domingo, 16 de março de 2014

O QUE SE ENTENDE HOJE POR 'MISTÉRIO PÁSCAL'

DESTAQUE

Os cardeais Ottaviani e Bacci puderam então afirmar a Paulo VI: “Quiseram passar uma esponja em toda a teologia da Missa. Terminou como algo muito próximo da teologia protestante que destruiu o sacrifício da Missa” [6]. Encontramos as mesmas omissões e deslizes nos textos do concílio Vaticano II.

O povo reunido é sacramento da Igreja, que ele se manifesta e torna presente [18]. Deus se revela assim diretamente na consciência pela experiência e não pela pregação. O sacramento é “revelação” da presença viva de Deus. Ele permite realizar uma “certa experiência das verdades de fé”.

*** * ***





Este capítulo demonstrará que a perspectiva panteísta fornece uma explicação global e coerente às inovações litúrgicas do concílio Vaticano II. Com razão, alguns não deixarão assim de levantar a questão da influência protestante sobre o Vaticano II, mais que visível, aliás, na missa nova. Seríamos os últimos a querer negá-la ou minimizá-la. Porém devemos ver nela a origem última da subversão religiosa? O protestantismo não é ele próprio o vetor de outras influências, que só se revelam progressivamente no desenrolar da história? Ele não é apenas umaetapa na subversão espiritual?

Não buscaremos evidenciar aqui a filiação histórica entre gnósticos, maniqueus, cátaros, albigenses, humanistas, cabalistas, Rosa-Cruzes e maçons, de um lado, e protestantes, do outro. Somente esta enumeração demonstra a extensão das pesquisas a serem conduzidas a termo. Não se pode negar que todos[1] estes movimentos são anteriores à Reforma e não podem provir dela. A influência destas correntes anti-católicas sobre a origem da Reforma, uma semelhança espiritual frequentemente muito profunda com o protestantismo (que este capítulo evidenciará implicitamente) e a convergência dos herdeiros de todas estas forças durante o concílio Vaticano II estabelecem naturalmente um vasto problema. Não tomaremos a iniciativa de resolvê-lo aqui, mencionando somente que ele conduz a conclusões muito perturbadoras sobre a origem do protestantismo e, portanto, do ecumenismo e do Vaticano II.

A proximidade, não mais histórica, mas intelectual, entre os movimentos gnósticos e o protestantismo exige, não obstante, um esclarecimento rápido[2]. Por que tantos elementos do concílio Vaticano II podem ser interpretados tanto em uma perspectiva holística, gnóstica e maçônica, quanto em um âmbito protestante? Por que o ecumenismo, a colegialidade, a liberdade religiosa, a missa nova, a confusão entre a natureza e a graça, figuram naturalmente nestes dois sistemas de interpretação? Devemos resumir aqui umas considerações que mereceriam desenvolvimentos mais amplos. A doutrina maçônica, que é também aquela do Vaticano II, confunde a natureza e a graça, divinizando a natureza. “Esta natureza foi elevada em nós a uma dignidade incomparável. Pois, por sua encarnação, o Filho de Deus se uniu de algum modo a todo homem“. Por sua vez, Lutero confundia a natureza e a graça, destruindo a natureza para deixar subsistir somente Deus: o pecado original, que o batismo não apaga, corrompeu radicalmente o homem. A natureza estando irremediavelmente ferida, não pode o homem fazer nenhum esforço moral. Toda a nossa santificação é obra somente de Deus, e não podemos de modo algum colaborar com ela. Assim os eleitos são justificados somente pela graça de Deus, que lhes imputa a justiça de Cristo, revestindo-os como por um manto de seus méritos. Chega-se assim ao panteísmo por duas vias opostas: seja exaltando e divinizando o homem, seja o rebaixando até  à aniquilação.

Todavia, resta mencionar que, apesar de todas estas semelhanças profundas, o protestantismo não pode por si só justificar a doutrina do Vaticano II: a confusão entre o Criador e a criatura, a salvação universal, a salvação cósmica, a unidade do gênero humano, nossa graça natural e a dignidade humana só podem ser explicadas no âmbito do pensamento holístico. O livre exame protestante só tomará sua amplitude com a doutrina conciliar e gnóstica da revelação interior. Assim, a Reforma aparece como uma simples etapa na transmutação alquímica da cristandade que culminou no concílio Vaticano II.


O SANTO SACRIFÍCIO DA MISSA

Não é nossa intenção acrescentar algo aos profundos estudos sobre a missa nova que outros, melhor armados, publicaram [3]. Neste capítulo, contentar-nos-emos em recordar suas conclusões bem fundamentadas e remeter nossos leitores a estas obras preocupadas com aprofundamentos. Servir-nos-emos particularmente do estudo publicado pela Fraternidade sacerdotal São Pio X intitulado “O problema da reforma litúrgica”[4]. Ele expõe uma das chaves de interpretação da missa nova: o “mistério pascal”, que, na teologia conciliar, substituiu o dogma da Redenção.

Baseados nestas conclusões, que esclarecem as modificações introduzidas pelo Vaticano II no santo sacrifício da missa e que, essencialmente, suporemos assimiladas, ainda que as recordemos rapidamente, demonstraremos que a doutrina holística, panteísta e maçônica, esclarece imediatamente todas estas mudanças e apresenta o “mistério pascal”, como mistério gnóstico. Portanto, tal é o único propósito deste capítulo: demonstrar que a doutrina maçônica fornece a explicação mais completa da renovação litúrgica. Recordaremos de forma breve as principais críticas formuladas contra a nova liturgia; resumiremos em seguida a teologia do “mistério pascal” e a análise que O problema da reforma litúrgica faz dela; em seguida demonstraremos que todos estes elementos figuram no âmbito do pensamento maçônico.

A querela sobre a missa incide principalmente sobre o desaparecimento ou a diminuição de seu caráter de sacrifício propiciatório, de representação e de renovação não sangrenta do sacrifício da Cruz, e, portanto, sobre a aplicação de seus méritos sobre nossas almas. A nova liturgia tende a negar ou a reduzir tanto o aspecto sacrificial da missa quanto seu caráter propiciatório. A definição da missa dada pela Instituio generalis [5] causou grande escândalo antes de ser levemente modificada.

“A Cena dominical é a sinaxe (assembleia) sagrada ou a reunião do povo de Deus, que se reúne sob a presidência do sacerdote para celebrar o memorial do Senhor. É por esta razão que, para a assembleia local da santa Igreja, vale a promessa eminente de Cristo: lá onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, eu estarei no meio deles”.

Em algumas palavras, esta definição notável nega implicitamente o sacrifício, a propiciação e o caráter sacerdotal do padre, para transformar o santo sacrifício da missa em refeição (cena) e em memorial; o padre, outro Cristo, em presidente da assembleia, e a presença real, em presença espiritual (estarei presente no meio deles). Silencia-se o milagre da caridade divina manifestado pela representação e a renovação do sacrifício da Cruz, pela presença real e pela comunhão que nos leva realmente a receber Nosso Senhor Jesus Cristo. Os cardeais Ottaviani e Bacci puderam então afirmar a Paulo VI: “Quiseram passar uma esponja em toda a teologia da Missa. Terminou como algo muito próximo da teologia protestante que destruiu o sacrifício da Missa” [6]. Encontramos as mesmas omissões e deslizes nos textos do concílio Vaticano II. Contentar-nos-emos em dar suas referências para não sobrecarregar inutilmente nossa análise [7].

Tal omissão voluntária do sacrifício propiciatório significa sua “superação” e, ao menos na prática, sua negação [8] e sua substituição somente pela ação de graças (eucaristia) ou por um sacrifício de louvor. A pena devida ao pecado e a finalidade satisfatória da missa são destruídas, de tal modo que esta não aparece mais em parte alguma na liturgia dos defuntos. Enfim, a participação na vítima, realizada na comunhão, não é mais requerida. A Cruz é esquecida, suplantada pela Ressurreição. O santo sacrifício é substituído por uma liturgia de salvos.

A missa não passa mais então de uma refeição memorial que requer, portanto, comê-la e bebê-la — a comunhão sob as duas espécies. O altar, pedra fixa sobre a qual se efetua o sacrifício, é substituído por uma mesa de madeira, móvel, adaptada à refeição e voltada para os fiéis.

“Com efeito, a Missa levanta a mesa tanto (primeiramente) da palavra de Deus quanto (em segundo lugar) do Corpo do Senhor, onde os fiéis são instruídos e restaurados”. (Institutio generalis, § 8)

“O penhor desta esperança e o viático para este caminho deixou-os o Senhor aos seus naquele sacramento da fé, em que os elementos naturais, cultivados pelo homem, se convertem no Corpo e Sangue gloriosos, na ceia [9] da comunhão fraterna e na prelibação do banquete celeste”. (Gaudium et spes, 38, 2)

O ofertório, que oferecia a Deus uma hóstia (vítima) imaculada e o cálice da salvação, referindo-se ao único sacrifício que o homem decaído possa oferecer a Deus, aquele de seu Filho, Nosso Senhor Jesus Cristo, é assim substituído por uma simples apresentação dos dons, que retoma uma oração judaica. A Presença real, objetiva, é morta (comunhão na mão e de pé [10]) enquanto que a ênfase é posta sobre a presença espiritual de Cristo e sobre a palavra de Deus. O pão e o vinho, que a liturgia tradicional já considera como uma “hóstia imaculada” e o “cálice da salvação”, agora se tornam “pão da vida” e “bebida espiritual”, indicando uma mudança espiritual, e não substancial, sem referência à presença real, corpo, sangue, alma e divindade de Nosso Senhor Jesus Cristo. Por outro lado, Cristo está presente por sua palavra:

“Na Igreja, quando se lê a Santa Escritura, é o próprio Deus que fala com seu povo, e é Cristo, presente em sua palavra, que anuncia o Evangelho”. (Institutio generalis, § 9)

Da mesma forma, Cristo está presente no povo de Deus. Desde o Vaticano II, todos os leigos estão revestidos do sacerdócio comum dos fiéis:
“A Igreja quer que os fiéis, não somente ofereçam esta vítima sem mancha, mas ainda que eles aprendam a oferecer a si mesmos”. (Institutio generalis, § 79)

Toda a assembleia dos fiéis se associa então ao padre para celebrar a eucaristia. Esta inversão fica particularmente sensível durante a genuflexão do padre, que no rito antigo ocorre imediatamente após a consagração, enquanto que agora é postergada para depois da elevação, depois que os fiéis, reunidos em nome do Senhor, o tornaram presente (lá onde dois ou três…). Do mesmo modo, o Pater é recitado agora por todos, padres e fiéis.

O “MISTÉRIO PASCAL”

Problema da reforma litúrgica faz remontar a origem da missa nova à doutrina do “mistério pascal” [11]. Esta doutrina se caracteriza pelo abandono da satisfação e, mais particularmente, da satisfação vicária, pela afirmação do amor infinito de Deus, que o pecado de nenhum modo ofende [é incapaz de ofender] [12], e pela negação da justiça divina e de toda dimensão vindicativa [13]. A Redenção “não é mais a satisfação da justiça divina operada por Cristo, mas revelação última da Aliança eterna que Deus fez com a humanidade, Aliança que nunca foi rompida pelo pecado[14]” e que acarreta, portanto, na salvação humana.

Por trás do “mistério pascal”, o Problema da reforma litúrgica evidencia uma “doutrina dos mistérios” que faz dele, de acordo com Joseph Ratzinger, “a ideia teológica provavelmente mais fecunda de nosso século” [15]. O mistério, ou sacramento, não produz mais a graça santificante, mas torna realmente presente a realidade santificante. Assim, Cristo é o “sacramento primordial”, que “torna presente e revela plenamente o Pai” [16]. A Igreja é o sacramento de Cristo, visto que por ela “o homem pode encontrar Cristo e Deus no Cristo” [17]. A liturgia também é sacramento de Cristo, visto que nela realizamos a experiência de sua presença. O povo reunido é sacramento da Igreja, que ele se manifesta e torna presente [18]. Deus se revela assim diretamente na consciência pela experiência e não pela pregação. O sacramento é “revelação” da presença viva de Deus. Ele permite realizar uma “certa experiência das verdades de fé”.

“Assim como dissemos, uma das principais chaves da teologia do mistério pascal é o sentido que ela concede à palavra “sacramento”. Visto que ela o considera como uma realidade que torna presente o divino (o “mistério” propriamente dito), faz do sacramento o elo que permite a experiência do encontro com Deus. “Sinal e meio da união íntima com Deus” (Lumen gentium 1), o sacramento concebido de forma nova, centrado como ele é sobre o símbolo e sobre o divino tornado acessível à experiência humana, recebe um campo de aplicação de uma extensão até então desconhecida”.[19]

“(em resumo) Visto que a teologia do mistério pascal estima que o pecado não traz como consequência contrair nenhuma divida de justiça em relação à honra escarnecida de Deus, e por via de consequência, não considera mais a satisfação vicária de Cristo como um dos elementos essenciais do ato redentor, a reforma litúrgica afastou do rito da missa tudo o que poderia dizer respeito à pena devida ao pecado, assim como a finalidade propiciatória da missa. Visto que a teologia do mistério pascal só considera a Redenção como a manifestação última do amor eterno do Pai em relação ao homem, ao qual responde a acolhida deste mesmo amor pelo Cristo, que se fez em sua Encarnação solidário a todo homem, a reforma litúrgica fez do sacramento uma revelação deste mesmo amor divino, ao qual o homem é convidado a responder por uma acolhida de fé para entrar em contato com Cristo glorioso tornado presente sob os véus do mistério. Visto que a teologia do mistério pascal considera o rito memorial como único apto a tornar presente, por além do tempo do homem, os mistérios da morte e da Ressurreição de Cristo, a reforma litúrgica modificou profundamente a estrutura ritual da missa ao ponto de retirar sua dimensão propriamente sacrificial”.[20]

O Problema da reforma litúrgica menciona enfim vários outros temas gnósticos. Ele revela que a noção de mistério “busca exprimir o caráter de revelação direta de Deus aos seus servos, que está ligada à Revelação, por oposição a um modo de conhecimento filosófico”[21]; ele nota o “questionamento do valor objetivo do conhecimento especulativo”, a recusa dos dogmas, a vontade de realizar a experiência da presença de Deus[22] e cita, enfim, esta passagem a priori surpreendente de Odon Casel, um dos “pais” da “teologia dos mistérios” (a primeira parte desta citação é formada pela post-comunhão da oitava da Epifania):

“Cerque-nos sempre e por toda parte, Senhor, com a luz celeste, a fim de que, por este mistério, ao qual tivestes por bem nos fazer participar, possamos contemplá-Lo com um olhar puro e recebê-Lo com um coração digno”. Em que consiste a participação? Inicialmente, na contemplação. Contemplamos o mistério na gnose da fé. Porém esta não é uma contemplação inativa e ineficaz. Somos transformados por esta contemplação”. [23]

Agora nos é possível terminar de estabelecer que as críticas formuladas contra o Vaticano II, e mais particularmente pelo Problema da reforma litúrgica, demonstram que nos encontramos diante de uma reforma de inspiração maçônica e gnóstica. A doutrina do Vaticano II é rigorosamente equivalente ao panteísmo ou à afirmação de que nossa natureza é graciosa. Se nossa natureza é graciosa, de uma graça inamissível [24], devemos então negar a necessidade dos sacramentos [25], visto que a graça, que nos seria natural, não poderia ser perdida. O sacrifício propiciatório da missa, sua aplicação em nossas almas e a satisfação vicária são inúteis, e o pecado não nos faz mais perder a amizade divina. Em sentido inverso, se o pecado não nos faz mais perder a amizade divina, nossa natureza é graciosa, de uma graça inamissível. O mesmo ocorre se se nega a necessidade da aplicação dos méritos da Paixão em nossas almas pelo santo sacrifício, ou se se nega a satisfação vicária: isso significa afirmar que todas as almas sempre estão em estado de graça, que o pecado não ofende mais a Deus, não acarreta mais uma dívida de justiça – porque nossa natureza possui uma graça inamissível.

Disso resulta uma liturgia de salvos, uma simples ação de graças, uma refeição memorial. O sacrifício sendo apagado, o papel do padre é diminuído a simples presidente. Toda a assembleia de salvos deve participar: ”A Cena dominical é a sinaxe (assembleia) sagrada ou a reunião do povo de Deus”, enquanto que, na realidade, as missas sem assistência são válidas. Nossa natureza sendo graciosa, não temos mais que participar da vítima, e a Cruz é suplantada pela Ressurreição. A presença real desaparece por detrás da presença espiritual [26] em cada um de nós, que a Redenção encarregou de revelar (de nos fazer entender).

A teoria dos mistérios de Odon Casel e a teoria do “mistério pascal” podem então ser repostas no âmbito dos mistérios iniciáticos.

“(Tito Lívio) nos descreve de um modo muito impressionante o juramento das jovens recrutas da legião dos Samnitas[27]. O local onde elas eram chamadas a pronunciar seu juramento era cercado por um pano. Como o narra Tito Lívio, esta legião se servia de um antigo rito de consagração (ritu sacramenti) para adotar (initiare) seus novos membros. Todo um dispositivo cultual era empregado: ofereciam-se sacrifícios, pronunciavam-se juramentos sagrados e terríveis, e toda esta encenação tinha antes a aparência de uma iniciação mistagógica que de um juramento militar. Todos estes gestos recordavam ainda mais a consagração dos Mistérios (occultum sacrum), que também eram precedidos de um juramento secreto. É evidente que a palavra sacramentum já tende aqui a tomar o sentido de consagração, de mysterium. Quando, em 186 antes de Jesus Cristo, o Estado romano demandou a interdição dos mistérios de Bacu, o cônsul se levantara contra os mistérios, aproximando-os da prestação do juramento militar, e, nesse intuito, ele se apoiava sobre uma expressão comum a ambos, a de sacramentum. “Vocês acreditam, cidadãos, exclamara ele, que estes jovens que receberam a iniciação dos mistérios (hoc sacramento initiatos) ainda possam se tornar soldados? Aquele que foi introduzido na santidade dos mistérios, que foi santificado por esta consagração à divindade, como ainda ele poderia se devotar à República pelo juramento (sacramentum) do soldado?”[28]. Por seu lado, Apuleio[29] compara o juramento militar à iniciação mistagógica, ao”juramento” (sacramentum) que o mista [30] deve prestar na qualidade de soldado de seu deus.

“Não é difícil ver por qual caminho a palavra sacramentum penetrou na terminologia dos mistérios. Esta é uma via que deveria se tornar da mais elevada importância para a teologia cristã. Já na primeira versão latina da Escritura santa, os cristãos, lá onde eles não mantiveram a palavra grega, reproduziram o termo mysterium (μνστηριον) pelo de sacramentum. Deste modo, todo o significado da expressão grega μνστηριον passou para a palavra sacramentum. A terminologia antiga passava completamente para o cristianismo”[31]. (Odon Casel) [32].

Não há dúvidas de que, para Odon Casel, o pai da “doutrina dos mistérios”, “a ideia teológica provavelmente mais fecunda de nosso século”, de acordo com Joseph Ratzinger, a noção de mistério, vem das iniciações mistéricas – cuja maçonaria reivindica a herança panteísta:

“O Ser de Deus em sua majestade está, portanto, infinitamente acima do mundo, porém ele habita, misericordiosamente, em sua criatura, na humanidade. Por sua natureza, ele ultrapassa infinitamente toda criatura; por sua ubiquidade e sua onipotência, ele penetra todas as coisas.
O mundo antigo já tinha um pressentimento obscuro deste Mistério. Ele pressentia que todo o terrestre era apenas a imagem e a sombra de algum poder e de alguma beleza supra-terrestres. É o sentimento deste mistério que está na origem dos templos sumérios e babilônicos, das pirâmides e das esfinges egípcias. Na Grécia, a sabedoria platônica fala deste mistério divino, e os cultos aos mistérios do período helênico ainda são orientados para ele. Por toda parte se encontra o desejo ardente de fazer o céu descer sobre a terra, de aproximar a humanidade e o divino para uni-los.

O próprio Deus endossara esta profunda nostalgia se revelando ao povo judeu. A lei, certamente, traçava com severidade a linha de demarcação entre Deus e o homem, ela formava como uma cerca em torno da montanha santa sobre a qual Deus tinha estabelecido seu trono. Porém os profetas não encontravam imagens sempre novas para anunciar o reino onde o Senhor teria sua tenda no meio de seu povo, onde seu Espírito preencheria toda carne?” (Odon Casel) [33].

Porém o mistério da divindade do mundo deve ser revelado ao iniciado:

“Traduzindo superficialmente mysterium por ‘mistério’, corremos o risco de nos perdermos, mesmo quando esta última palavra exprime o caráter oculto da verdade divina; porém, ele é verdadeiro, sobretudo quando ele designa claramente a ação de Deus ou a ação cultual. Com efeito, o mysterium não é mais um mistério (ou seja, um segredo) para o mista. O mysterium foi manifestado para ele, mas ele continua um mistério, um segredo inacessível para o infiel. A revelação é realmente um elemento essencial do mysterium, e, para que haja mysterium, é preciso que haja uma revelatio, é preciso que o véu (de Ísis) seja arrancado”. (Odon Casel)[34]

“Na linguagem paulina, “mysterium” significa inicialmente uma ação divina, a realização de um propósito eterno de Deus por uma ação que procede da eternidade de Deus, que se realiza no tempo e no mundo, e que tem seu cumprimento final, seu fim, no próprio Eterno.

Este mysterium pode ser enunciado unicamente na palavra “Christus“, que designa ao mesmo tempo a pessoa do Salvador e seu Corpo místico, que é a Igreja. Por “Christus“, entendemos inicialmente a Encarnação de Deus” (portanto, na pessoa do Salvador e de seu Corpo místico)”. (Odon Casel) [35]

O iniciado deve então dar-se conta de sua divindade, não se contentando mais em saber que ele é Deus, mas vivê-lo e sê-lo verdadeiramente:

“Foi por sua Paixão que o Senhor se tornou[36] Espírito, Pneuma. É por isso que devemos viver com ele, misticamente, sua Paixão. Assim como Cristo se tornou Pneuma por sua paixão física, assim devemos transpor misticamente sua Paixão pelo batismo, compartilhar o Espírito divino, para nos tornarmos homens “espirituais”,pneumatikoi“. (Odon Casel)[37]

“Contemplamos o mistério na gnose da fé. Porém esta não é uma contemplação inativa e ineficaz. Somos transformados por esta contemplação”. (Odon Casel) [38].

Convém notar que esta realização é efetuada somente pela eficácia dos ritos iniciáticos [39], graças ao sacramento que realmente torna presente a realidade santificante: o mysterium foi manifestado ao mista pela ação cultual, o véu foi arrancado, sem nenhum esforço de santificação, sem purificação, sem que a justiça divina tivesse sido satisfeita. Deus realmente se tornou presente por seu sacramento, Cristo; Cristo, pelos seus: a Igreja, a liturgia e sua Palavra; e a Igreja, pelo povo de Deus reunido. Esta revelação dos mistérios, de uma realidade pré-existente, porém encoberta ao “infiel” pela ignorância, este segredo enfim conhecido não pela graça e a santificação, mas somente pela eficácia dos ritos, este conhecimento não passa de gnose. Compreende-se então porque a Redenção não seja “mais satisfação da justiça divina operada por Cristo, mas revelação (e, portanto, conhecimento) última da Aliança eterna que Deus fez com a humanidade, Aliança que nunca foi rompida pelo pecado” [40].

“O órgão dos mistérios é a ação litúrgica; ela é uma cooperação aos atos divinos. Seu resultado é a união com a divindade, a participação na vida divina [...].

Pode-se então definir assim o mistério: uma ação sagrada e cultual, na qual uma obra redentora do passado se torna presente sob um rito determinado; a comunidade cultual, realizando este rito sagrado, participa do fato redentor evocado, e adquiri assim sua própria salvação”. (Odon Casel) [41].

É assim que encontramos por toda parte, sob a pluma de Casel, os grandes temas gnósticos: ódio dos dogmas, do conhecimento racional e da filosofia; gnose (da fé); experiência direta do divino (iluminação). Devemos ainda afirmar fortemente que a “teologia dos mistérios”, sobre a qual a reforma litúrgica se apóia, é uma doutrina panteísta, iniciática e maçônica, em oposição frontal com a verdade revelada.

A SATISFAÇÃO VICÁRIA DE ACORDO COM O CARDEAL RATZINGER[42][43]

“Que lugar a cruz ocupa exatamente na fé em Jesus reconhecido como Cristo? Tal é o problema ao qual nos confrontamos novamente neste artigo do Credo. As reflexões precedentes nos forneceram praticamente todos os elementos para uma resposta; precisamos agora tentar sintetizá-los. A consciência cristã, sobre este ponto, foi amplamente marcada, como já constatamos, por uma apresentação extremamente rudimentar da teologia da satisfação de Anselmo de Cantuária, cuja expusemos as grandes linhas em outro contexto. Para um grandíssimo número de cristãos, e sobretudo para aqueles que conhecem a fé somente de assaz longe, a cruz se situaria no interior de um mecanismo de direito lesado e restabelecido. Este seria o modo cuja justiça de Deus infinitamente ofendida teria sido novamente reconciliada por uma satisfação infinita. Outrossim, a cruz parece exprimir uma atitude de Deus que exige uma equivalência rigorosa entre o “Devo” e o “Ter”; e, ao mesmo tempo, tem-se a sensação de que esta equivalência e esta compensação repousam, apesar de tudo, sobre uma ficção. Inicialmente, dá-se em segredo com a mão esquerda o que se pega solenemente com a mão direita. A “satisfação infinita” que Deus parece exigir toma assim um aspecto duplamente inquietante. Alguns textos de devoção parecem sugerir que a fé cristã na cruz representa um Deus cuja justiça inexorável reclamou um sacrifício humano, o sacrifício de seu próprio Filho. E se se afasta com horror de uma justiça cuja ira sombria retira toda credibilidade da mensagem do amor. 

Tanto esta imagem está difundida, tanto ela é falsa. A Bíblia não apresenta a Cruz como parte de um mecanismo de direito lesado; aí a cruz aparece, bem ao contrário, como a expressão de um amor radical que se doa completamente; este é um acontecimento no qual alguém é o que faz, e faz o que é; ela é a expressão de uma vida totalmente para os outros.[...]

(No Novo Testamento) Não é o homem que se aproxima de Deus para lhe trazer uma oferta compensatória, é Deus que vem ao homem para lhe dar. Pela iniciativa do poder de seu amor, Deus restabelece o direito lesado, justificando o homem injusto por sua misericórdia criadora, revivificando aquele que estava morto. Sua justiça é graça; ela é justiça ativa, que “reajusta” o homem curvado, que o restaura, o torna reto. Tal é a revolução que o cristianismo traz na história das religiões. O Novo Testamento não diz que os homens se reconciliam com Deus, como deveríamos, de fato, esperar, visto que foram eles que cometeram a falta, e não Deus. O Novo Testamento afirma, ao contrário, que é “Deus que, em Cristo, se reconciliava com o mundo” (2 Cor 5, 19). Eis aqui algo realmente inaudito e novo, o ponto de partida da existência cristã e o centro da teologia neo-testamentária da cruz: Deus não espera que os culpados venham por si mesmos se reconciliar com Ele, Ele passa na frente deles e os reconcilia. Nisso se manifesta a verdadeira direção do movimento da encarnação, da cruz. 

Assim, no Novo Testamento, a cruz aparece antes de tudo como um movimento de cima para baixo. Ela não é a obra de reconciliação que a humanidade oferece ao Deus encolerizado, mas a expressão do amor insensato de Deus, que se entrega, que se rebaixa para salvar o homem; ela é sua vinda para junto de nós, e não o inverso. A partir desta revolução na ideia da expiação, e, portanto, no eixo próprio da realidade religiosa, o culto cristão e toda a existência cristã recebem, eles também, uma nova orientação. A adoração no cristianismo consiste inicialmente na grata acolhida da ação salvífica de Deus. É por isso que a expressão essencial do culto cristão se chama justamente Eucaristia, ação de graças.[...]

“Certamente nem tudo ainda foi dito desta forma. Lendo o Novo Testamento do começo ao fim, somos da mesma forma obrigados a nos perguntar se, apesar de tudo, ele não descreve a obra da expiação de Jesus como um sacrifício oferecido ao Pai, se a cruz não é apresentada como o sacrifício oferecido por Cristo a seu Pai, na obediência. Em toda uma série de textos, a cruz aparece como o movimento ascendente da humanidade rumo a Deus, de modo que vemos ressurgir tudo o que acabamos de afastar. Com efeito, apenas com a linha descendente não se pode entender todos os dados do Novo Testamento. Porém, então como conceber a relação entre as duas linhas? Deveremos eliminar uma em favor da outra? E se quiséssemos fazê-lo, qual critério teríamos para justificar nossa escolha? É evidente que não poderíamos proceder assim: isto seria tomar arbitrariamente nossa opinião como critério da fé”. (Cardeal Ratzinger)[44]

Provavelmente não é inútil recordar alguns dos textos desta “série” que o cardeal menciona sem citar nenhum deles[45]:

“Deus o destinou para ser, pelo seu sangue, vítima de propiciação mediante a fé. Assim, ele manifesta a sua justiça; porque no tempo de sua paciência, ele havia deixado sem castigo os pecados anteriores” (Rom 3, 25).

“Se pensamos não ter pecado, nós o declaramos mentiroso e a sua palavra não está em nós” (I Jo 4, 10).

“Ele é a expiação pelos nossos pecados, e não somente pelos nossos, mas também pelos de todo o mundo” (I Jo 2, 2).

“Nesse Filho, pelo seu sangue, temos a Redenção, a remissão dos pecados, segundo as riquezas da sua graça” (Ef 1, 7).

“Sede, pois, imitadores de Deus, como filhos muito amados. Progredi na caridade, segundo o exemplo de Cristo, que nos amou e por nós se entregou a Deus como oferenda e sacrifício de agradável odor” (Ef 5, 1-2).

“Porque há um só Deus e há um só mediador entre Deus e os homens: Jesus Cristo, homem que se entregou como resgate por todos. Tal é o fato, atestado em seu tempo” (I Tim 2, 5-6).
“Aquele que não poupou seu próprio Filho, mas que por todos nós o entregou, como não nos dará também com ele todas as coisas?” (Rom 8, 32)

“Cantavam um cântico novo, dizendo: Tu és digno de receber o livro e de abrir-lhe os selos, porque foste imolado e resgataste para Deus, ao preço de teu sangue, homens de toda tribo, língua, povo e raça” (Ap 5, 9).

Como o cardeal reconcilia sua concepção da Cruz, expurgada de toda dimensão vindicativa, com toda “esta série de textos”?

A satisfação vicária eliminada, o cardeal pode então reinterpretar a Paixão para reduzi-la ao “absoluto do amor”.

“Não são os touros e uns bodes que interessam a Deus, mas o homem; a única adoração verdadeira só pode ser o “sim” incondicional do homem. Tudo pertence a Deus, porém Ele concedeu ao homem a liberdade de dizer “sim” ou “não, de amar ou de recusar; a adesão livre do amor, tal é a única coisa que Deus deva esperar; eis a adoração e o “sacrifício” que sozinhos podem ter um sentido. Ora, este “sim” dado a Deus e pelo qual o homem se restituiu a Deus, não pode ser substituído pelo sangue dos bodes e dos touros. O Evangelho não disse: “E que pode dar o homem em troca de sua própria vida?” (Mc 8, 37). Há apenas uma resposta: nada pode ser dado em compensação do próprio homem.[...]

(Cristo) retirou dos homens suas oferendas para substituí-las por sua própria pessoa, ofertada em sacrifício, seu próprio Eu. Se o texto afirma, apesar de tudo, que Jesus cumpriu a reconciliação por seu sangue (9, 12), este não deve ser entendido como um dom material, como um meio de expiação medido quantitativamente; ele é apenas a expressão concreta do amor cujo é dito que ele vai até o extremo (Jo 13, 1), a expressão da radicalidade de sua doação e de seu serviço; ele traduz o fato de que Cristo não traz nem mais nem menos que ele próprio. O gesto de um amor que dá tudo, eis unicamente o que constitui, segundo a carta aos Hebreus, a verdadeira reconciliação do mundo. É por isso que “a hora” da cruz é o dia da reconciliação cósmica, a verdadeira e definitiva reconciliação. Não há mais outro culto, não há mais outro sacerdote senão aquele que oferece este culto: Jesus Cristo.

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