sexta-feira, 8 de março de 2013

O Bom Amigo


HISTORIETAS
Biblioteca do jornal
Leituras Populares de Lisboa
Autor desconhecido - 1878






Um dia de festa brincavam os rapazes no adro da Igreja do lugar, jogando a péla. Suscitou-se repentinamente uma contenda entre dois. Estevam, um rapazote de dez anos, forte e resoluto, pobremente vestido, porque era filho de um bom trabalhador, mas pobre pai de cinco filhos; e Jorge, da mesma idade, mas fraco, bem trajado, com seu fato novo de belbutina com botões amarelos, porque era filho do proprietário mais rico da terra, o que contribuía para que fosse algum tanto rixoso, e amigo de implicar, bem como certos cãezinhos que não podem deixar de ladrar às pernas de quem passa; dava-se grande importância pelo que se tornava insuportável atraindo sobre si as inimizades dos seus companheiros.

Ia terminar a disputa e recomeçar o jogo, quando Jorge comparando o seu rico fato com os remendos de Estevam, disse-lhe com desprezo, mirando-o dos pés á cabeça:

— Mais valera que te foras esconder com as tuas calças remendadas e a tua jaleca toda suja! Vai-te dai, pobretão!

Os olhos de Estevam inflamaram-se de cólera. Instigado pelos outros companheiros, que o animavam com palavras e com o gesto, arremeteu contra Jorge de punho erguido e cerrado. Este último recuou á cautela. Com um pulo teria Estevam podido alcança-lo e estende-lo no chão; mas a sua intenção era outra: a ideia de uma vingança cruel passou-lhe rapidamente pela cabeça. Empuxou-o para a beira de um grande charco de água cheia de limos. Então um sorriso singular lhe assomou aos lábios; atirou-se a Jorge e com um grande empurrão num ombro, lançou-o dentro do charco.

Toda a rapaziada aplaudiu.

Aos gritos que a vitima dava, debatendo-se no lodo, acudiu um homem. Entrou na água, segurou Jorge pela gola, pegou nele como quem pega numa pena de pô-lo em terra por seu pé. Este homem era o pai de Estevam.

Sem dizer uma só palavra ao filho, travou-lhe da mão e o levou-o rapidamente para a sua habitação; entretanto Jorge, envergonhado e triste, olhava com mágoa para o fato cheio de lama e limos.

— Assenta-te, disse o pai de Estevam assim que entrou em casa, apontando-lhe para um banco.

O rapazinho obedeceu; tremia como varas verdes. Assustava-o a tranquilidade de seu pai, na qual ele achava alguma coisa terrível. Querendo ver se podia justificar-se, balbuciou:

— Meu pai, deixe-me contar...

— Não se faz preciso. Tudo quanto podias dizer-me, já eu sei. Agora escuta-me.

O pai de Estevam estava pálido; assentou-se em frente do filho. A mulher tinha saído com os outros filhos, o que nada contribuía para tranquilizar o pobre rapaz. As lágrimas corriam-lhe a quatro e quatro.

— Meu pai, disse ele, eu hoje fiz uma grande maldade; mas eu já não hei de tornar; eu lhe prometo! não me bata, pai!

Estas últimas palavras do filho fizeram estremecer o pai, que se tornou mais pálido ainda.

— Já te bati alguma vez?! disse ele com uma voz singular. Já viste que eu, alguma vez, levantasse a mão para ti ou para algum de teus irmãos?

— Oh! não, senhor; não, meu pai, nunca!

— Deus não deu ao homem a força para servir-se dela brutalmente. Tu acabas de praticar uma ação má, Estevam; sim, tu foste mau; mas antes de repreender-te, quero experimentar se tu tens coração, e se este é bom ou mau.

«Um dia, há pouco mais de dez anos, ia eu com tua mãe a uma festa a outra freguesia vizinha. Ela ia encostada ao meu braço; um moço que passava insultou-a. (Vim depois a saber que queria dirigir-se a outra pessoa.) O seu erro foi falar. Ainda ele não tinha acabado de falar, já eu, arrebatado pela cólera, lhe tinha dado uma punhalada com tal violência, que caiu a meus pés, como uma massa.

«No dia seguinte, o infeliz estava em agonias de morte, e eu... na cadeia!

«Perceber, Estevam? Para vingar a tua mãe ultrajada, tinha eu morto um de meus semelhantes! Fui levado pelos guardas e encarcerado; havia merecido aquela sorte, porque tinha cometido um grande crime e um pecado. 

«Estava o inverno á porta, e o ano tinha sido mau. Tua mãe era só, não tinha pão, nem lenha, nem dinheiro para suprir-se; não podia trabalhar. Estavas tu para vir ao mundo...

«Só Deus compreendeu a minha dor, e viu as lágrimas, que eu chorei no meu cárcere. Ouviu-me amaldiçoar a força que ele me tinha dado, e foi de joelhos, com as mãos postas, que eu jurei então não me servir mais dessa força funesta, senão para trabalhar. Em poucos dias, padeci todas as torturas da alma e do coração.

« — Minha pobre Maria, dizia eu comigo, o que será de ti?

«Só este pensamento me fazia louco. Dava gritos espantosos e estava com tamanha agitação dentro do meu carcere, que entenderam ser prudente amarrarem-me com cordas, para me impedirem de atentar contra os meus dias.

«Mas eu tinha motivos demais para sentir profunda mágoa, pensando em tua pobre mãe. Chegou o inverno, e um dia, pela manhã, quando devia erguer-se, exausta de todos os recursos, ficou na cama; não tinha já forças para levantar-se. Então disse lá consigo:

« — Esta noite ou amanhã achar-me-hão morta!

«Nesse mesmo dia, uma mulher ainda nova, ou antes um anjo, entrou em nossa casa. Disse um anjo, porque, chegando á última hora, era certamente mensageira do Deus de bondade. Viu tua mãe pálida, defecada, fria, moribunda, e compreendeu tudo.

«Dai a uma hora, o lume crepitava na lareira e dois criados traziam de sua casa dois enormes cestos cheios de provisões. A morte que já tinha batido á nossa porta, não entrou, retirou-se. Tua mãe estava em caminho de viver ainda.»

Estevam escutava seu pai com uma emoção crescente.

«Aquela boa mulher, Estevam, aquele anjo de quem te estou falando, também estava muito perto de ser mãe. Ora quando uma criancinha está para nascer, preparam-se-lhe cueiros, camisinhas, toucas... e outras coisas todas pequeninas, para o inocentinho que há de vir. Tua mãe não tinha podido arranjar nada, nem um fio sequer para te receber; na quinta, sem lhe dizerem nada, preparavam dois enxovais, com quem esperava um par de gêmeos.

«No dia do ter nascimento, tua mãe chorou de surpresa e de reconhecimento, vendo-te reclinado em bons lenções finos, brancos e marcados com o seu nome. Mas ela, a tua pobre mãe, tinha sofrido tanto, durante três meses, que, quando quis dar-te o peito, viu com terror que não tinha leite! Ias morrer á fome, Estevam! A comadre era a própria que dizia que, além de seres magrinho e fraco, não havendo leite para seres amamentado, não podias viver. Ocultou isto a tua mãe, porque, se tal ouvisse, morreria repentinamente; mas disse tudo a algumas vizinhas.

«Houve até quem dissesse:

« — Ora! seria uma fortuna para a mãe.

«Como se os pobres e os mais infelizes não tivessem o direito de conservar o filhinho que Deus lhes deu!

«A dona da quinta não pensou assim. O seu filho tinha nascido havia quinze dias; entretanto que ele dormia no seu berço, correu ela aqui, tomou-te no seu colo, cobriu-te de beijos, e, enquanto tua mãe chorava, apresentou-te o peito, que tu chupaste com avidez. No fim disse:

« — Maria, se quer, o meu filho repartirá com o ser. Virei aqui, durante o dia tantas quantas vezes seja preciso, e à noite leva-lo-hei para minha casa e os nossos dois filhos dormirão ambos ao pé de mim no mesmo berço.

«E assim se fez. Por espaço de três meses, aquela mulher te alimentou com o seu leite, e tão bem, que tu nutrias e crescias a olhos vistos. Depois disso, tua mãe, que tinha recuperado a saúde, te criou sem grande trabalho, porque começaste logo a comer sopinhas como um homenzinho.

«Eu depois de três meses de prisão preventiva, fui julgado e absolvido por unanimidade do juri, e vim para a desejada companhia de tua mãe. O meu bom comportamento até aquele acontecimento fatal, os bons depoimentos de todas as testemunhas e a boa opinião dos jurados a meu respeito, tudo contribuiu para me porem em liberdade.

«Eis a verdadeira história da nossa vida.

«Agora, Estevam, já deves, certamente ter adivinhado, que foi Luiza Pereira, a mãe de Jorge, que noutro tempo foi tão boa pra tua mãe, para ti e para nós todos, e que te deitou ao lado de seu filho, quem te deu a vida.»

O rapazinho, que até então tinha podido conter-se para não interromper seu pai, desatou a chorar com grandes soluços.

— Pai, disse ele, eu não sabia todas essas coisas; estou arrependido do que fiz.

— Como então te hás de arranjar para fazeres esquecer tamanha maldade àquela boa mulher, que te foi mãe?

— Eu não sei, meu pai; não sei ainda mas de hoje em diante, Jorge será o meu melhor camarada. Às vezes, os maiores e mais fortes que ele batem-lhe; a sua defesa fica por minha conta; e como sabem que eu não tenho medo, não se atreverão a tocar-lhe.

— Já isso não é mau; mas entendes que há alguma coisas a dizer ou a fazer já, imediatamente?

Estevam olhou para seu pai, abrindo muito os olhos. Depois, levantou-se de repente e disse chorando:

— Vou pedir perdão à senhora Luzia.

— Imediatamente! era isso mesmo que eu desejava e esperava.

E, falando baixo consigo, dizia:

— A lição foi boa; Estevam será homem de coração.

Quando Estevam chegou à quinta, ainda Luiza não tinha acabado de ajudar Jorge a vestir outro fato enxuto e limpo.

— Senhora Luiza, disse Estevam, fui eu que atirei com o Jorge ao charco: venho pedir perdão a ambos. Quando eu era pequenino, continuou ele pondo-se de joelhos, vossemecê me vestiu, alimentou e livrou de morrer... Meu pai é que me disse isto agora. Dormi três meses com Jorge na mesma caminha; e, visto que agora sei tudo isto, nunca mais me esquecerei... Perdoe-me, senhora Luzia, perdoa-me também, Jorge; sou teu amigo e o serei sempre como um irmão.

— Ah! Estevam! exclamou Luiza, toda enternecida, nem tu sabes o gosto que me dás. Ainda agora chorei bastante, quando me disseram que tu é que tinhas maltratado o meu filho; tu, Estevam! Lembrava-me de quando a tua cabecinha estava reclinada sobre um lado do meu peito, quanto sobre o outro descansava a do meu Jorge!

Luzia tomou-lhe então da mão, ajudou-o a levantar-se e apertou-o entre os seus braços.

— Vem também, Jorge, disse ela para o filho, quero ter-vos ambos ainda uma vez junto do meu coração!

Os dois rapazinhos abraçaram-se; e quando Jorge dava um beijo numa face de sua mãe, Estevam beijava-lhe a outra, banhando-a com as lágrimas do arrependimento sincero.

Foi dai avante uma amizade viva e profunda, e para melhor dizer fraternal, que uniu Jorge a Estevam; e este levou a sua amizade para com aquele ao grau da maior dedicação.

Andavam sempre juntos e tão bem unidos que, na terra, todos lhes chamavam os irmãos gêmeos.

Jorge compenetrou-se da sincera dedicação de Estevam por tal forma, que, para não desgosta-lo, tratou de perder, como de fato foi perdendo, a pouco e pouco, a sua altivez desdenhosa e tornou-se melhor. Esqueceu que seu pai era o mais rico da terra, e costumou-se a considerar os seus companheiros, menos favorecidos que ele enquanto a bens da fortuna, como se fossem absolutamente seus iguais. Deixando de ser orgulhoso, perdeu os defeitos que o tinham tornado aborrecido, e adquiriu qualidades que lhe granjearam numerosos amigos.

Luiza Pereira não se envergonhava de manifestar a grande alegria que experimentava com isto.

— Estevam, dizia ela muitas vezes, tem contribuído mais para a educação de meu filho do que eu própria. Jorge deve a esta amizade tão firme quanto dedicada o que a minha ternura, por sua cegueira, não teria podido dar-lhe.

Uma repreensão bem dada e a tempo e a horas, pode fazer num momento um homem de bem, como foi sempre Estevam, a ponto de sacrificar-se pelo seu amigo Jorge, em muitos lances da sua vida, até morrer por ele, como diz a sua história, que é comprida.
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