quarta-feira, 3 de abril de 2013

A renúncia de Bento XVI e a eleição de Francisco. Pergunta: quem é o Papa?



"O papado não pode ser transformado em uma monarquia constitucional em que o rei reina, mas não governa. Tal mudança de governo não feriria apenas sua forma histórica, mas a própria essência divina do Papado."


Por Roberto de Mattei 



Foglio Quotidiano, 28-3-2013 | Tomado em: Fratres in Unum.com - Tradução: Hélio Viana*


A pergunta “quem é o Papa?” surge espontaneamente toda vez que um novo Pontífice é eleito, sobretudo quando seu nome e sua história pessoal são desconhecidos do grande público. Tal não foi o caso do cardeal Joseph Ratzinger, romano de adoção, após tantos anos passados como prefeito da Congregação para a Fé; mas foi o caso de Karol Wojtyla, vindo de Cracóvia, e o é hoje o de Jorge Mario Bergoglio, proveniente de uma diocese ainda mais distante, nos confins do mundo, como ele disse no dia de sua eleição.



É compreensível que nos primeiros dias e semanas após a eleição procuremos sondar o passado próximo ou remoto do novo Pontífice, conhecer suas idéias, tendências e hábitos, para inferir, a partir de suas palavras e ações do passado, o programa do novo pontificado. O volume El Jesuita. Conversaciones con el cardenal Jorge Bergoglio s.j. (Vergara, Buenos Aires 2010, por Sergio Rubin e Francesca Ambrogetti) já delineia o rosto de um papabile e merece ser conhecido. Menos conhecida é a reação indignada que ao referido volume dedica um estudioso argentino de orientação tradicional, Antonio Caponnetto (La Iglesia traicionada, Editorial Apóstol Santiago, Buenos Aires, 2010). Tampouco se pode entender quem seja o novo Pontífice sem conhecer o julgamento que dele faz o padre Juan Carlos Scannone, um jesuíta discípulo de Karl Rahner que o teve como aluno e que inscreve o arcebispo de Buenos Aires na “escola argentina” da teologia da libertação (La Croix, 18 de março de 2013).



A “opção preferencial pelos pobres” do cardeal Bergoglio está enraizada em particular no ensinamento de Lucio Gera e Rafael Tello, expoentes de uma “teologia do povo” caracterizada pela substituição da ideologia da revolução armada pela praxis da pobreza. Analisando em La Nación de 21 de março o “Método Bergoglio de governar”, Carlos Pagni explica a razão teológica pela qual a “periferia” ocupa o lugar central na paisagem ideológica do arcebispo Bergoglio. O pobre para ele não é uma realidade sociológica para ajudar, mas um sujeito teológico do qual aprender: “Esta atitude pedagógica tem uma raiz religiosa: a relação do povo com Deus seria mais genuína porque carece de contaminações materiais”. Também Maurizio Crippa, no Foglio de 23 de março (“A pobreza é um sinal teológico, não sociologia”) enfatiza este aspecto, recordando as origens remotas dessa atitude: “A aposta é sempre transformar a Igreja na pessoa dos pobres em marcha, melhor ainda se autoconvocados: dos Pobres de Lyon, mais tarde chamados valdenses, a todas as correntes ortodoxas ou heréticas que atravessaram a Idade Média, como os Humilhados e Frei Dolcino de Novara, com desvios que chegaram até Tolstoi; e assim em diante, num percurso de privação e regeneração que retorna idêntico, desde as ‘Cinco chagas da Santa Igreja’ de Antonio Rosmini – a quinta é precisamente ‘a escravidão aos bens eclesiásticos’ – até as teologias conciliares da Igreja pobre”.



Trata-se de temas que seria útil aprofundar. Mas, no fundo, não é esse o ponto. A vida de um homem, mesmo de um Papa, não se mede pelos gestos do passado; ela muda a cada dia e pode a cada dia ser redefinida por mudanças, maturações e correções de rota novas e inesperadas.
Mais do que despertar tais interrogações a que só o futuro poderá responder, cada mudança de pontificado deveria proporcionar ocasião para se refletir sobre o que o novo eleito representa; refletir sobre o Papado como instituição mais do que sobre o Papa como pessoa individual. E isso especialmente após um período no qual, entre 11 de fevereiro e 13 de março de 2013, a própria constituição do Papado parece ter sido profundamente ferida.



O primeiro golpe dessa flagelação foi a renúncia de Bento XVI ao pontificado, um evento canonicamente legítimo, mas de impacto histórico devastador. “Um Papa que renuncia – observou Massimo Franco – já é um evento memorável na história moderna. Mas um Pontífice que o faz na plena posse de suas faculdades mentais, dando como razão simplesmente a fragilidade proveniente da idade, quebra uma tradição plurissecular” (A crise do império vaticano, Mondadori, Milão 2013, p. 9).



Um segundo golpe à instituição foi a escolha por Bento XVI de se autodefinir como “Papa emérito”, conservando o nome e a veste pontifícia e continuando a viver no Vaticano. Canonistas renomados como Carlo Fantappié destacaram a novidade do gesto, sublinhando como “a renúncia do Papa Bento XVI colocou graves problemas a respeito da constituição da Igreja, da natureza da primazia do Papa, bem como quanto ao âmbito e a extensão dos seus poderes após a cessação do ofício” (“Papado, sede vacante e ‘Papa emérito’. Equívocos a serem evitados”, em chiesa.espresso.repubblica.it/articolo/1350457).


A coexistência de um Papa que se apresenta como Bispo de Roma e de um bispo (porque tal é hoje Joseph Ratzinger) que se autodefine como Papa oferece a imagem de uma Igreja “bicéfala” e evoca inevitavelmente as épocas dos grandes cismas. Não se compreende a este propósito a ênfase midiática que as autoridades vaticanas quiseram dar ao ‘encontro dos dois papas’, no dia 23 de março, em Castel Gandolfo. As imagens que deram volta ao mundo e que o próprio Osservatore Romano publicou na primeira página no dia seguinte é a de dois homens que a linguagem dos símbolos coloca em pé de absoluta paridade, impedindo discernir de forma imediata quem fosse o autêntico Papa. O evento também contrasta com a garantia dada pela assessoria de imprensa da Santa Sé de que depois de 28 de fevereiro Bento XVI renunciaria ao cenário midiático, retirando-se no silêncio e na oração. Não teria sido mais prudente se o encontro tivesse se dado longe dos holofotes? Ou existe por acaso uma estratégia voluntária atrás dessa escolha midiática? Qual?



Estudioso da História do Cristianismo, Roberto Rusconi descreveu por sua vez o que vai resultar da encíclica inacabada de Joseph Ratzinger sobre a fé, em complemento das já promulgadas sobre a caridade e esperança. “A encíclica não terminada – observa Rusconi – poderia ser publicada depois como mais um texto de Joseph Ratzinger, quem durante seu pontificado sustentou repetidamente que seus últimos livros não deveriam ser considerados de nenhum modo como uma expressão direta de seu magistério pontifício” (Roberto Rusconi, A grande recusa. Por que um papa renuncia, Morcelliana, Brescia 2012, pp. 143-144). Se isso acontecer, o resultado vai ser o de minar pela base não só a autoridade dos documentos magisteriais promulgados anteriormente por Bento XVI, mas também daqueles futuramente exarados pelo seu sucessor, porque se dissolveria a distinção entre aquilo que é ato magisterial e aquilo que não é ato magisterial, diluindo o conceito de infalibilidade, do qual com freqüência se fala despropositadamente.


Há defensores declarados de um redimensionamento do Papado, os quais geralmente invocam um texto de João Paulo II, na encíclica Ut unum sint, de 25 de maio de 1995, na qual o Papa Woytila se diz disposto a “encontrar uma forma de exercício do primado que, sem renunciar de modo algum ao que é essencial da sua missão, se abra a uma situação nova” (nº 95). Daí a distinção, feita por Giuseppe Alberigo e pela escola de Bolonha, entre a essência imutável do Papado e “as formas de exercício” nas quais ele se expressa na história (“Formas históricas de governo da Igreja”, em “O Reino”, 1º de dezembro de 2001, pp. 719-723). O inimigo de fundo é a idéia da “soberania pontifícia”, supostamente nascida na Idade Média, que estaria na origem do desvio do Papado de seu espírito original. A partir de meados do século XV, segundo outro historiador de Bolonha, Paolo Prodi, ter-se-ia iniciado uma metamorfose do Papado que modificou a instituição como um todo, levando não só a uma mudança das características institucionais dos Estados Pontifícios, convertidos em um principado temporal, mas também a uma reformulação do conceito de soberania eclesiástica inspirada na soberania política. Vitorioso sobre o conciliarismo, o Papado teria sido, no entanto, derrotado pelo Estado moderno, pois enquanto a Igreja se secularizava, o Estado se sacralizou (O Sumo Pontífice, Il Mulino, Bologna, 1983, p. 306). Porém, para os mesmos autores, a partir da Revolução Francesa, a Igreja, numa dialética frutífera com o mundo moderno, teria começado a se libertar dos grilhões do passado. Apesar de algumas fases regressivas, representadas principalmente pelos pontificados de Pio IX, Pio X e Pio XII, o Concílio Vaticano II marcaria finalmente, de acordo com Alberigo e seus discípulos, o momento da “virada”, descartando a dimensão jurídico-institucional da Igreja e abraçando uma nova visão desta, fundada nos conceitos de “comunhão” e de “povo de Deus”.



Essas teses foram novamente propostas, no plano teológico, em um recente livro dedicado ao ministério do Papa pelo decano dos eclesiólogos italianos Severino Dianich (Por uma teologia do Papado, Cinisello Balsamo, San Paolo, 2010). O fulcro da sua tese é a passagem de uma visão jurídica da Igreja, com base no critério de competência, a uma concepção sacramental, baseada na idéia de comunhão. O cerne do problema remonta à discussão havida no Vaticano II sobre a interpretação do nº. 22 da Lumen Gentium e da Nota prévia inserida por Paulo VI nesse documento, durante o que os progressistas apelidaram de “semana negra” do Concílio. As relações entre o Papa e os bispos, depois do Vaticano II, de acordo com Dianich, não podem mais ser baseadas na delegação e na subordinação. O Papa não governa “do alto” a Igreja, mas a guia na ordem da comunhão. Seu poder de jurisdição procederia, de fato, do sacramento da Ordem. E, sob esse aspecto sacramental, o Papa não é superior aos bispos. Ele, antes de ser Pastor da Igreja universal, é o Bispo de Roma, e a primazia que ele exerce sobre a Igreja universal não é de governo, mas de amor, porque, ontologicamente, como bispo, o Papa está em pé de igualdade com os outros bispos. Por isso Dianich quereria atribuir maior poder ao colégio episcopal, atribuindo a este a possibilidade de legislar com autoridade. O Papa deveria exercer de maneira nova o seu Primado, associando ao seu poder órgãos deliberativos e consultivos, tais as conferências episcopais, os sínodos ou até órgãos permanentes que o assistiriam no governo da Igreja. Tratar-se-ia de um Primado de “honra” ou de “amor”, mas não de governo e de jurisdição sobre a Igreja.



Porém, em primeiro lugar, essas teses são historicamente falsas. A história do Papado não é de fato a história de formas históricas diferentes e conflitantes entre si, mas a evolução homogênea do princípio de suprema jurisdição presente nas palavras que Jesus Cristo disse a São Pedro, e somente a ele: “Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja” (Mt 16, 14-18). Quando São Clemente (ano 92-98 ou 100), terceiro sucessor de Pedro como Bispo de Roma, no início do império de Nerva (por volta de 97), interveio para restabelecer a unidade na igreja de Corinto, abalada por uma violenta discórdia, ele evocou o princípio da sucessão estabelecida por Cristo e pelos Apóstolos, exigindo obediência e até mesmo ameaçando com sanções se as suas disposições não fossem seguidas (Carta Propter subitas aos Coríntios, in Denz-H, nn. 101-102). O tom autoritário da carta e a veneração com que foi recebida são uma prova clara da Primazia do Bispo de Roma no final do primeiro século.



Cerca de dez anos mais tarde, Santo Inácio, Bispo de Antioquia, na viagem de Antioquia para Roma, onde foi martirizado, escreveu uma carta aos romanos na qual ele reconhece à Igreja de Roma uma posição de preeminência sobre toda a Igreja universal, dizendo: “Vós haveis instruído os outros e eu desejo que permaneçam firmes aquelas coisas que prescrevestes com o vosso ensinamento” (Epístola aos Romanos, 3, 1). Sua afirmação, tantas vezes mal interpretada, de que a Igreja de Roma “preside ao ágape”, deve ser entendida em seu sentido próprio. O “ágape” não é uma mera “caridade” genérica, mas, para Inácio, é a própria Igreja universal (que ele é o primeiro a chamar de “católica”), unida pelo vínculo do amor.
Ao longo dos séculos, o Primado pontifício, concebido como princípio ativo e central do governo da Igreja universal, permaneceu como a nota característica do Papado, assim como a constituição monárquica e hierárquica continuou a caracterizar a Igreja. Nas diferentes épocas que a Igreja percorreu, cada vez que o Papado esteve ausente ou foi fraco ou ineficaz, produziram-se cismas, heresias, agitações religiosas e sociais. Pelo contrário, as grandes reformas e a revitalização da Igreja se deram com papas que exerceram o governo usando a plenitude de seus poderes, de São Gregório VII a São Pio X.



O múnus específico do Sumo Pontífice não consiste em seu poder de Ordem, que ele tem em comum com todos os outros bispos do mundo, mas em seu poder de jurisdição, que o distingue de qualquer outro bispo, porque só no caso do Papa este poder é pleno e absoluto, e fonte do poder dos outros bispos. O poder de Magistério faz parte do Primado de jurisdição, e a infalibilidade constitui a expressão mais alta e perfeita do Primado pontifício, uma soberania ainda mais necessária do que aquela das sociedades temporais.


O poder de jurisdição é eminentemente um poder do governo. O Papa é tal porque governa a Igreja exercendo uma jurisdição doutrinária e disciplinar que não pode delegar senão parcialmente: não existe de fato uma diferença entre o poder jurídico de governo e o seu exercício, porque é inimaginável um governo cuja característica seja a de não governar. A essência do Papado tem neste sentido características imutáveis​​: é um governo absoluto que não pode ser delegado a outros no todo, mas apenas em parte. O Papado é uma monarquia absoluta na qual o Sumo Pontífice reina e governa, e que não pode ser transformada em uma monarquia constitucional em que o rei reina, mas não governa. Uma tal mudança de governo não feriria apenas sua forma histórica, mas a própria essência divina do Papado.


Não se trata de um debate abstrato, mas de um problema teológico com efeitos históricos concretos. Nossa época de mundialização dos mercados e de revolução informática assistiu ao colapso dos estados nacionais, substituídos por novos poderes, financeiros e midiáticos. Mas o caos, a fragmentação e o conflito dos novos cenários derivam precisamente desta perda de soberania, da qual é eloquente exemplo a União Europeia nascida do Tratado de Maastricht, que não se apresenta como um “super-Estado” europeu, mas como um não-estado, caracterizado pela multiplicação dos centros de decisão e pela confusão de poderes.


A autoridade e o poder dos estados nacionais e das democracias representativas se desintegram e o vazio é preenchido por lobbies ideológicos e financeiros, visíveis ou ocultos. Deverá a Igreja Católica remodelar-se com base num processo similar de pulverização, se autodemolindo? Face ao relativismo, deverá a Igreja deixar de lado a infalibilidade, como pediu o pastor valdense Paulo Ricca (​​Il Foglio, 19 de março de 2013), para se apresentar ao mundo fraca e demissionária, ou seja, não mais servindo-se desse carisma, que só ela possui, para contrapor sua soberania religiosa e moral aos escombros da modernidade? A alternativa é dramática, mas inevitável.



O certo é que a pergunta “quem é hoje o Papa?”, antes que à mídia deve ser dirigida à Teologia, à História e ao Direito Canônico da Igreja. Eles nos respondem que, por trás das pessoas de Bento XVI e de Francisco, há um trono papal instituído pelo próprio Cristo. O Papa São Leão Magno, que pode ser considerado o teólogo mais completo do Papado no primeiro milênio, explicou com clareza o significado da sucessão petrina, resumindo-a na fórmula: “Indigno herdeiro de São Pedro”. O Papa se tornava herdeiro de São Pedro no que dizia respeito à sua natureza jurídica e aos seus poderes objetivos, mas não em relação à sua situação pessoal e aos seus méritos subjetivos. A distinção entre o cargo e o detentor do cargo, entre a pessoa pública do Papa e a sua pessoa privada, é fundamental na história do Papado.



O Papa é o Vigário de Cristo que em seu nome e pelo seu mandato governa a Igreja. Mais do que uma pessoa privada é uma pessoa pública; mais do que um homem é uma instituição; mais do que o Papa é o Papado, no qual se resume e concentra a Igreja, que é o Corpo Místico de Cristo.



* A quem agradecemos a gentileza de nos fornecer a sua tradução.

Nota do blogue: Grifos e destaques por Core Catholica.

Retrato da juventude atual: O Desaparecimento dos adultos e a Balada do Nada



O Desaparecimento dos adultos


Giovanni Cucci S.I.
[i]






























Uma sociedade de eternos adolescentes?

Continua-se a estar sempre mais atingido pelo nivelamento das gerações que se vê em rapazes e moças, jovens e adultos unidos por uma mesma dinâmica: no modo de vestir, falar, se comportar, mas, sobretudo, nas relações e na afetividade revelam-se muitas vezes as mesmas dificuldades, até o ponto em que se torna difícil entender quem desses é realmente o adulto. Ao mesmo tempo, preocupa a sempre maior difundida fuga da responsabilidade, que leva a procrastinar indefinidamente as escolhas de vida, iludindo-se de ter sempre intactos, diante de si, todas as possibilidades.

Uma pesquisa da Istat[ii], realizada em 2008 (e, por conseguinte, anterior à grave crise que infelizmente levou ao desemprego milhares de jovens e de adultos), revelava que mais de 70% das pessoas com idade entre 19 e 39 anos vivem ainda com os pais. O motivo é também, mas não somente, econômico, já que nessa faixa há pessoas com trabalho estável e uma renda que permitiria viver de maneira independente.

As mesmas pesquisas mostram, além disso, que na Itália, mas também em outros países da Europa, há um aumento preocupante de jovens/adultos que pararam numa espécie de “limbo”, sem escolhas e sem perspectivas. Essa situação abarca uma faixa etária sempre maior, ao ponto de ser agora classificada como categoria sociológica, “a geração nem-nem”[iii]. Mas, principalmente, tal condição, não é vista como problemática pela maioria das pessoas: “Há 270 mil jovens entre 15 e 19 anos que não estudam e não trabalham (9%): a maior parte porque não encontra trabalho; 50 mil porque fizeram de sua inatividade uma escolha; há ainda 11 mil que não querem saber de trabalhar ou estudar (“não me interessa”, “não preciso”, dizem). A mesma tendência ocorre nos dados relativos aos jovens entre 25 e 35 anos: um milhão e noventa mil não estudam e não trabalham; ou seja, quase um quarto deles (25%). Um milhão e duzentos mil desses gravitam no desemprego (mas entre estes últimos há quem diga que não procura bem porque está “desanimado” ou porque “de qualquer modo, o emprego não existe mesmo”). Setecentos mil são, ao contrário, os “inativos convictos”: não procuram trabalho e não estão dispostos a procurá-lo [...]. Uma pesquisa espanhola recente, assinada pela sociedade Metroscopia, revela que 54% dos jovens da idade dos 18 aos 35 anos declara “não haver nenhum projeto sobre o qual desenvolver o próprio interesse ou os próprios sonhos”[iv].

A essa situação de impasse e confusão acompanha uma igualmente grave crise de autoridade e de normatividade que, como se verá, constituem um dever educativo irrenunciável. Tal dever é rejeitado por muitos motivos: porque esses que deveriam fazer valer a norma, os adultos, não possuem a força, têm medo de parecerem impopulares ou, muitas vezes, porque muitos não acreditam mais em ditas normas, vistas somente como uma fonte de conflito e dificuldade.

Mas o aspecto talvez mais triste dessa carência seja que a norma que o adulto deveria estabelecer, vem a faltar porque, às vezes, os mesmos educadores e pais se encontram perdidos em problemas afetivos, relacionais, até mesmo de dependência. E daí a crise profunda do adulto, com o risco de seu desaparecimento: “Se um adulto é alguém que tenta assumir as consequências de seus atos e de suas palavras [...], não podemos deixar de constatar um forte declínio da sua presença na nossa sociedade [...]. Os adultos parecem estar perdidos no mesmo mar onde se perderam os próprios filhos, sem qualquer distinção de geração”[v].

Uma motivação possível, na origem dessa amálgama indiferenciada, pode ser detectada no prolongamento da meia idade, própria das últimas décadas e agravada devido à crise econômica atual, a qual não encoraja a levar em consideração os custos e os esforços adicionais para comprometer-se numa situação futura incerta. Além disso, a nova cultura tecnológica contribui para confundir os limites entre a realidade e a fantasia, que é a característica típica da criança. Já o havia compreendido com lucidez Johan Huizinga no longínquo 1935: “[O homem moderno] pode viajar de avião, falar com pessoas do outro hemisfério, comprar guloseimas inserindo poucas moedas numa máquina automática [...]. Aperta um botão, e a vida cai aos seus pés. Pode tal vida torná-lo emancipado? Ao contrário. A vida para ele tornou-se um brinquedo. É de se espantar que ele se comporte como uma criança?”[vi].


A dificuldade de crescer na sociedade tecnológica

A cultura dita tecnológica se impõe hoje, não só pela difusão de instrumentos sempre mais sofisticados, principalmente pela possibilidade de planificar a existência de uma maneira impensável às gerações precedentes[vii]. E isso, especialmente, em nível de natalidade. Em tal campo, apareceram termos usados sempre mais frequentemente, até surgir o slogan que resume uma concepção de vida: “procriação responsável”, filhos “queridos e desejados”, ou mesmo “programáveis”.

Parece assim ter-se realizado o sonho, desejado por Freud no fim do século XIX, de poder separar a concepção da pulsão erótica: tal separação não favoreceu, todavia, como esperava o fundador da psicanálise, o “triunfo da humanidade”[viii]. Mais precisamente essa levou a um empobrecimento psicológico e afetivo, nunca antes conhecido, uma verdadeira “revolução antropológica”, para retomar o subtítulo de um livro de Marcel Gauchet.

Desde o seu nascimento, o ser humano tem a ânsia de que, no fundo, poderia não ter sido desejada e que deve, de qualquer modo, “merecer” ter vindo ao mundo, correspondendo às fortes expectativas dos seus pais. Como observa Gauchet: “Disso pode derivar a invencível fé na própria sorte, ou, ao contrário, a sensação de irremediável precariedade da própria existência. Em relação àquele desejo que o subtraiu ao destino comum, manterá muitas vezes uma irredutível aflição [...]. Um filho é cada vez mais desejado quanto menos é filho da natureza; mais é fruto de um artifício, qualquer que este seja, menos é aquilo que deve ser: o filho de seus pais”[ix].

Outro aspecto paradoxal dessa desenvolvida potencialidade planificadora é que a acurada seleção do nascituro corresponde sempre menos àquela atenção afetiva e educativa indispensáveis para educá-lo, tornando-o um adulto responsável. O filho se encontra, ao contrário, sufocado pela atenção dos pais que, depois de o terem programado por tanto tempo, veem nele a possibilidade de realizarem suas expectativas, muitas vezes até de preencherem seus vazios e suas incompetências.

A criança corre o risco, assim, de ser bem cedo tratada como um mini adulto, sobretudo se está sendo criada por um genitor solteiro: nesse caso, forte será a tendência a depositar no filho esperanças e expectativas que na verdade deveriam estar voltadas ao próprio companheiro, dando origem àqueles perversos díades nas quais o filho ou a filha são chamados a tornarem-se respectivamente “vice-marido” ou “vice-esposa” do próprio genitor, impedindo-se de viver a etapa infantil e a própria filiação, duas condições essenciais para a maturidade psíquica, cognitiva e afetiva[x].

A “síndrome do filho único”, vista em outras ocasiões[xi], parece confirmar essa inconsciente agitação, o desconforto de lidar com a polaridade desejo/rejeição dos pais. Ele se torna assim esmagado pelas expectativas dos pais, da mesma forma que um brinquedo é chamado a compensar as carências dos adultos.

Tudo isso contribui à incapacidade de um filho se tornar adulto; incapaz, sobretudo, de saber o que verdadeiramente quer da própria vida. Uma vez crescido, aquele menino ou aquela menina procurarão de fato aquela infância perdida que jamais tiveram, recusando-se a crescer.


A Síndrome de Peter Pan

A rejeição ao crescimento é um fenômeno em expansão, também desde o ponto de vista geracional, a tal ponto de ocupar a vida inteira do homem. Essa situação de “bloqueio interior”, de impossibilidade de se passar à fase adulta da vida, foi recentemente ratificada como categoria psicológica, chamada de Síndrome de Peter Pan através da obra do psicólogo junguiano Dan Kiley. Ele se inspira no célebre romance de James Barrie Peter and Wendy, publicado em 1911, embora tenha conseguido maior fama o título escolhido para a representação teatral, de 1904 (Peter Pan: o menino que nunca quis crescer).

A escolha do personagem, protagonista do romance, já é por si significativa. Peter era também o nome do irmão de James que morreu aos catorze anos num acidente de patinagem; enquanto Pan, na mitologia grega, era filho de Ermes e da filha de Driope, que o rejeitou, abandonando-o ao seu destino[xii]. Como na mitologia e no romance de Barrie, também na Síndrome de Peter Pan à base da condição instável e errante desse personagem é principalmente a ausência de relações afetivas importantes, em particular com os pais, vistos como frios e distantes, ou incapazes de suscitar respeito[xiii].

Desse modo, quem sofre dessa síndrome busca a própria infância perdida, comportando-se como se o tempo tivesse parado, assumindo por toda a vida a instabilidade psíquica e afetiva própria da adolescência, prisioneiro “no abismo entre o homem que não se quer tornar e o garoto que não se pode continuar a ser”[xiv]. E se essa pessoa, no meio tempo, também se casa, acaba por entrar em concorrência com os próprios filhos, imitando-lhes os comportamentos e os modos de pensar. Como confessava uma jovem desconsolada: “meu pai não faz outra coisa a não ser correr atrás das minhas amigas e depois quer se confidenciar comigo”[xv].
  
Por sua vez, os filhos, colocados no mesmo nível dos seus pais, tendem a comportarem-se como adultos: desse modo, nenhum dos dois vive as responsabilidades e peculiaridades da própria etapa de vida; como num jogo perverso, esses vêm trocados, invertendo perigosamente o significado da derrota edípica: “Se olhamos atentamente ao conteúdo da TV, podemos encontrar uma documentação bastante precisa não somente do nascimento da ‘criança adulta’, mas também do adulto ‘feito criança’ [...] Salvo raras exceções, os adultos na televisão não tomam seriamente o próprio trabalho, não educam seus filhos, não participam na vida política, não praticam nenhuma religião, não representam nenhuma tradição, não têm capacidade de pensar o próprio futuro ou de formular seriamente projetos de vida, não são capazes de fazer longos discursos e não são nunca capazes de evitar comportamentos dignos de uma criança de oito anos”[xvi].

Na atual sociedade “líquida” a fase adulta corre o risco assim de reduzir-se a uma expressão de meros dados sem mais responsabilidades específicas que a caracterizam e, sobretudo, a diferenciam das fases precedentes da vida, conferindo-lhe uma identidade: ser adultos era sinônimo de ser maduros, não certamente como as crianças, mas capazes de assumir responsabilidades. Essas características aparecem sempre mais raramente, ao ponto em que “não é excessivo falar de uma liquidação da idade adulta. Estamos assistindo a uma desagregação daquilo que significava maturidade”[xvii].


O desaparecimento do pai
  
A contínua popularidade e atualidade de Peter Pan não falam somente de uma dificuldade de crescimento. Esse personagem é também uma forma de protesto em relação à fuga dos educadores, daqueles que podem fazer bela, ainda que difícil, a missão de tornar-se adulto, deixando-o só: “Se Peter Pan é o símbolo de um fenômeno que tem crescido sempre mais nos últimos cem anos, ou seja, a obstinada vontade de permanecer criança, Peter Pan nos diz ainda algo mais inquietante: perdemos os nossos pais como modelos, os pontos de referência sólidos, fomos abandonados a nós mesmos”[xviii].

É significativo que autores das mais diversas escolas de proveniência individuam particularmente na ausência da figura paterna, acentuada dramaticamente nas últimas décadas, uma das principais razões para o vazio de sentido e de identidade que parece ser comum a jovens e a adultos. Um autor que não pode certamente ser etiquetado de tradicionalismo nostálgico observa a esse propósito: “O vazio estrutural da moderna sociedade ocidental provem da ausência do pai. Em certo sentido o enfraquecimento ou inclusive o desaparecimento de todos os outros papéis de parentesco derivam daquela lacuna que está no vértice da família”[xix]. Nessa falta, se constata, de fato, a incapacidade de uma geração de transmitir valores e tradições capazes de ajudar o futuro adulto a enfrentar as dificuldades da vida tornando, por sua vez, educadores de outros.

O desaparecimento dos vínculos familiares foi infelizmente visto como o sinal profético da vinda de uma nova sociedade; nos anos setenta do século passado era desejada a morte do matrimônio e da família, vista como o símbolo da opressão que penaliza a liberdade do indivíduo, impedindo a auto realização[xx]. Os resultados se revelaram, porém, muito diversos, precursores de problemas bem mais graves, que correm o risco de levar ao desaparecimento da sociedade ocidental, como acentua sempre Scalfari: “na maior parte dos casos o indivíduo, abandonado na sua solidão, não encontrou outro remédio melhor do que o de confundir-se no bando, isto é, de se tornar um sujeito anônimo e indiferenciado, sustentado somente por motivações emocionais”[xxi].

Não é mais a comunidade ou o vinculo a um determinado estrato social, mas sim “o bando” a caracterizar a sociedade sem adultos, uma sociedade que abandonou o seu dever educativo.


Os Procis, filhos de um pai ausente


Essa linha de leitura vem confirmada também na mitologia, na qual está narrada a história do homem e da mulher de todos os tempos. A categoria de “bando” lembra os Procis, magnificamente descritos por Homero, aquela massa numerosa (108 segundo a Odisseia XVI, 247 s.), violenta e parasita, dominada por uma agressividade desenfreada.

Exatamente como Peter Pan, esses não são mais crianças e nem mesmo homens; não fizeram nenhuma escolha em suas vidas; vivem cada dia, dos expedientes, gozando do instante presente, sem nenhum projeto pelo qual valha a pena empenhar-se. A atualidade psicológica e social desses personagens é digna de atenção: “Os Procis [...] são a massa supérflua que logo preenche todo vazio de poder na sociedade. Mas na psiché são o adversário interno, a desagregação da responsabilidade [...]. O que Ulisses odeia decididamente neles não é a arrogância – que não lhes é uma coisa estranha – mas o viver cada dia, sem nenhum objetivo: o ato supérfluo (anenysto epi ergo) [...]. Aquilo que esses representam não pode ser readmitido na civilização, sob a pena da sua desagregação: a hilaridade, na qual o imaturo esconde o seu medo; o dia para chegar a noite; a obstinação a conquistar a mulher e a casa, a rainha e o palácio, sem a disponibilidade para organizar o sistema familiar e econômico. Mais uma vez, é o quadro do jovem desadaptado”[xxii].

O desenvolvimento narrativo da Odisseia faz agudamente notar como esses aparecem no dia seguinte ao desaparecimento do pai. A partida de Ulisses conduz à proliferação daqueles: os Procis podem ser considerados como a prefiguração ante litteram de Peter Pan. A comparação de ambos, de fato, não é forçada: é a mesma mitologia grega a colocar esses personagens em estreita relação entre eles. Pan seria, pois, o fruto da múltipla união dos Procis com Penélope durante a ausência de Ulisses[xxiii].

Colocados de frente à “prova do arco” (que, como veremos, é um símbolo da paternidade) se mostram incapazes de enfrentá-la (tendendo o arco para lançar a flecha), isso é, de assumir uma responsabilidade generativa que pode fazer deles homens. Têm idades diferentes, porém se apresentam com uma única classe, amorfa, sem identidade.


A tarefa de se tornar adulto

Mas o que significa ser adulto? Significa, antes de tudo, aceitar não ser mais criança, renunciando aos valores e comportamentos de idades precedentes para assumir a novos: a renúncia é a condição do crescimento, como bem tinha intuído Max Scheler[xxiv].

Deixar uma fase: isto é o que o adulto atual não parece mais capaz de fazer, antes de tudo, a nível imaginativo, lamentando-se sempre da criança ou do adolescente que jamais foi. Trata-se, porém, de acolher o que Freud chamava de o princípio da realidade que passa por uma ferida, uma experiência de impotência e de mortalidade que, paradoxalmente, no momento no qual vem assumido, fortalece o ser humano.

Isto era o significado dos “ritos de passagem” ou de iniciação, que nas sociedades de cada época marcavam o ingresso do jovem na idade adulta, mediante cerimônias guiadas por adultos. Os ritos de iniciação resultam fundamentais porque têm como objeto a agressividade, o sofrimento e a morte, em outras palavras, o ser humano na sua verdade e fragilidade. O rito podia fazer isso, porque recordava a sacralidade da vida e a sua relação com Deus; isso era o significado do gesto de tirar com violência a criança dos braços da mãe (que até aquele momento era o ponto de referência peculiar) para elevá-la ao céu, um gesto com o qual ela recebe a confirmação da própria identidade: “O significado desse gesto é claro: se consagram os neófitos ao Deus celeste”[xxv]. Essa tarefa sempre foi peculiar do pai.

Quando não se cumprem os ritos de iniciação, esses não desaparecem, mas enlouquecem, dando origem às derivas do “bando”. As violências das baby gang, o bullying masculino e feminino, os estupros de grupo, os “embalos de sábado à noite”, os comportamentos de risco, o uso de drogas em grupo, a atração pelo macabro são ritos de iniciação enlouquecidos, pedidos degenerados de tomar contato com a dimensão da corporeidade, da relação, da agressividade, do perigo, da morte, mas sem que exista, no entanto, um adulto capaz de acompanhar-lhes.

O desaparecimento dos adultos se traduz também numa redefinição dos papéis familiares: não são mais os filhos que devem aprender dos pais e receber deles normas e ensinamentos, mas ao contrário, são os pais que se conformam aos critérios e aos comportamentos dos filhos, procurando desse modo conseguirem a aprovação deles.
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