DESTAQUE
Hedonismo e culto do momento presente –
consequência da Revolução (Cultural) de Maio de 1968, Sorbonne:
‘Foi necessário que os valores e as autoridades
tradicionais fossem desconstruídas pelos boêmios, jovens de cabelos longos,
libertários, para que o capitalismo, ele também moderno e fadado à inovação
pela inovação, pudesse fazer entrar nossos filhos na era do grande consumo de
massa sem o qual seu futuro globalizado não teria sido possível. Eis uma
verdade que vai crescer no século que está aí. Se nossos filhos tivessem os
mesmos valores que nossos avós, eles não comprariam um telefone celular por
ano, ou MP3. Do contrário, se nossos antepassados pudessem ver um grande centro
comercial, achariam provavelmente que estes novos templos edificados ao deus do
consumo escoam besteiras. Talvez pensassem que estas bugigangas que transbordam
das vitrines nos distanciam dos verdadeiros valores. Logo, foi necessário que
as visões tradicionais do mundo fossem desconstruídas para que pudéssemos nos
consagrar ao consumo sem complexos, ao menos no limite de nosso poder de
compra.
‘Estamos numa época de espiritualidade sem fé...
Não estamos mais dispostos a nos sacrificar em nome
de grandes ideias alheias, de utopias...
Quem desejaria hoje, ao menos nos países de cultura
europeia, morrer por Deus, pela pátria ou revolução? Não muita gente. É uma
grande notícia. [SIC!]...’
*** * ***
Notícia de: 9/6/2012
O francês Luc Ferry fala, em
entrevista ao ‘Estado’, sobre a revolução provocada com o estabelecimento de
uma espiritualidade laica - a filosofia do amor, que domina seu pensamento
ANDREI NETTO - CORRESPONDENTE/PARIS
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O filósofo francês Luc Ferry
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Em 1979,
quando o filósofo francês Jean-François Lyotard lançou A Condição
Pós-Moderna, ensaio que abordava o declínio da ideia de emancipação e de
outras metanarrativas nascidas com o Iluminismo, a crítica acadêmica internacional
se fissurou. De um lado, seguiram os fiéis ao projeto moderno, calcado na
construção de um futuro melhor e na ideia de um “dever ser”; de outro, os que
abandonaram as ideologias, e adotaram a convicção de que o hedonismo e o presente são a melhor
resposta às obsessões totalitárias.
Há 40 anos, essa segunda “tendência” acadêmica era marginalizada. Hoje, o curso
da história lhes dá razão. E, em lugar de controvérsia, autores que advertem
para os efeitos da ruptura das metanarrativas e dos valores tradicionais são
premiados com o sucesso. Esse é o caso do filósofo francês Luc Ferry, autor de
pelo menos dois best-sellers acadêmicos, Pensamento 68 – Ensaio Sobre o
Antihumanismo Contemporâneo (1985) eA Nova Ordem Ecológica (1992),
que lança no Brasil o ensaio A Revolução do Amor – Por uma
Espiritualidade Laica (Objetiva) e O Anticonformista – Uma
Autobiografia Intelectual (Difel).
Publicado em 2010 na França, A Revolução... teve acolhida
calorosa de crítica e público. Esse sucesso talvez se explique pelo fato de que
Ferry mergulha em um universo com o qual nos identificamos. Mesmo que se valha
de autores como Rousseau, Kant, Nietzsche, Sartre, Husserl e Heidegger para
construir sua argumentação, o livro é simples e não é difícil concordar com sua
ideia básica: vivemos uma era de ruptura, e não estamos mais dispostos a nos sacrificar em nome de grandes ideias
alheias, de utopias, mas sim em nome de nossos pais, filhos ou amigos. Um
humanismo secular; uma espiritualidade sem fé. “Existem dois tipos diferentes
de espiritualidade. Um age por meio de Deus e é, certamente, o conjunto das
religiões; o outro, sem Deus, é o grupo das grandes filosofias”, explica ele no
livro.
O Anticonformista, que Ferry lançou em seu país no ano passado,
resulta de uma série de conversas com Alexandra Laignel-Lavastine, doutora em
filosofia e especialista na história da intelectualidade. Dos anos de formação
aos embates entre direita e esquerda, passando por sua experiência como
ministro da Educação da França (2002-2004), a obra sublinha que a
espiritualidade laica “constitui a pedra angular que hoje subentende toda a
minha filosofia”. Não por acaso, A Revolução do Amor conduz a entrevista a
seguir, concedida por e-mail pelo pensador ao Sabático.
Sua tese é de que o amor, ou melhor, o casamento por amor, e não mais por
interesses, está no centro da nova ordem social. Ela gera uma segunda
globalização, que sucede à do Iluminismo. A Revolução..., embora
otimista, não é uma obra ingênua. É forte, não só pela temática e análise da
desconstrução dos valores tradicionais, mas também por uma constatação: a de
que as revoluções em curso, pelo menos no Ocidente, prosseguem – e sem
armas.
Sobre A Revolução do Amor, comecemos por sua ideia de base: algo
de revolucionário teria acontecido há alguns séculos: a invenção do casamento
por amor na Europa. Qual é a amplitude desta revolução?
É imensa! A “revolução do amor” é o nascimento da família moderna, ou seja, a
passagem do casamento arranjado ao escolhido. Esta revolução exige uma nova
filosofia. Mas também chacoalha nossa relação com a coletividade. É o que chamo
de “segundo humanismo”. O primeiro foi o da lei e da razão. Era o do Iluminismo
e dos direitos humanos, dos republicanos franceses e de Kant. O segundo
humanismo é da fraternidade. Existe desde então uma única visão do mundo movida
por este sopro de uma utopia possível. Porque o ideal que ela visa a realizar
não é o das ideias revolucionárias. Não se trata mais de organizar os grandes
massacres em nome de princípios mortíferos, mas de preparar o futuro para os
que nós amamos, as gerações futuras.
Essa revolução produziu efeitos sobre a arte e a moral, mas há efeitos ainda
em progresso, como a evolução da condição da mulher e dos homossexuais, por
exemplo. Quais são os indícios desta revolução hoje?
Esta revolução do casamento de amor, escolhido e não imposto, começa na Europa
e se estende a todo o mundo cultural ocidental. Isso quer dizer que no resto do
mundo o casamento imposto continua a ser a regra. No Ocidente, temos vivido
desde o século 20 a desconstrução dos valores tradicionais. Ela teve efeitos
negativos, mas também formidavelmente positivos, em especial para os
homossexuais e as mulheres. Observe que um país como a Suíça, o último cantão a
conceder o direito de voto às mulheres o fez, pense bem, em 29 de abril de
1991! Isso quer dizer que, até então, as mulheres ainda eram vistas como
crianças. Na França, foi um pouco mais cedo, mas, enfim, foi preciso esperar o
fim da 2.ª Guerra para que as mulheres tivessem direito de voto. Quanto aos
homossexuais, lembre-se o que a Organização Mundial da Saúde definia a
homossexualidade como doença até 1990! Sim, nosso mundo ocidental mudou mais
nos 50 anos da segunda metade do século 20 do que nos 500 anos anteriores!
Tratemos agora da destruição dos valores tradicionais. No seu entender,
parte desse processo vem do fato de que as ideias não merecem mais sacrifício,
só o humano. É isso o retorno da “sacralização”, do reencantamento do mundo?
Como a “consciência infeliz” da qual falava Hegel, nós temos sempre a tendência
de nos dar conta na história do que se destrói e morre, quase nunca do que toma
forma e vida. Logo, temos uma propensão ao pessimismo. Ao contrário do
otimismo, sempre um pouco simplório, ele confere à primeira vista uma presunção
de inteligência. Às vésperas do século 21, é verdade, a maior parte dos valores
tradicionais, em especial a nação de direito e a revolução de esquerda,
desmoronaram, ao menos na Europa. Logo, devemos constatar, pelo menos na Europa,
que os motivos tradicionais do sacrifício coletivo foram liquidados. Quem
desejaria hoje, ao menos nos países de cultura europeia, morrer por Deus, pela
pátria ou revolução? Não muita gente. É uma grande notícia. Quanto à estupidez
mortífera do maoismo, com dezenas de milhões de mortos, quem, fora alguns
intelectuais corroídos pelo desejo de se pretender interessantes, poderia não
se felicitar da sua liquidação?
Isso não quer dizer que vivemos a era do desencantamento do mundo? Há mesmo
lugar ainda, hoje, para alguma espiritualidade?
Não creio que vivamos uma era do desencantamento do mundo. Aí está até mesmo a
ilusão arquetipal desta consciência infeliz que adora tanto não adorar. O que
nós vivemos não é de forma alguma a liquidação do sagrado, o eclipse dos
valores (da espiritualidade), mas sua encarnação em nova face, a da humanidade.
Questione-se honestamente: por quem ou pelo que você estaria pronto a arriscar
sua vida? Em outros termos, o que considera sagrado no sentido próprio, como
digno de sacrifício? A resposta para a imensa maior parte seria: é o homem que
é sagrado, o próximo, mas também o seu contrário, o seguinte. Em todo caso, não
são as abstrações vazias da religião e da política tradicionais. Vivemos o
nascimento de uma nova face do humanismo, que não é mais aquele de Voltaire e
Kant, dos direitos do homem e da razão, desses iluminismos que portaram, é
verdade, um vasto projeto de emancipação, mas que conduziram também ao
imperialismo. Trata-se, ao contrário, de um humanismo pós-colonial e pós-metafísico,
da transcendência do outro e do amor. Precisaremos, então, dessas novas
categorias filosóficas (uma espiritualidade sem Deus) para refletir sobre suas
armadilhas e perspectivas.
O senhor diz que a globalização tem um papel na desconstrução dos valores.
Estamos na era do consumo de massa e da economia global, o que causa um impacto
social e altera nossa maneira de ver o mundo, certo?
Sim. O verdadeiro motor da desconstrução dos valores tradicionais foi o
capitalismo moderno. Marx já dizia que o capitalismo era a revolução
permanente. Por quê? Porque a competição leva à lógica da inovação permanente.
Uma empresa que não inova o tempo todo está fadada a morrer. Mas há mais do que
isso. Os que desconstruíram os valores tradicionais no século 20 eram com
frequência de esquerda. A verdade do século é que esta grande desconstrução
serviu aos interesses do capitalismo.
Fale mais sobre isso.
Foi necessário que os valores e as autoridades tradicionais fossem
desconstruídas pelos boêmios, jovens de cabelos longos, libertários, para que o
capitalismo, ele também moderno e fadado à inovação pela inovação, pudesse
fazer entrar nossos filhos na era do grande consumo de massa sem o qual seu
futuro globalizado não teria sido possível. Eis uma verdade que vai crescer no
século que está aí. Se nossos filhos tivessem os mesmos valores que nossos
avós, eles não comprariam um telefone celular por ano, ou MP3. Do contrário, se
nossos antepassados pudessem ver um grande centro comercial, achariam
provavelmente que estes novos templos edificados ao deus do consumo escoam
besteiras. Talvez pensassem que estas bugigangas que transbordam das vitrines
nos distanciam dos verdadeiros valores. Logo, foi necessário que as visões
tradicionais do mundo fossem desconstruídas para que pudéssemos nos consagrar
ao consumo sem complexos, ao menos no limite de nosso poder de compra.
Sua ideia de reencantamento é um paradoxo à de Max Weber, que falava no início
do século 20 do desencantamento do mundo. Minha questão é: o reencantamento é
só positivo, ou também tem sua “parte do diabo”?
Tem razão, há uma parte do diabo. Quando falo da revolução do casamento
escolhido, não quero dizer que entramos no mundo ideal. Antes de mais nada,
porque o reverso da medalha do amor, é o ódio. Não há rosas sem espinhos, nem
amor sem ódio. Além disso, o amor dos seus, dos próximos, pode levar a um
egoísmo louco. O amor que dá sentido a nossas vidas não é mais o amor pela
nação, revolução. A questão que as gerações futuras vão definir, como os ecologistas
já compreenderam, é: que mundo vamos deixar a nossos filhos? Essa nova questão
política não diz respeito só à ecologia, mas à dívida pública, ao futuro da
proteção social na época da globalização ou à regulação financeira.
Quando falamos em um mundo no qual o casamento de amor está no centro de uma
revolução, como devemos ver as civilizações em que ele ainda é determinado por
interesses?
Sem defender o eurocentrismo, é preciso reconhecer que nosso velho continente
inventou algo único: a cultura da autonomia dos indivíduos, de sair dessa
“menoridade” infantil – como dizia Kant sobre o Iluminismo – mantida por todas
as civilizações religiosas, teocracias e regimes autoritários. Este movimento
caminha em direção à autonomia, como aconteceu primeiro com a arte, desde o
século 17, quando deixou de ser exclusivamente religiosa, depois se infiltrou
em toda a civilização europeia, da filosofia, racionalista, à política, laica e
democrática, passando pela ciência, hostil aos dogmatismos clericais, e pela vida
privada, quando o casamento decidido pelo amor substitui o casamento racional
imposto pelos pais. Este é o gênio da Europa que acabaria por abolir a
escravidão e a colonização, por se desfazer dos totalitarismos, por se desfazer
dos totalitarismos. Nada, nesta valorização da civilização europeia, implica
menor racismo, menor tendência neocolonial. Outras civilizações são igualmente
grandiosas, mas a europeia inventou a autonomia política, como a democracia,
assim como a autonomia privada, como o casamento por amor e a família
escolhida.
O senhor diz que o sagrado reencarna na cultura ocidental. Mas e as
revoluções no mundo árabe, marcadas por princípios modernos, como a liberdade e
a democracia? Devemos esperar uma nova onda de revoluções? A dinâmica do Ocidente
é válida para todo o mundo?
Sim. As revoluções árabes, embora corram o risco de serem apropriadas pelo
islamismo radical, são apesar de tudo uma novidade magnífica. Observe como o
mundo evoluiu nos últimos 50 anos. Quando eu era criança, a Europa estava
tomada por ditaduras. Franco ainda era vivo e a Grécia sofria o regime fascista
dos coronéis! A Rússia e os países do leste viviam na pior tirania, e a América
Latina estava povoada de ditaduras. Tudo mudou para melhor. O paradoxo é: vamos
viver um declínio econômico e social na Europa, mas ao mesmo tempo uma vitória
dos valores da democracia europeia. Estou certo que um “segundo humanismo” vai
se seguir ao primeiro.
Fonte: ESP