DESTAQUE
À ceia
sempre havia convidados ilustres. Freqüentá-la era sinal de prestigio, ocasião
para comer bem e com fartura. Apesar dos inúmeros serviçais, o anfitrião
trinchava pessoalmente os assados, com a destreza protocolar. Numa ceia,
exibiu-se para um grupo formado por um cardeal, um príncipe, um marquês, um
conde e um barão, usando uma enorme faca e um garfo, ambos de ouro maciço.
É célebre
sua resposta ao rei Luis XVIII, que insistia em lhe dar recomendações na
partida para o Congresso de Viena. “Majestade, perdoe-me, mas necessito mais de
panelas do que instruções. Consiga-me um bom cozinheiro e bastante queijo brie
que eu me arranjo com o resto”.
Descendente
de antiga família nobre, ele dominava a arte de presidir a mesa. Além de
gourmand, animava a conversa. Conseguia ser ao mesmo tempo teatral e lacônico.
Entremeava as prosas com minutos de silêncio, provocando expectativa na plateia.
Foi um dos maiores conversadores de seu tempo.
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Talleyrand -
Gastronomia e política
J. A. Dias Lopes
O príncipe de
Talleyrand, gastrônomo traquejado, político e diplomata francês, serviu a
diferentes regimes e só se manteve fiel ao queijo brie
Nunca houve um vira-casaca tão assombroso quanto o
príncipe de Talleyrand-Périgord, político e diplomata francês. Serviu aos
diferentes regimes que governaram seu país entre 1789 e 1838, período
assinalado pela tomada da Bastilha, a ascensão e queda de Napoleão e a
restauração monárquica. Tirou proveito de todos, até mesmo financeiro, sem se
conservar leal a nenhum. Também poucas vezes se viu um gastrônomo tão pródigo.
O escritor Eugène Sue, seu contemporâneo, inspirou-se
em uma das predileções habituais de Talleyrand, como ficou conhecido, para
afirmar que em toda a vida ele só se manteve fiel ao queijo brie. Saboreava essa iguaria
diariamente, acompanhada de velhos tintos de Bourdeaux. Protagonista brilhante
do Congresso de Viena — a assembléia que reuniu os paises europeus após a queda
de Napoleão, entre os anos de 1814-15, a fim de restabelecer o equilíbrio
continental de poderes e definir novas fronteiras nacionais — colocou a
Inglaterra e a Áustria contra a Prússia e a Rússia. Ao mesmo tempo, fez com que
a França saísse da reunião com o território intacto e, sobretudo, reconhecida
como grande potência.
A tradição espalha que Talleyrand obteve do Congresso
de Viena a proclamação do brie como
“rei dos queijos”. No final de um dos banquetes que se sucederam, cada país
inscreveu um ou mais candidatos. Eram 52 queijos, a maioria à base de leite de
vaca. O príncipe de Metternich, representante da Áustria, renomado apóstolo da
reação contra o liberalismo, apresentou um queijo da Boêmia; o conde
Nesselrode, da Rússia, exibiu um em formato de salsicha; o duque de Wellington,
futuro presidente do Conselho de Ministros da Inglaterra, ofereceu o ceshire, cujo sabor especial deriva do
leite produzido por vacas que pastam nos capins ligeiramente salobros da
fronteira com o País de Gales. O vencedor foi o brie levado pelo príncipe de Talleyrand, feito por certo Baulny, da
região de Ile-de-France, perto de Paris, a mesma do Palácio de Versailles.
Coincidentemente, era o queijo que proporcionara um dos últimos prazeres
gustativos ao rei Luis XVI, antes de ser preso, conduzido à prisão e
guilhotinado pela Revolução Francesa.
Talleyrand era gastrônomo traquejado. Onde estivesse,
exigia cozinha e mesa impecáveis. Por 11 anos contou com os serviços de Antonin
Carême, considerado o melhor chef de
todos os tempos.
Talleyrand só fazia uma refeição por dia: a da noite.
Seu desjejum era frugal. Ao meio dia, ele tomava apenas chá. Ainda de manhã,
recebia o chef com as sugestões para
a ceia. Discutia com ele as receitas e os pontos de cozimento, questionava
molhos e acompanhamentos. O cardápio se compunha de diversas sopas, quatro entradas,
dois pratos de mar, quatro intermediários, dois assados e vários doces, além do
invariável queijo brie. À ceia sempre
havia convidados ilustres. Freqüentá-la era sinal de prestígio, ocasião para
comer bem e com fartura. Apesar dos inúmeros serviçais, o anfitrião trinchava
pessoalmente os assados, com a destreza protocolar. Numa ceia, exibiu-se para
um grupo formado por um cardeal, um príncipe, um marquês, um conde e um barão,
usando uma enorme faca e um garfo, ambos de ouro maciço.
Descendente de antiga família nobre, ele dominava a
arte de presidir a mesa. Além de gourmand,
animava a conversa. Conseguia ser ao mesmo tempo teatral e lacônico. Entremeava
as prosas com minutos de silêncio, provocando expectativa na platéia. Foi um
dos maiores conversadores de seu tempo. Por um defeito físico, não deixaram que
seguisse a carreira militar. Um acidente na infância o deixou coxo.
Mesmo não demonstrando vocação religiosa, a família o
lançou na carreira eclesiástica. Ajudado por um tio arcebispo, escalou rapidamente
a hierarquia da Igreja Católica e, apesar da vida devassa, foi nomeado
arcebispo de Autun, na Borgonha. Além de culto e fluente, era bom orador.
Pronunciou sermões empolgantes. Elegeu-se deputado à Assembléia Nacional e
apresentou projeto colocando os bens do clero sob o controle da nação.
O Papa o condenou durante a Revolução Francesa e ele
abandonou a Igreja, dedicando-se à diplomacia. Chegou a ocupar o Ministério do
Exterior da França. A certa altura de suas Memórias, publicadas em cinco volumes,
Talleyrand revela ter sido educado por preceptores. Jamais permaneceu uma
semana inteira com os pais. Isso o marcou profundamente. O talento verbal vinha
da mãe, com quem jamais se deu bem. Mesmo assim, procurava-a na adolescência,
para assimilar seu modo diferente de falar.
A mãe empregava a linguagem engenhosa das reuniões
elegantes do século 18, a mesma que o filho usou no salão de madame de Genlis,
impressionando a aristocracia parisiense.
Certa
vez, Napoleão perguntou a Talleyrand como havia se transformado em brilhante
conversador. Ele respondeu: “Bem, da mesma maneira que sua majestade escolhe o
campo de batalha para combater, só aceito falar quando tenho alguma coisa a
dizer. Nunca respondo perguntas inesperadas. Em geral, não me deixo questionar
por ninguém, exceto por vós. E, caso me indaguem alguma coisa e eu respondo, é
porque sugeri a pergunta”.
Não por acaso, Talleyrand foi um dos maiores
diplomatas do passado. A gastronomia funcionou como seu instrumento político.
Amigos e inimigos o descreveram como “uma pessoa irresistível à mesa”. É
célebre sua resposta ao rei Luis XVIII, que insistia em lhe dar recomendações
na partida para o Congresso de Viena. “Majestade, perdoe-me, mas necessito mais
de panelas do que instruções. Consiga-me um bom cozinheiro e bastante queijo brie que eu me arranjo com o resto”.
O queijo aclamado
O brie se
tornou conhecido mundialmente no Congresso de Viena, realizado no século 19,
quando Talleyrand conseguiu aclamá-lo “rei dos queijos”. Mas os franceses, seu criadores,
conhecem-no há muito mais tempo. Surgiu na pequena cidade de Melun, a 40
quilômetros de Paris, na região de Ile-de-France, quando ainda existia a Gália
Transalpina, que abrangia a França e a Bélgica. Entre os anos 58 e 50 a.C.,
esse território foi conquistado pelo romano Julio César, após extensa campanha
bélica. Carlos Magno, rei dos francos e imperador do Ocidente (742-814), provou
o brie ao passar por ali e se
encantou, introduzindo-o no seu palácio. Ao contrário do que alguns acreditam,
o camembert descende do brie. É queijo muito mais novo: só
apareceu no século 18, durante a Revolução Francesa. Um padre foragido, vindo
da terra do brie, revelou seu segredo
a uma fazendeira chamada Marie Harel – e ela o reproduziu na Normandia.
O queijo predileto de Talleyrand usa leite de vaca.
São necessários 23 litros para fazer uma unidade. Apresenta-se redondo e
achatado. Mede entre 20 e 35 centímetros de diâmetro e possui cerca de 3
centímetros de altura. A crosta é enrugada, ligeiramente avermelhada, com bolor
branco. A pasta se mostra alva quando fresca, tornando-se amarelada após 6 a 8
semanas de cura. A textura é suave e cremosa. O sabor, leve e delicado. Com o
tempo, a pasta amolece. O queijo vai adquirindo cor amarelo-palha e sabor a
noz. Os tradicionalistas preferem o “fermier”
ou colono, artesanal. O outro, industrial, é chamado de “laitier”. Mas ambos podem exibir qualidade.
O brie procede de quatro localidades, todas na região
de Ile-de-France. Os mais famosos vêm de Melun e Meaux. O primeiro possui
tamanho menor e produção idem: são 190 toneladas anuais contra 5650 do outro. A
maturação, porém, é mais demorada e ocorre em caves mais frias. Também existe o
brie de Melun sem cura, conhecido
como bleu. O de Meaux já foi maior.
Antigamente, ultrapassava os 50 centímetros de diâmetro. Constituía um problema
para os fabricantes, porque é preciso virar o queijo diversas vezes durante a
cura, numa operação delicada. Qualquer descuido pode rachá-lo.
Para homenagear o gosto de Talleyrand ou por compatibilidade
natural, o queijo de Melun combina com os tintos de Bordeaux, enquanto os de
Meaux vão bem com os da Borgonha. O ideal é saboreá-los puros, acompanhados ou
não de pão. Come-se o brie com a casca, que esconde sabores deliciosos e faz
bem à saúde. É queijo ainda usado em cozinha. As famosas bombinhas de massa
folhada denominadas “bouchées à la reine”, criadas em homenagem à polonesa
Maria Leszczynski, mulher de Luis XV, costumam ser recheadas com brie. Os italianos, que a exemplo dos
brasileiros imitam com perfeição o produto original, usam-no nos crostini.
(Cf. O Estado de São Paulo,
17-5-2002 – Caderno 2 – pagina 18)