termos filosóficos, pode-se afirmar: quanto maior a perfeição, maior a desigualdade. Assim, por exemplo, a manifestação de talento é mais facilmente discernível entre dois escritores do que entre dois engraxates. Por quê? A razão está em que a arte de redigir é intrinsecamente superior à arte de lustrar calçados.

Nono Princípio: O amor pelo privilégio
        Certos juristas de nossos dias de tal forma se deixaram obcecar pela ideia de que só haveria verdadeira justiça na norma abstrata, impessoal, universal e igual para todos, que chegam a pleitear um sistema jurídico mundial e único, com as mesmas leis para todos os povos. Isso aberra do bom senso e necessariamente conduz a uma república universal.
        Na Idade Média, pelo contrário, um dos marcos da independência de todas as associações existentes — tomemos como exemplo o caso das corporações de ofício – consistia no fato de serem essas pequenas sociedades regidas por leis próprias. Desse modo, sentiam-se protegidas de possíveis ingerências monopolizadoras e intromissões totalitárias por parte das sociedades superiores, assim como das arbitrariedades de possíveis tiranos.
          Nesse sentido, o célebre historiador francês Franz Funk-Brentano faz notar que, na Idade Média, até mesmo famílias, em certos casos, possuíam leis próprias, e o rei as respeitava. Quando, por exemplo, o soberano queria infligir um castigo a um membro dessa família, ordenava ao chefe da mesma que a fizesse.
        Na Idade Média isso era habitual; cada cidade, cada corporação — até famílias, por vezes, como vimos —, gozavam do direito de uma legislação própria, adaptada às suas necessidades e conveniências específicas. Ao contrário de nossos dias, as pessoas não se perdiam no anonimato e, quando prevaricavam, costumavam ser julgadas por elementos de seu agrupamento social.

        Objeções: O privilégio não poderia gerar abusos?
        Ao contrário do que comumente se imagina, a tendência dos agrupamentos menores era de castigar com muito rigor, por isso frequentemente, como no caso das universidades, a autoridade intervia para atenuar a pena.
        Quando estudamos a vida dos reis medievais, vemos que uma das principais ocupações de que se incumbiam, era a de julgar. São Luiz IX, Rei da França, costumava receber o povo todos os dias, debaixo de um carvalho em Vincennes, e, em contato direto com as famílias e as corporações, distribuía a justiça.
        Também a instituição jurídica da apelação foi amplamente conhecida na Idade Média.

        Os privilégios dos cavaleiros
        Sempre longe de sua família, o cavaleiro passava os dias combatendo, ao passo que o cidadão comum levava uma vida sem maiores riscos ou sobressaltos. Havia, portanto, uma lei especial para quando agisse bem e uma lei especial para quando agisse mal.

        Décimo princípio: Opinião pública, autêntica e participação popular verdadeira – diferença entre ‘opinião pública e opinião publicada’
        Hoje em dia pelo fato de votar nas eleições, o homem comum julga estar participando do governo. Na realidade, porém, o voto de um operário tem um mesmo valor que o voto de um general, de um professor, de um embaixador. O resultado acaba sendo, que os maiores demagogos no geral vencem. É isso uma participação efetiva no governo? Na Idade Média cada homem se pronunciava nos problemas que entendia, ou seja, pertinentes ao  seu feudo, à sua cidade, corporação de ofício, universidade...
        Em todos os níveis da escala social, esse contato necessariamente fazia com que os súditos influíssem na ação de governo dos seus senhores.
        O modo concreto pelo qual o povo influía nos negócios públicos variava enormemente de região para região, de instituição para instituição. Contudo, o traço dominante de todos os lugares era sempre este: o povo atuante, por vias costumeiras, na direção da coisa pública.

Santa Hildegarda de Bingen e a desigualdade social




Interrogada por que só admitia em seu convento damas de alta linhagem, quando o Senhor se rodeara de gente humilde, escreveu Santa Hildegarda:

“Deus vela junto de cada homem para que as classes baixas nunca se elevem sobre as altas, como fizeram outrora Satanás e o primeiro homem, que quiseram exaltar-se acima de seu próprio estado...”.

Assim continua: “Quem há que guarde num só estábulo todo o seu rebanho, bois e jumentos, ovelhas e carneiros? Por isso devemos velar para que o povo não se apresente todo misturado num só rebanho. De outro modo produzir-se-ia horrorosa depravação dos costumes, e todos se dilacerariam mutuamente, levados pelo ódio recíproco ao ver como as classes altas se rebaixariam ao nível das classes baixas, e estas se alçariam até a altura daquelas. Deus divide seu povo sobre a terra em diferentes classes, como no Céu classifica seus anjos em diferentes grupos. Porém Deus ama a todos igualmente”.

(Fonte: Migne, t. 197, col. 336)
Retirado de: Pale Ideas


Assim também ensinava Pio XII:


“As desigualdades sociais, inclusive as ligadas ao nascimento, säo inevitáveis. A natureza benigna e a bênção de Deus à humanidade iluminam e protegem os berços, osculam-nos, porém não os nivelam”. Logo adiante, continua: “Uma mente instruída e educada de modo cristão não pode considerar tais desigualdades senão como disposição desejada por Deus, pela mesma razão que Ele quis as desigualdades no interior da família, e, portanto, destinadas a unir mais os homens entre si na viagem da vida presente para a pátria celeste, uns ajudando os outros do mesmo modo que um pai ajuda a mãe e os filhos” (Nota (1) Alocuçäo ao Patriciado e à Nobreza romana em 5 de janeiro de 1942, Discorsi e Radiomessaggidi Sua Santità Pio XII, Tipografia Poliglotta Vaticana, pp. 345-349).

O COMUNISMO É INTRINSECAMENTE MAU, O LIBERALISMO ECONÔMICO, NÃO!







Raphael de la Trinité


Onde reside a distinção essencial entre os sistemas capitalista e comunista?

A principal diferença reside no regime de propriedade. O capitalismo admite a propriedade privada, a livre iniciativa e a liberdade de contrato, como expressões da Lei natural, enquanto o regime socialista nega esses direitos básicos. Por isso, o socialismo e o comunismo são intrinsecamente maus. Quanto ao capitalismo, só é condenável pelo fato de separar a economia da moral, assim como por seus abusos (por exemplo, o denominado supercapitalismo, justamente por seu caráter de moloch, já prenunciava certas formas de dirigismo totalitário, tais como presenciamos nos dias de hoje).

Pode-se afirmar que o direito de propriedade esteja consignado no Decálogo?

Sim, Deus assegurou o direito de propriedade particular em dois mandamentos de Sua Lei: "Não furtarás" (7) e "Não cobiçarás a casa de teu próximo; não desejarás a sua mulher, nem o seu servo, nem a sua serva, nem o seu boi, nem o seu jumento, nem coisa alguma que lhe pertença" (10) (Ex. XX, 15 e 17).

Ensina Nosso Senhor Jesus Cristo: "Em verdade vos digo: antes passarão o céu e a terra, que passe da lei um só jota ou um só ápice, sem que tudo seja cumprido. Aquele, pois, que violar um só desses mandamentos (ainda que os mais) pequenos, e ensinar assim aos homens, será considerado o menor no reino de Deus" (Mt. V, 18-19).

A Sagrada Escritura faz-nos ver o castigo infringido por Deus ao Rei Acab e à sua mulher, Jesabel, por terem pecado gravemente, tomando a propriedade de Nabot — a vinha de Nabot (Cfr. I Reis XXI).

Que se pretende sustentar com a afirmação de que o direito de propriedade é um direito natural?

Equivale a dizer que, tendo sido estabelecido pelo próprio Deus, a nenhuma autoridade é facultado suprimi-lo, nem mesmo escamoteá-lo (quer mediante o uso da violência, quer mediante iniciativas espoliadoras ou confiscatórias). Noutras palavras, tanto o comunismo como o socialismo são inaceitáveis, seja em suas formas mais arraigadas e extremas, seja nas mais mitigadas.

O Direito Natural possui quatro propriedades, a saber: unidade, universalidade, imutabilidade e indelebilidade.

Na Introdução à Suma Teológica, I-II, de SANTO TOMÁS DE AQUINO — por Santiago Ramirez e outros, q. 94, B.A.C., págs 112 y 113 —, encontra-se uma definição muito completa de lei natural. Entende-se: “proposições imperativas ou preceitos universais da razão prática, participada da lei eterna, acerca das coisas boas ou atos intrinsecamente bons ou maus, em ordem ao bem comum da bem-aventurança natural, promulgadas ou impressas naturalmente na razão humana por Deus, como legislador e supremo governante da comunidade natural dos homens”.

Enquanto o homem participa da razão eterna de maneira intelectual e racional, o mesmo não passa com a criatura irracional. Por esse motivo, essa participação eu ocorre no homem, chama-se com propriedade lei, enquanto que nas demais criaturas só por certa analogia poderá considerar-se lei.

Princípios: Se a lei natural é concebida enquanto algo essencialmente natural, com enunciados universais da razão prática, necessariamente deverá haver uma adaptação desta à natureza e ao modo como atua. Assim, a semelhança do que acontece com o conhecimento especulativo, encontramo-nos, no caso do conhecimento prático, em face de um processo que parte de princípios evidentes até os mais distantes. À testa de tudo encontramos a sindérese, que se define como sendo os princípios universalíssimos que nos inclinam a fazer o bem e evitar o mal. Desse princípio se deduzem os demais.


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RELAÇÃO ENTRE DIREITO DE PROPRIEDADE E LIBERDADE HUMANA


Deus nos criou, de um lado, com certas necessidades, e, de outro, com capacidade para satisfazer essas mesmas necessidades.

Figuremos o caso de um homem faminto, que vê um peixe que saltita no mar. Assiste-lhe o direito de apanhá-lo e comê-lo, visto que o peixe não é de ninguém. Com efeito, não se configura crime de furto assenhorear-se (apossar-se) de coisa que nunca pertenceu a ninguém (res nullius), ou de coisa abandonada (res derelicta).

Segunda imagem: suponhamos que essa mesma pessoa resolva fazer um anzol. Para isso, serve-se de uma vara que não é de ninguém. Feita essa vara de pescar — algo que criou mediante o recurso de suas mãos e inteligência —, essa vara é dele. Digamos que, fazendo uso dessa vara, consiga apanhar algumas dezenas de peixes. Igualmente os peixes lhe cabem por direito, porquanto os peixes, que, antes disso, a ninguém pertenciam, foram pescados por ele, que os conseguiu graças ao esforço empreendido, ao trabalho realizado, à vara que fabricou. E, na hipótese de que essa mesma pessoa tenha fabricado uma rede e, por esse meio, haja conseguido apanhar algumas centenas de peixes?É óbvio que dele serão também, e pelas razões supracitadas.

Terceira imagem: podemos conceber que o mesmo indivíduo, uma vez feita essa pesca, resolva trocar essas centenas de peixes por uma casa, por mais diminuta que seja. Essa habitação também será sua, pelos mesmos motivos já mencionados.

— Por quê? A casa é fruto dos peixes, de que ele já era dono, pois apanhara tais peixes graças à aplicação de seu trabalho, de seu engenho e do esforço de suas mãos.

Em presença dessa realidade corrente, qual a posição das variadas correntes que se afirmam comunistas ou socialistas?

Quando o comunismo diz que ninguém é dono de nada, está afirmando, “ipso facto”, que o pescador não é dono de sua casa; igualmente, por via de dedução, que não era dono dos peixes que havia pescado, bem como que não era dono de suas mãos e de sua inteligência. Ora, aquele que não é dono de suas mãos, nem de seu engenho ou capacidade mental, é escravo.

Portanto, inegavelmente, ao negarem o direito de propriedade particular, o comunismo e o socialismo afirmam que o homem é escravo.

Não surpreende, portanto, que os Papas sempre tenham formulado as mais explícitas e categóricas condenações do comunismo e do socialismo, em todos os seus matizes.

Nesse sentido, é de assinalar a peremptória afirmação de Pio XI: ninguém pode ser católico e socialista, ao mesmo tempo. Socialismo e catolicismo são inconciliáveis. (Cfr. Pio XI, encíclica Quadragésimo Anno).

O que pensa o comunismo sobre a família e a dignidade da mulher?



DESTAQUE

Ninguém deveria ser obrigado a permanecer num relacionamento no qual o amor não mais existisse. Os bolcheviques não determinaram quanto uma união livre desse tipo deveria durar. Eles reconheceram a possibilidade de durar a vida inteira, muitos anos, alguns dias, ou mesmo horas. Era impossível prever como as relações humanas se desenvolveriam no socialismo. Eles acreditavam que a duração de qualquer relacionamento deveria ser de livre escolha das duas partes envolvidas.

Em 1927, após intenso debate, a lei se tornou ainda mais radical. Um novo Código da Família reconheceu o casamento de facto ou a união estável como equivalentes jurídicos do casamento civil. O novo código também simplificou o procedimento de divórcio. Marido ou mulher poderia receber o divórcio simplesmente mediante o preenchimento de um formulário num cartório. O cônjuge seria informado do divórcio por meio de um cartão postal.

O Estado e a Igreja não tinham direito de interferir nas escolhas pessoais dos indivíduos.As lições do primeiro experimento soviético são claras. É impossível criar relações mais livres entre homens e mulheres sem o controle de natalidade, aborto legal, emprego em período integral, creches e outras instalações.

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Bravas 'babushkas'

WENDY GOLDMAN
7/6/2014


Cem anos após a revolução que as libertaria, mulheres russas ainda lutam por direitos


Em 2012, um pequeno grupo de moças pertencentes ao conjunto punk feminista conhecido como Pussy Riot entrou na Catedral de Cristo Salvador, em Moscou. Usando máscaras e carregando guitarras, elas cantaram “Oração Punk - Mãe de Deus, Livrai-nos de Putin!”. O objetivo da performance era chamar a atenção para o elo entre o presidente russo, Vladimir Putin, e a Igreja Ortodoxa. Com o apoio da igreja, Putin deu vida nova à combinação entre poder estatal repressivo e ortodoxia religiosa que guiou a Rússia no século 19. Como resultado da performance do Pussy Riot, três do grupo foram detidas, acusadas de “vandalismo” e sentenciadas a 2 anos num campo de trabalhos forçados. De acordo com Putin, a banda “sabotou os alicerces morais do país”. Mas quem define a moralidade? O Pussy Riot foi formado para protestar contra restrições cada vez maiores ao aborto e à democracia. Seus membros - anarquistas, trotskistas e feministas - consideram o grupo parte de um movimento global contra a imoralidade do capitalismo global.

As jovens do Pussy Riot são parte de uma antiga tradição feminista revolucionária na Rússia. No início do século 20, as trabalhadoras têxteis russas criaram a primeira organização de massa para defender os próprios interesses. Trabalhadoras pobres já tinham se organizado na Revolução Francesa, mas principalmente em defesa de sua classe, não de seu gênero. A Revolução Russa foi a primeira a incluir as mulheres e seus interesses como parte integral de uma coalizão insurgente. As trabalhadoras ativistas encontraram um público entusiasmado nas fábricas e vilarejos. Convenceram a liderança masculina do Partido Bolchevique a organizar as mulheres, publicar um jornal voltado para elas e criar o Departamento da Mulher (Zhenotdel) dentro do partido. Sua visão da emancipação da mulher se tornou parte da legislação aprovada pelo novo Estado soviético quando esse chegou ao poder, em outubro de 1917.

Trata-se de grandes momentos da história nos quais tudo parece possível: repensar a maneira de estruturar o mundo, a distribuição da riqueza e dos recursos, padrões arraigados de exploração e injustiça e até as relações mais humanas. Esses momentos não ocorrem com frequência, mas, quando ocorrem, trazem um novo e intoxicante sentido de promessa e euforia diante da possibilidade de mudança. Os anos 1920 foram um período de grande fermentação e debate. Os revolucionários tinham ideias para mudar praticamente todos os aspectos da vida. Os camponeses redistribuíram a terra, os trabalhadores assumiram o controle das fábricas. As pessoas debatiam novas ideias sobre política, produção, educação, religião, cultura, arquitetura e direito. Um dos temas mais interessantes dos debates envolvia a recriação da família e a criação das condições para a igualdade das mulheres.

O novo Estado soviético e o Partido Bolchevique tinham uma visão da libertação das mulheres baseada em quatro princípios: liberdade de união, emancipação da mulher por meio da autonomia financeira em relação ao homem, socialização do trabalho doméstico e gradual e inevitável “fenecer” da família enquanto unidade econômica.

Cada um desses elementos tinha uma longa história na tradição revolucionária. A ideia de liberdade de união ou amor livre, por exemplo, originava-se em antigas seitas cristãs [SIC!]. Os bolcheviques acreditavam que os relacionamentos entre parceiros deveriam ter como base o amor, a atração e o respeito mútuo, livres de todas as limitações e dependências econômicas. Ninguém deveria ser obrigado a permanecer num relacionamento no qual o amor não mais existisse. Os bolcheviques não determinaram quanto uma união livre desse tipo deveria durar. Eles reconheceram a possibilidade de durar a vida inteira, muitos anos, alguns dias, ou mesmo horas. Era impossível prever como as relações humanas se desenvolveriam no socialismo. Eles acreditavam que a duração de qualquer relacionamento deveria ser de livre escolha das duas partes envolvidas. O Estado e a Igreja não tinham direito de interferir nas escolhas pessoais dos indivíduos.

Mas, para que ambas as partes fossem livres, elas teriam de ser economicamente independentes. A participação na força de trabalho daria às mulheres independência econômica em relação aos homens, e também as apresentaria a um mundo mais amplo fora do lar. As mulheres não podiam mais se ocupar apenas com o estreito mundo da cozinha, faxina e cuidados com as crianças, tornando-se participantes ativas da esfera pública.

As mulheres, no entanto, se encarregavam de um trabalho essencial (aquilo que Marx chamou de “trabalho reprodutivo”) no lar. Elas cozinhavam, faziam as compras, lavavam as roupas, limpavam a casa e cuidavam das crianças, dos inválidos e dos idosos da família. Esse trabalho era necessário para a vida social, mas não era remunerado. Os bolcheviques acreditavam que, quando as mulheres entrassem para a força de trabalho assalariada, elas deveriam ser dispensadas de tais tarefas por meio da socialização do trabalho doméstico. Os trabalhos não remunerados desempenhados pelas mulheres no lar passariam a fazer parte da economia nacional, assumidos por trabalhadores assalariados. Os refeitórios, creches e lavanderias libertariam as mulheres das tarefas do lar.

Privada de todas as funções econômicas e sociais, a família “feneceria” gradualmente. As crianças seriam sustentadas independentemente de seus pais serem casados ou não. O próprio conceito de ilegitimidade deixaria de existir. As pessoas não precisariam mais se casar. Viveriam juntas ou em separado sem nenhuma consequência social negativa. Não haveria necessidade de regular as relações sexuais com leis religiosas ou do Estado.

Essa visão revolucionária da vida foi o resultado de condições específicas do capitalismo da virada do século. Antes da revolução, as autoridades religiosas controlavam o casamento e o divórcio. De acordo com a lei do país e da Igreja, uma mulher devia obediência completa ao marido. Ela era proibida de trabalhar, estudar, vender e comprar propriedades, não podendo nem mesmo escolher o local de sua residência sem o consentimento do marido. O divórcio era quase impossível de se obter e os filhos ilegítimos não tinham direitos pela lei. Ao mesmo tempo, um número cada vez maior de mulheres entrava na força de trabalho conforme os capitalistas substituíam os trabalhadores pela força de trabalho feminina, mais barata. As operárias trabalhavam seis dias por semana, dez ou mais horas por dia. A mulher de classe trabalhadora não poderia combinar o trabalho assalariado com os cuidados com a família. Dois terços dos filhos das trabalhadoras morriam antes de completarem 2 anos. Os bolcheviques esperavam resolver a contradição criada pelo capitalismo entre o trabalho assalariado das mulheres e as necessidades da família.

Em 1920, a União Soviética se tornou o primeiro país a legalizar o aborto. Ele ficou seguro, gratuito e legal, disponível para as mulheres nos hospitais. Os líderes masculinos em matéria de direito e saúde pública acreditavam que o aborto era um mal criado pelas dificuldades materiais. As mulheres não precisariam de abortos se pudessem contar com creches, emprego em período integral e licença-maternidade, mas, no curto prazo, o aborto seria necessário porque tais condições ainda não existiam. As mulheres, no entanto, tinham uma opinião diferente. Depois que o aborto se tornou legal, mulheres de todas as classes e posições sociais começaram a usá-lo como forma de tomar decisões pessoais em relação ao próprio destino. Para elas, o aborto legal e o controle de natalidade eram essenciais para a emancipação das mulheres. Elas entenderam o aborto não como uma medida de curto prazo e sim como um direito humano básico.

As revolucionárias ideias dos bolcheviques a respeito da família estavam intimamente ligadas a suas ideias sobre o direito. Eles acreditavam que, dentro do socialismo, Estado e lei feneceriam. O Estado, braço armado de uma classe que controla outra, não precisaria exercer o poder coercitivo numa sociedade sem classes. O direito civil, ou a regulação das relações de propriedade burguesas, se tornaria obsoleto. As pessoas não precisariam mais roubar nem matar, e até o direito criminal “feneceria”. Os juristas revolucionários não quiseram criar um poderoso edifício estatal, estimulando em vez disso o fenecimento gradual da família, do Estado e do Direito.

Em 1918, o novo governo socialista apresentou o Código da Família, acabando com séculos de poder patriarcal e religioso. Era o direito da família mais progressista que o mundo já vira. O código estabeleceu o casamento civil em lugar do casamento religioso e criou a igualdade legal entre homens e mulheres. A ilegitimidade foi abolida, conferindo a todos os filhos o direito de receber sustento dos pais. Permitiu o divórcio a pedido de qualquer dos cônjuges; não seria necessário apresentar motivo. Foram estendidos direitos a pensão para homens e mulheres caso fossem inválidos ou pobres. Em 1927, após intenso debate, a lei se tornou ainda mais radical. Um novo Código da Família reconheceu o casamento de facto ou a união estável como equivalentes jurídicos do casamento civil. O novo código também simplificou o procedimento de divórcio. Marido ou mulher poderia receber o divórcio simplesmente mediante o preenchimento de um formulário num cartório. O cônjuge seria informado do divórcio por meio de um cartão postal.

Em pouco tempo a legislação começou a enfrentar graves problemas sociais. Muitos homens se aproveitaram da facilidade do divórcio para se casar e abandonar várias mulheres, deixando todas com filhos. O alto desemprego entre as mulheres nos anos 1920 tornou o divórcio particularmente doloroso. As mulheres enfrentavam dificuldades para obter pensão para si e para os filhos, e algumas foram obrigadas a recorrer à prostituição. Como resultado da 1ª Guerra Mundial, da guerra civil e de uma terrível fome em 1921, havia 7 milhões de crianças sem teto na União Soviética. Viviam nas ruas e sobreviviam roubando e apelando para o crime e a prostituição. O Estado não tinha recursos para cuidar delas. Os camponeses também tiveram problemas com o divórcio. O lar camponês incluía a terra, os animais, as ferramentas e a habitação, tornando quase impossível para as mulheres divorciadas viver com independência no vilarejo. As mulheres começaram a abortar em grande número.

Já em 1930 Josef Stalin conseguiu eliminar tanto a oposição de esquerda quanto de direita dentro do Partido Bolchevique, e o Estado começou a buscar novas soluções para os problemas sociais. O Estado rejeitou a primeira visão socialista para adotar uma nova abordagem repressiva. Na tentativa de tirar as crianças sem teto das ruas e reduzir a criminalidade, foram aprovados castigos mais rigorosos para os crimes cometidos por menores de idade. O divórcio se tornou mais difícil de obter. O famoso “divórcio por cartão postal” foi abolido. Os homens que deixavam de pagar pensão passaram a ser processados criminalmente. E, em 1936, o aborto se tornou ilegal. Líderes do Estado e do partido rejeitaram oficialmente a ideia anterior segundo a qual família, Estado e Direito “feneceriam”. Foi dada nova ênfase à unidade familiar enquanto chave para o controle social. Muitos dos primeiros juristas foram detidos, enviados a campos de trabalho ou executados.

O sonho soviético não fracassou completamente. Nos anos 1930, durante o grande impulso de industrialização, as mulheres ingressaram na força de trabalho. Foram beneficiadas pela educação em massa e pela mobilidade ascendente. O Estado criou centros para cuidar de crianças e refeitórios. Mas o trabalho do lar nunca foi de fato socializado. As mulheres trabalhavam fora de casa e se ocupavam da maior parte do trabalho do lar. Elas assumiram o “duplo fardo”.

A primeira visão bolchevique ainda não foi concretizada: independência econômica para as mulheres, um salário digno que permita às trabalhadoras sustentar a família, emprego em período integral, benefícios de saúde e licença-maternidade e a socialização do trabalho no lar. Em muitos países, as mulheres carecem de acesso a um controle de natalidade seguro e barato e ao aborto legal. A violência contra as mulheres é endêmica, seja nas ruas ou na família. As lições do primeiro experimento soviético são claras. É impossível criar relações mais livres entre homens e mulheres sem o controle de natalidade, aborto legal, emprego em período integral, creches e outras instalações. Hoje, quase cem anos após a Revolução Russa, as mulheres do Pussy Riot e outros grupos ainda estão lutando pelos direitos das mulheres. Seus atos nos lembram de uma antiga canção das tecelãs:

“A liberdade não chega voando como um pássaro / A liberdade não desaba como a chuva de verão / A liberdade é algo conquistado a duras penas / É preciso trabalhar por ela, lutar por ela / Dia e noite, de novo e de novo / E cada geração precisa lutar por ela mais uma vez”. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

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Wendy Goldman é professora da Universidade Carnegie Mellon e autora de 'A mulher, o Estado e a Revolução' (Boitempo). Escreveu este artigo especialmente para o Aliás

Fonte: Estadão
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