sábado, 4 de maio de 2013

MAQUIAVEL: VIRTUDE E FORTUNA NO MUNDO POLÍTICO MODERNO




"Para dominar, é preciso antes de tudo convencer, ou ao menos, persuadir. A melhor forma de convencimento possível, aquela que mostra a adesão total e incondicional 'daquele que se deixou convencer', ocorre quando este perde a sua própria identidade. Quando um indivíduo qualquer realmente acredita no que querem que ele acredite ou faz o que querem que ele faça,  está concluído o processo de 'persuasão do outro' (manipulação da mente)[1]."








Raphael de la Trinité





A requintada técnica do domínio



Podemos afirmar que, em certo sentido, Maquiavel consagrou a hipocrisia como valor supremo no contexto das relações sociais. Em termos contemporâneos, lançou as bases fundamentais do que se entende hoje por propaganda. 
De fato, o conceito moderno de propaganda se equipara a uma publicidade sem escrúpulos morais — nesse sentido, “hipócrita”, ou seja, uma mensagem “induzida”. Nos dias atuais, muito se fala em “propaganda enganosa ou abusiva”. Há cerca de cinco séculos, Maquiavel colocou em pauta, no circuito das nações europeias, esse novo modo de divulgação feita com fins escusos.
Muito tempo mais tarde, no período anterior à Revolução Francesa, outro filósofo — este decididamente ímpio —, conhecido pelo pseudônimo de Voltaire, recorreria a este escandaloso estratagema, apto a ludibriar as pessoas: “Menti, menti; alguma coisa sempre ficará”.
Tempos depois, em pleno século XX, outra personagem-chave tentaria, por meios diversos, chegar aos meios intentos. Refiro-me a Goebbels, que se consagrou pela despudorada frase: “Uma mentira dita cem vezes se torna verdade”.
Voltando à filosofia maquiavélica, devemos ressaltar que a mesma correspondeu a uma ruptura com o ideal da Idade Média. Afirmando que a política deve abstrair da Moral, o pensador florentino insurgiu-se contra o Decálogo e a concepção cristã de sociedade.
Maquiavel introduziu, no âmbito das relações sociais, a crematística. Segundo Aristóteles e Santo Tomás de Aquino, crematística é a arte de enriquecer cada vez mais, quando a riqueza material representa o fim do homem e já não um meio para viver dignamente; enquanto a “economia” é a virtude da prudência aplicada à manutenção materialmente decorosa da família ou do lar doméstico, em ordem ao Fim último[2].
Daí se depreende haver um abismo entre a concepção humanista-renascentista de moral e a moral católica, como sempre foi entendida.
Jamais compreenderemos o sentido mais profundo da revolução maquiavélica se não tivermos em mente que todo o contexto europeu era favorável à eclosão e expansão dessas ideias.
 “Em meados do século XVI”, afirma a conhecida historiadora Barbara Tuchman, “foi possível falar de uma revolução, um movimento político internacional, decidido a derrubar a visão medieval do mundo e a substituí-la por algo novo[3]”.
Sem dúvida, o novo padrão humano que emergia estava muito bem representado por soberanos inescrupulosos e artistas de conhecimentos e talentos enciclopédicos. Com relação a estes últimos pontos, Leonardo da Vinci e Leo Baptista Alberti seriam os protótipos, ou figuras emblemáticas. Muito bem equipados do ponto de vista intelectual, representavam o gênero “l’uomo universale”. Noutras palavras, alguém que sabia discursar e debater sobre todas as coisas conhecidas no Universo.
Com base nesses pressupostos, podemos afirmar que Maquiavel teria sido verdadeiramente anticatólico militante? Em certo sentido, sim.
Introduzindo na vida corrente das nações um novo ideal de moralidade (ou seja, uma visão amoral das coisas), ele foi o precursor do homem cúpido, ganancioso, utilitário e materialista de nossos dias. Aliás, não seria errôneo afirmar que a mentalidade atual levou ao ápice praticamente todas as concepções desse genial e corrupto modelo intérprete da Renascença neopagã, que foi Maquiavel. 
O labioso florentino encarava a sua vida como uma batalha espiritual contra a Igreja e a difusão da “mensagem” católica. Apregoando que todas as religiões não passariam de facetas diversas de uma mesma “campanha publicitária” fadada ao insucesso, cuja influência iria desaparecendo ao longo dos séculos, predizia que o Cristianismo seria extinto muito antes do fim do mundo. Acreditava que os bárbaros do Leste europeu (entre os quais, os povos que faziam parte dos Impérios turco e russo), aliados ao descaso e frouxidão dos próprios cristãos ocidentais, poriam fim, em dado momento, ao mundo católico de perfil tradicional. Nenhuma de suas descabeladas profecias se cumpriu...
Sem dúvida, como o Ocidente, nos séculos XV e XVI, estava abandonando o teocentrismo em favor do antropocentrismo — “O homem como medida de todas as coisas” —, a doutrina maquiavélica encontrou ampla aceitação nos círculos europeus da época.
Tratava-se de um período histórico em que muitos Papas (sob a influência do ressurgimento do antigo paganismo greco-romano) atuavam mais como soberanos temporais do que como Vigários de Cristo. Inserem-se, nesse quadro, por exemplo, entre muitos outros, Alexandre VI e Júlio II, talvez os mais tristemente célebres Pontífices daquele tempo. Ambos denotavam prezar mais a pátria terrena do que a celestial, isto é, entre César e Cristo, entre o êxito político-social e a virtude cristã, preferiam aquele. Com efeito, a “virtù” humanista preconizava o ideal de um homem olímpico, à semelhança dos antigos deuses do Olimpo grego, que, de acordo com as consagradas fábulas, seria dotado de dons naturais perfeitos (principalmente de ordem intelectual) e deslumbrante perfeição anatômica. Tais meios seriam instrumentos hábeis para o triunfo pessoal.
Para o homem renascentista (que Maquiavel, a partir daí, encarnaria por excelência), importava, sobretudo, alcançar máxima “fortuna” (boa sorte, felicidade completa) e “virtude” (plena força e poder material).  Como se torna fácil de ver, ambos os conceitos já estavam inteiramente esvaziados de seu conteúdo cristão.
Ao passo que, para o mundo medieval, ser afortunado equivalia a ter uma vida exemplar, a qual, depois da morte, abriria os caminhos para a felicidade eterna, no espírito de fruição e gozo (que caracterizavam o tipo moderno do humanista renascentista), o termo fortuna passou a significar êxito completo nos negócios temporais, sempre à margem de qualquer consideração de ordem transcendente ou moral.
O mesmo se pode afirmar no que diz respeito à nova ideia de virtude. Como sabemos, o significado etimológico da palavra é “força”. Na Idade Média, era considerado virtuoso quem vencia os próprios defeitos rumo à perfeição sobrenatural cristã, ou seja, à santidade de vida.
Já na mente do homem renascentista — voluptuoso e interesseiro —, o mais importante consistia em ter força (“virtù”) para realizar todos os planos de triunfo mundano. Logo, nessa perspectiva, o êxito pessoal representaria tudo, dispensando o resto.     
Hoje qualificamos de maquiavélico aquilo que é cheio de ardis, traiçoeiro e tortuoso. Nada disso é falso. Contudo, muitas vezes esquecemos que Maquiavel propõe a fórmula do êxito político, com abstração inteira da moral.
Por outro lado, compete assinalar que, mesmo antes do advento do Cristianismo, uma concepção de vida nos moldes do pensamento maquiavélico não encontraria acolhida favorável na sociedade. A razão é muito simples: de modo geral, os povos da Antiguidade consideravam que tudo era determinado pelo destino, pela Necessidade. Para os antigos o Destino correspondia ao Logos — potência superior aos próprios deuses. É precisamente essa força impessoal que, em sua obra decisiva — O Príncipe —, Maquiavel designa como sendo a fortuna.
Ora, segundo a concepção dos antigos (portanto muito anterior a Maquiavel), sendo mais forte do que nós, a natureza nos supera. Por isso, em face desta, cumpriria apenas assumir uma atitude de submissão e conformidade. Aqui se insere, por exemplo, a impassibilidade dos estoicos em relação às adversidades e desgostos da vida.
No tocante ao Cristianismo, cabe fazer uma distinção. Segundo a visão católica do universo, o mundo foi criado por Deus; e nada prevalece contra a vontade divina, à qual devemos sujeição e obediência. Nesse sentido, o conceito de Providência divina substitui o da Necessidade, que o mundo antigo tanto prezava. Não obstante, cumpre ao homem lutar com todas as suas forças para secundar (mediante o concurso da graça) a execução dos planos divinos.
O próprio regime feudal, baseado em hierarquias e desigualdade de honras e funções, também pode ser interpretado como uma longa perpetuação de uma ordem de coisas desejada por Deus, embora as classes sociais estivessem longe de ser estanques. Por exemplo, o monge Hildebrando, de origem camponesa, um dia viria a ser Papa e santo: Gregório VII.

MAQUIAVEL, PRECURSOR DA MODERNIDADE

Entrando em cena Maquiavel, a perspectiva filosófica passa a ser completamente nova; diversa até a raiz. No entender do pensador florentino, pelo esforço da razão e força de nossa vontade, conseguimos dominar aquilo que nos escraviza, para que tudo seja utilizado em nosso proveito. Trata-se de tomar em mãos as forças da natureza, dominando-as pela ciência. Por isso, o destino deve ser tido como um inimigo a ser vencido. Resumindo, importa pensar em tudo e nada deixar ao acaso.

Em certo sentido, a fortuna seria manhosa como a mulher, que, para se submeter às nossas ordens, deve às vezes ser compelida ou até mesmo empurrada.

Dois elementos se interpõem nesse caminho: em primeiro lugar, não conseguimos resistir às propensões de nossa natureza. Em segundo, alguém que tenha sido bem sucedido agindo habitualmente de uma determinada forma, jamais admitirá que deva proceder de modo diferente. Provêm disso diferenças de fortuna: mudam-se os tempos, mas não queremos modificar os nossos hábitos.

Maquiavel acrescenta, como exemplo, o caso do Papa Júlio II. Conforme a sua análise, ao longo de todo esse pontificado, Júlio II notabilizou-se por suas crises de furor e pela impetuosidade de seu caráter. Caso vivesse noutras circunstâncias, que teriam exigido outro estilo ou modo de ser, ele ficaria totalmente sem rumo, uma vez que dificilmente alteraria o próprio caráter ou forma de conduta.

Para Maquiavel, de fato, só possui valor algo que seja verdadeiramente útil ao homem.
  
Em suma, devemos refletir e aperfeiçoar aquilo que somos (ideal de homem renascentista), Corresponde ao oposto do ideal de perfeição cristã, que nos incita a buscar aquilo que devemos ser.

Desvencilhar-se do imaginário ilusório (ou seja, afastar-se da ideia de que a ordem do mundo seja algo desejado por Deus), eis o que permite que o homem faça uso dos meios necessários para ser o artífice do próprio destino.

Convém, pois, apresentar que Maquiavel propunha modelos ideais. Para ele, o príncipe moderno por excelência, aquele que vive em perfeita consonância com a filosofia (maquiavélica) da realidade era nada mais nada menos do que Cesar Borgia, filho do Papa Alexandre VI, que o transformou em cardeal aos dezesseis anos.

 Como sabemos, Cesar, duque de Gandia, era um tirano cruel e famoso assassino. Graças à falsidade e dissimulação, conseguiu ocultar os seus astuciosos e desleais propósitos ostentando uma máscara de virtude.

Segundo consta, Lorenzo, o Magnífico, grande príncipe florentino, seria o soberano mais representativo da doutrina e espírito de Maquiavel. O autor de O Príncipe, em suas elucubrações e devaneios, via em Lorenzo um papel-chave como concretização de suas ideias.
Para Maquiavel, a moralidade não passa de uma ilusão para ludibriar os ingênuos. Só o que conta é a realidade efetiva de cada coisa, isto é, a sua utilidade e eficácia na luta contra todos os obstáculos que se interpõem ao pleno sucesso pessoal.

Essa total desvinculação entre os atos humanos e os princípios morais — o importante é que o homem atinja o fim a que se propôs —, nisso é que reside a essência do pensamento de Maquiavel. Dessa perspectiva olímpica-humanista, de nada servem as normas do bem-agir, nem a imaginação temperante, e sim, determinado objetivo proposto, o qual deve ser atingido, ainda que por meios capciosos e fraudulentos.

Eis a essência da modernidade: “os fins justificam os meios”.

A degradação da vida política, no mundo inteiro, é um dos sinais mais visíveis de que Maquiavel, com suas pregações, estava no âmago do espírito moderno.

De fato, o seu ensinamento relativista teve enorme influência: todos os principais filósofos políticos e sociais que viriam depois (Hobbes, Locke, Rousseau, Stuart Mill, Kant, Hegel, Marx, Nietzsche, Dewey) começaram por saudar a nova bandeira hasteada pelo florentino, abrindo assim caminho para a degringolada moral que presenciamos hoje.




[1] NAHRA, Cinara. A Megera e o Príncipe. Princípios – Revista de Filosofia, periódico anual. Departamento de Filosofia, CCHLA (Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte), EDUFRN – Editora da UFRN. Ano 04, nº 05, 1997. p. 42).
[3] BARBARA W. TUCHMAN, Bible and Sword, New York, New York University Press, 1956, p. 54.

CARDEAL RATZINGER – CONCÍLIO LEVOU AO TÉDIO, DESÂNIMO E DECADÊNCIA PROGRESSIVA










Bento XVI, quando ainda Cardeal, Prefeito da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, declarou: 
"Os resultados que se seguiram ao Concílio parecem cruelmente opostos às expectativas de todos, a começar do papa João XXIII e depois de Paulo VI [...] Os Papas e os Padres conciliares esperavam uma nova unidade católica e, pelo contrário, se caminhou para uma dissensão que — para usar as palavras de Paulo VI — pareceu passar da autocrítica à autodemolição. Esperava-se um novo entusiasmo e, em lugar dele, acabou-se com demasiada frequência no tédio e no desânimo. Esperava-se um salto para a frente e, em vez disso, encontramo-nos ante um processo de decadência progressiva”(Cfr. Vittorio Messori, “A coloquio con il cardinale Ratzinger, Rapporto sulla fede”, Edizioni Paoline, Milano, 1985, pp. 27-28).

A Leitura – A. D. Sertillanges


A Leitora, de1892 -  José Ferraz de Almeida Júnior



Trabalhar significa aprender e significa produzir: em ambos os sentidos, o trabalho requer longa preparação, porque produzir é um resultado, e só aprende, em matéria árdua e complexa, quem primeiro atravessou o simples e o fácil: “devemos correr para o mar por meio dos regatos, e não de repente”, diz S.Tomás. Ora, a leitura é o meio universal para aprender, e é a preparação próxima ou remota para toda a produção.

Nunca pensamos isoladamente: pensamos em sociedade, em colaboração imensa; trabalhamos com os trabalhadores do passado e do presente. Graças à leitura, pode comparar-se o mundo intelectual a uma sala de redação ou repartição de negócios, onde cada qual encontra no vizinho a sugestão, o auxílio, a critica, a informação, o ânimo de que carece. Portanto, saber ler e utilizar as leituras são necessidade primordial que o homem de estudo não deve esquecer. 

Primeira regra: lede pouco. Em 1921, no jornal Le Temps, Paulo Souday que, pelo visto, se queria vingar de mim nalguma coisa, agarrou-se a este preceito: "lede pouco", e pretendeu descobrir nele laivos de ignorantismo. O leitor, se leu o jornal, sabe o valor daquela crítica e, sem dúvida, Paulo Souday também o sabia. Eu não aconselho a restringir parvamente a leitura: tudo quanto fica dito protesta contra semelhante interpretação. Queremos formar um espírito largo, praticar a ciência comparada, manter o horizonte aberto diante de nós, o que não se consegue sem muita leitura. Mas muito e pouco só se opõem no mesmo terreno. Aqui, é preciso muito absolutamente, porque a obra é vasta; mas pouco em relação ao dilúvio de escritos de que a mais insignificante especialidade sobrecarrega hoje bibliotecas e as almas. 

Proscrevemos, sim, a paixão de ler, a ânsia, a intoxicação por excesso de nutrição espiritual, a preguiça disfarçada que prefere ao esforço a freqüentação fácil. A "paixão" da leitura, de que tantos se prezam como de preciosa qualidade intelectual, é tara, é paixão em tudo semelhante às demais paixões que absorvem e perturbam a alma, retalhando-a de correntes confusas que lhe esgotam as energias. Leia-se com inteligência, não com paixão. Vamos aos livros como a dona de casa vai à praça, depois de cumpridas as ocupações quotidianas de acordo com as leis da higiene e da boa administração. A dona de casa não vai à praça com o mesmo intuito com que vai à noite ao cinema. O mesmo sucede com a leitura: é questão, não de gozar e de se embriagar, mais de governar e administrar bem a casa.

A leitura desordenada não alimenta, entorpece o espírito, torna-o incapaz de reflexão e concentração e, por conseguinte, de produção; exterioriza-o no seu interior, se assim se pode dizer, e escraviza-o às imagens mentais, ao fluxo e refluxo das ideias que ele se limita a contemplar na atitude de simples espectador. É embriaguez que desafina a inteligência e permite seguir a passo os pensamentos alheios e deixar-se levar por palavras, por comentários, por capítulos, Por tomos.

A série de excitações assim provocadas arruina as energias, como a constante vibração estraga o aço. Não esperemos trabalho verdadeiro de quem cansou os olhos e as meninges a devorar livros; esse encontra-se, espiritualmente, em estado de cefalalgia, ao passo que o trabalhador, senhor de si, lê com calma e suavidade somente o que quer reter, só retém o que deve servir, organiza o cérebro e não o maltrata com indigestões absurdas.

Ide antes dar um passeio, ler no livro imenso da natureza, respirar o ar fresco, distrair-vos.

A. D. Sertillanges - Trecho de A Vida Intelectual

Escrever - A. D. Sertillanges












Esse trecho foi retirado do livro A Vida Intelectual e pertence ao capítulo VIII, que trata do Trabalho Criador. O livro é de 1920 e trata-se de uma aula de preparação para uma vida de estudos da alta cultura. Mais que um manual, é também o testemunho de uma vida dedicada ao conhecimento e à busca pela sabedoria. Com muita percepção, experiência e didática, é um guia perfeito para quem se aventura pelo tortuoso, mas prazeroso caminho do estudo autodidata. Antonin-Gilbert Sertillanges, mais conhecido como A.D. Sertillanges é um padre francês que nasceu em 1863 e morreu em 1948. Discípulo de São Tomás de Aquino e, portanto, admirador também de Aristóteles. Um gênio que deveria ser lido por todos.


***


Chegou o momento de realizar. Não podemos passar a vida só a aprender e a preparar. Além de que, aprender e preparar exige uma dose de preparação: para encontrar um caminho é preciso enveredar por ele. A vida decorre em círculo. Órgão, que se exerce, cresce e fortifica-se; órgão fortificado exerce-se mais vigorosamente. É preciso escrever ao longo da vida intelectual. Escrevemos primeiramente para nós, para ver claro nos nossos casos, para determinar melhor os pensamentos, para suster e avivar a atenção que depressa esmorece se não for instigada pela ação, para estimular as pesquisas necessárias para levar a cabo a produção, para reanimar o esforço que se cansaria não vendo os resultados, enfim para formar o estilo  e adquirir um valor que completa todos os outros valores: a arte de escrever.


Escrevei e publicai, desde que juízes competentes vos julguem capazes disso e desde que vos sintais aptos para voar. O pássaro sabe muito bem quando há-de lançar-se no espaço; melhor do que ele o sabe a mãe; apoiado em vós e numa prudente maternidade espiritual, voai logo que puderdes. O contacto com o público obriga o escritor a constante trabalho de aperfeiçoamento; os louvores merecidos animam-no; as críticas fiscalizam-no; ser-lhe-á, por assim dizer, imposto o progresso, em vez da estagnação que pode resultar do perpétuo silêncio. A paternidade espiritual é sementeira de bens. Toda obra é manancial.


O P. Gratry insiste muito na eficácia da escrita. Quer que se medite sempre com a pena na mão e que a hora pura da madrugada seja consagrada a este contacto do espírito consigo próprio. Devem tomar-se em consideração as disposições pessoais; mas é certo que, para a maior parte, a pena, que corre, desempenha o papel do treinador nos jogos desportivos. Falar, é ouvir a alma e, nela a verdade; falar solitária e silenciosamente por meio de escrita, é ouvir-se e sentir a verdade com a frescura de sensação dum homem matinal que ausculta a natureza logo ao despontar do dia.


Em todas as coisas, é preciso começar: “o começo é mais que metade duma coisa” , disse Aristóteles. Quem não produz, habitua-se à passividade; o medo de orgulho – porque o orgulho também gera o medo – ou a timidez aumentam mais e mais; recuamos, cansamo-nos de esperar, tornamo-nos improdutivos.


A arte de escrever, dissemos, exige a longa e precoce aplicação que paulatinamente se converte em hábito mental e constitui o que se chama o estilo. O meu “estilo”, a minha “pena”, é o instrumento espiritual de que me sirvo para me dizer e dizer a outrem o que ouso da verdade eterna; é qualidade do meu ser, vinco interior, disposição do cérebro animado, sou eu envolvido de certo modo. “O estilo é o homem”.


O estilo forma-se, escrevendo; o mutismo diminui a personalidade. Se quereis ser alguém, intelectualmente, precisais de saber pensar alto, pensar explicitamente, isto é, formar, dentro e fora de vós, o vosso verbo.  Chegou a ocasião de dizer em breves palavras o que deve ser o estilo para corresponder aos fins sugeridos aqui ao intelectual. Seria prudente não escrever, para ousar dizer como se escreve. A humildade não oferece dificuldade, quando diante de Pascal, La Fontaine, Bossuet, Montaigne, se sofreu a influência dum estilo superior. Pelo menos ficamos conhecendo o ideal a que visamos e não alcançamos. Podem-se explicar as qualidades do estilo em tantos artigos quantos se quiser; tudo, porém, creio eu, se resume em três palavras, verdade, individualidade, simplicidade, a não ser que se prefira sintetizar nesta única frase: escrever verdade. O estilo é verdadeiro quando corresponde a uma necessidade do pensamento e quando se mantém em contacto íntimo com as coisas. O discurso é ato de vida: não deve representar um corte na vida. É o que sucede quando caímos no artificial no convencional; Bergson diria no tout fait. Escrever por um lado, e por outro viver vida espontânea e sincera, é ofender o verbo e a harmoniosa unidade humana. 


O “ discurso de circunstância”  é o tipo das coisas que se dizem porque é preciso dizê-las, das coisas que só se pensam literariamente, gastando com elas aquela eloqüência de que a verdadeira eloqüência zomba. Por isso o discurso de circunstância muito freqüentemente não passa de discurso de ocasião. Pode acontecer que seja genial, e temos exemplos de sobra em Demóstenes e Bossuet; mas só o é, se a circunstância extrai do nosso íntimo o que de lá brotaria igualmente por si, o que se prende com as opiniões pessoais, com o objeto das meditações habituais.


A virtude da palavra, falada ou escrita, é a abnegação e a retidão: abnegação que afasta a personalidade, quando se trata de intercâmbio entre a verdade que fala dentro e a alma que escuta: retidão que expõe sinceramente o que foi revelado na inspiração e não lhe acrescenta palavras inúteis. “ Olha para o teu coração e escreve” , diz Sidney. Quem assim escreve, sem orgulho nem artifício, como para si só, fala, de fato, para a humanidade, se é que possui o talento de pronunciar uma palavra verídica, na qual a humanidade se possa reconhecer como sua inspiradora. A vida reconhece a vida. Se me contento com entregar ao próximo um pedaço de papel impresso, talvez o próximo lance um olhar de curiosidade, mas depressa se desfará dele; se, porém, sou árvore que oferece folhas e frutos suculentos, se me dou com plenitude, então convencerei e, como Péricles, deixarei o dardo cravado nas almas. Para obedecer às leis do pensamento tenho de me mostrar perto das coisas ou, antes, no íntimo delas, porque pensar é conceber o que é, e escrever verdade, ou por outra escrever de acordo com o pensamento, é revelar o que é, e não enfiar frases. Por isso o segredo de escrever consiste em colocar-se ardentemente diante das coisas, até que elas vos falem e determinem os termos que as devem exprimir.


O discurso deve corresponder à verdade da vida. O ouvinte é homem; logo o discursador não deve ser sombra. O ouvinte mostra-nos uma alma que quer ser curada ou iluminada: não lhe propineis só palavras. Enquanto desenrolais períodos, olhai para fora e para dentro de vós e procurai sentir a correspondência entre a vossa personalidade e a de quem vos escuta. A verdade do estilo afasta o molde. Chamo molde a uma verdade antiga, a uma fórmula que passou para o uso comum, a um lote de expressões outrora novas e que já o não são por terem perdido o contacto com a realidade donde nasceram, por flutuarem no ar, vãos ouropéis que tomam o lugar do autêntico ouro, o lugar de transcrição direta e imediata da idéia. Como observa Paulo Valéry, o automatismo gasta as línguas. Para viver, acrescenta o mesmo autor, temos de utilizar sempre a sintaxe “ em plena consciência” , aplicando-nos a articular com vigilância todos os elementos, evitando certos efeitos que espontaneamente se ingerem esperando a vez de se fazerem valer. Semelhante pretensão é o motivo por que devemos apartar esses parasitas, esses intrusos, esses maçadores. O estilo superior consiste em descobrir os laços essenciais entre os elementos do pensamento, e na arte de os exprimir com exclusão de qualquer balbucio acessório. “ Escrever como o orvalho se deposita sobre a folha e as estalactites se suspendem do teto das grutas, Como a carne deriva do sangue, como a fibra lenhosa se forma da seiva” (1): eis o ideal. A pessoa orgulhosa e perturbadora estará ausente de semelhante discurso; mas a personalidade da expressão só ganhará em nitidez e relevo. O que sai de mim sem mim é necessariamente semelhante a mim. O meu estilo é o meu rosto. O rosto tira da espécie os seus caracteres gerais, mas ostenta individualidade empolgante e incomunicável; é único em toda a terra e em todos os séculos; daí vem, em parte, o interesse do retrato. Ora o nosso espírito é decerto muito mais original do que o rosto; mas ocultamo-lo por detrás das generalidades adquiridas, das frases tradicionais, das alianças verbais que só representam velhos hábitos em vez de representarem amor. Mostrá-lo tal qual é, apoiando-nos nas aquisições que a todos pertencem, mas sem nos esquecermos de nós, suscitará interesse inesgotável, será a arte.


O estilo, que convém a um pensamento, é como o corpo que pertence à alma, como a planta que provém da semente: tem arquitetura peculiar. Imitar é alienar o pensamento; escrever sem caráter é declará-lo vago ou pueril. Nunca se deve escrever “à maneira de...” , nem mesmo à maneira de si próprio. Para quê ter maneira? A verdade não a tem afirma-se sempre nova. O som da verdade tem de ser pessoal a cada um dos instrumentos. “ Os homens verdadeiramente superiores, escreve Júlio Lachelier, foram todos originais, embora o não tivessem pretendido nem se tivessem julgado tais; pelo contrário, procurando fazer das suas palavras e dos seus atos a expressão adequada da razão, encontraram eles a forma particular de a exprimir.”  Todo o instrumento tem timbre. Se a maneira é afetação, a originalidade verdadeira é fato de verdade que, em vez de enfraquecer, reforça a impressão que o leitor, por seu turno, receberá. Não proscrevemos o sentimento pessoal que tudo renova e glorifica, mas sim a vontade própria contrária ao reino da verdade. Daí brota a simplicidade. Os floreados constituem ofensa para o pensamento, a não ser que se empreguem como simples expediente para encobrir o vácuo da mentalidade do escritor. No real não há floreados; só há necessidades orgânicas. Não quer dizer que não haja na natureza nada de brilhante; mas nela o brilhante é também orgânico, sustentado por substruções que nunca falham.


Para a natureza, a flor é tão grave como o fruto, e a folhagem tão grave como o ramo; a árvore, que se firma na raiz, não faz mais do que manifestar o germe onde se esconde a idéia da espécie. Ora, o estilo, quando é de mão de mestre, imita as criações naturais. Uma frase, um trecho escrito devem ser como ramo vivo, como os filamentos da raiz, como a árvore. Nada de mais, nada ao lado, tudo na curva pura que vai do germe ao germe, do germe desabrochado no escritor ao germe que deve desabrochar no leitor e propagar a verdade ou a bondade humana. O estilo não é um fim; desvia-o e avilta-o o escritor que faz estilo só pelo estilo. Amesquinha a verdade quem só se apega à “forma” , quem só é rimador em vez de ser poeta, estilista em vez de escritor. Quem possuir o gênio do estilo, deve levá-lo à perfeição, que é o direito de quanto existe. Todo escritor anseia ser mestre no estilo, como o ferreiro é mestre na forja. Ora, qual o ferreiro que se diverte em tornear volutas por prazer? O estilo exclui a inutilidade; é economia no seio da riqueza; gasta o que é preciso, poupa aqui, prodiga ali para a glória da verdade. O seu papel não é brilhar, mas fazer aparecer: quando ele se apega, é que a sua glória reluz. “O belo corta o supérfluo” , dizia Miguel Angelo, e Delacroix releva neste artista “ os soberbos embutidos, as faces simples, os narizes sem minudências”. Mas nessa simplicidade não deve passar despercebida a firmeza de contornos, como em Miguel Angelo, em Leonardo e, sobretudo, em Velasquez, ao contrário do que sucede v. g. em Van Dyck, o que é ainda uma lição. Uma vez que determinastes um pensamento ou sentimento, expressai-o de sorte que todos vos compreendam, como convém a um homem que fala a outros homens e procura atingir neles o que direta ou indiretamente é órgão de verdade. “Um estilo completo é o que alcança todas as almas e todas as faculdades das almas” (1).


Não sejais escravos da moda. Dai água de nascente, não drogas de farmácia. Muitos escritores, hoje, criam sistemas: ora um sistema é algo do artificial e o artificial ofende a beleza. Cultivai a arte da omissão, da eliminação; da simplificação: eis o segredo da força, que os mestres não se cansam de repetir, como S. João Evangelista não se fartava de incular: “Amai-vos uns aos outros”. A lei e os profetas, em matéria de estilo, é a inocente nudez que revela o esplendor das formas vivas: pensamento, realidade, criações e manifestações do Verbo.


Infelizmente, é rara a inocência do espírito; quando existe, alia-se por vezes à nulidade. Por isso, só duas espécies de espíritos parecem predispostos para a simplicidade: os de pequena envergadura e os gênios; os restantes são obrigados a adquiri-la laboriosamente; incomoda-os a própria riqueza e não sabem reduzir-se.

( 1) Emerson. Autobiographie, Edit. Régis Michaud, pag. 640, Paris, Colin.


A Vida Intelectual - Antonin-Gilbert Sertillanges

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