quarta-feira, 20 de março de 2013

Teologia cristã e dificuldades insolúveis

Segunda-feira durante a aula de Introdução ao Direito tive um momento de discussão com meu professor.



Ele afirmava convictamente que se Deus fosse onisciente, nós perderíamos todo nosso livre-arbítrio, a afirmação um tanto equivocada procedeu e ninguém se manifestou.

Questionei-o que por Deus ser onisciente não tira o nosso livre-arbítrio, pois da mesma forma que a previsão do tempo prevê a chuva, ela não é a causadora da chuva.

Para melhor esclarecer, publico uma carta do Professor Orlando Fedeli que rebateu magistralmente esses argumentos falaciosos.



Descrição: http://www.montfort.org.br/old/imagem/classif.gifDescrição: http://www.montfort.org.br/old/imagem/classif.gifDescrição: http://www.montfort.org.br/old/imagem/classif.gif Teologia cristã e dificuldades insolúveis
PERGUNTA
Nome:
Viviane Mosé
Enviada em:
26/05/2009
Local:
Salvador - BA, Brasil
Religião:
Ateu




Olá.


Gostaria de saber como a teologia cristã lida com as seguintes questões.
Peço que não lance mão do "Tal é a vontade de Deus".

1. Se Deus é onisciente, então sabe eternamente que o homem pecará e não é possível compreender que o puna por aquilo que, de antemão, sabe que ele fará.

2. Se Deus é onipotente e infinitamente bom, como explicar a existência do mal, isto é, como uma causa infinitamente boa pode dar origem à sua negação?

3. Se Deus possui infinita liberdade para escolher o melhor, por que, entre todos os mundos possíveis, escolheu este?

4. Se Deus não cessa de intervir sobre o mundo (como atestam os milagres), por que deixa que os bons sofram e os maus sejam felizes?

5. Se Deus é plenitude infinita, que necessidade teria de criar um mundo finito e imperfeito?

6. Se Deus é puro espírito e se uma causa só pode produzir um efeito de mesma natureza que ela, como explicar a origem da matéria?

RESPOSTA


Muito prezada Viviane,

Salve Maria. 

     Você me põe dificuldades que você julga “insolúveis”. E me exige que não argumente com base na afirmação de que “tal é a vontade de Deus”.

     Com gosto lhe respondo, ou melhor, lhe repito explicações já dadas no site Montfort, respondendo a essas mesmas questões “insolúveis” para um “ateu” como você me diz que é.

     Compreendo bem que para um ateu como você, essas questões sejam “insolúveis”.
     Vamos, pois, à solução delas.      
     Pergunta-me você:
       
“1. Se Deus é onisciente, então sabe eternamente que o homem pecará e não é possível compreender que o puna por aquilo que, de antemão, sabe que ele fará”.
       
     Deus criou o homem livre — com liberdade psicológica --, chamada também de livre arbítrio.
     Você, por exemplo, livremente se diz “ateu”. Você escolheu essa posição doutrinaria livremente.
     Por que Deus criou o homem livre?
     Porque só se pode premiar quem é livre. Não se pode premiar uma cadeira pelo fato de que ela nunca saiu do lugar em que a colocaram numa sala. Só se pode premiar quem escolhe e faz o bem livremente.
     Então Deus criou seres inteligentes e livres para que Ele pudesse premiá-los.
     Ora, sendo os anjos e os homens livres, eles podem fazer o bem ou deixar de fazê-lo (omissão) ou fazer o contrário do bem (o pecado) livremente. Aos que fazem livremente o bem, Ele dará prêmio. Aos que livremente pecam, Ele dará castigo.
     Você argumenta ainda que, sendo Deus onisciente, Ele sabe eternamente quem pecará. E sugere que Deus não deveria criar esses homens, que Ele sabe que pecarão. 
 Já respondi a esse sofisma muitas vezes. Repito a explicação, porque, se lhe pedir que você procure as explicações que já dei sobre isso, você livremente deixará de procurá-las. Então livremente as respondo de novo.

a) O fato de que Deus conhece eternamente tudo, não significa que Ele conhece antecipadamente o que o homem livremente vai escolher, pois Deus não está no tempo. Deus tudo sabe no agora eterno em que Ele existe.
       
b) O saber eterno de Deus não é a causa do agir livre do homem no tempo. É a ação livre do homem que produz o conhecimento de Deus.

    Assim como um professor conhece, desde o primeiro dia de aula, que um aluno está fraco em certa matéria ou que não tem capacidade de aprendê-la, ou outro que é vagabundo e não quer aprendê-la, ainda que o professor se esforce por ajudar esse alunos, eles tomarão bomba – serão reprovados--, ou porque não têm competência ou por não quererem estudar. Não é o saber antecipado do professor (que está no tempo) que vai causar a reprovação do aluno. Será o oposto: esses alunos serão reprovados por culpa própria.

c) Dou-lhe ainda outra explicação:

   Na equação x = 3.y, o valor de x variará conforme o valor de y.

    Se y = 1, x valerá 3
    Se y = 2, x valerá 6
    Se y valer 3, x valerá 9 e etc.
    Nessa equação, x será a variável dependente de y. Y será a variável independente.
    Assim também, o saber eterno de Deus é a variável dependente, enquanto a ação livre do homem é a variável livre, independente.

d) Dou-lhe mais um argumento:

Se estamos no alto de um monte, e vemos um cego caminhando para um abismo, sabemos que, se ele continuar em sua caminhada, ele irá cair no abismo e que vai morrer. Nós gritamos ao cego que ele pare, porque há um abismo mais adiante à sua frente,
Se o cego recusar atender a nosso aviso, e continuar a caminhar na mesma direção, ele cairá no abismo e morrerá. Mas não morrerá porque sabíamos do fim que ele ia ter. Ele livremente quis continuar em sua marcha em direção ao abismo, e ele quis isso livremente, apesar de nossos avisos.
Assim também, Deus a avisa continuamente para deixar de ser atéia. Caso você não mude, sofrerá as consequências de sua livre escolha.

     Sua segunda pergunta “insolúvel” é:

“2. Se Deus é onipotente e infinitamente bom, como explicar a existência do mal, isto é, como uma causa infinitamente boa pode dar origem à sua negação?”

     Deus é bom e tudo o que existe, enquanto ser, é bom.
     Existir é um bem. Se o mal existisse, enquanto ser, ele teria o bem da existência. Logo não seria mau substantivamente.
     Por isso, se lê na Sagrada Escritura que Deus viu que todas as coisas que Ele fez eram boas, e que o conjunto do que Ele fez era “muito bom” (valde bona).
     O mal então não existe como ser.
     Mal é a falta de existência do que devia existir ou a falta de ordem.
     Assim, se me falta um braço, isso é um mal. Para o homem, não ter asas não é um mal, porque a natureza humana não exige ter asas. Isso é um mal para uma gaivota.
     Mal é a falta de ser. O mal não é ser. O mal não é metafísico. Não é ontológico. O mal, como coisa, como ser, não existe.
     Pode haver mal como falta de ordem.
     Assim, se tenho uma orelha no meio de minha fronte, isso será um mal. Se o veneno da cobra estiver em minhas veias, isso será um mal para mim. Mas, o veneno da cobra, na boca da cobra, não é um mal, mas um bem porque lhe serve de defesa. Como coisa, esse veneno pode ser bem usado, por exemplo, como vacina.
     O que pode existir é o mal moral, isto é podem existir ações más. E ações não são substantivos. São verbos. Verbo é a palavra que indica uma ação e não uma substância.
     Assim, roubar é um mal moral. É uma ação má. Assassinar é pecado, porque é uma ação má.
     Agir mal é inverter a ordem dos bens. Por exemplo: o que é roubar?
     Roubar é amar mais o dinheiro (bem menor) do que a justiça (bem maior).
     O ladrão coloca o dinheiro acima da justiça,

                   Dinheiro $ (bem menor)
Roubar =   --------------------------------------
                     Justiça (Bem Maior)

     Por isso roubar, isto é, pegar o que é dos outros, não pagar o que se deve, não pagar o que se prometeu pagar, é pecado.          
     O ladrão é mau moralmente. Mas, enquanto homem ele, por ter um corpo bom, saudável, forte, por ter uma alma inteligente (e isso é bom) ele é bom como ser. Mas é mau moralmente, por suas ações.
     Portanto, Deus nada fez de mal. Ele tira do mal moral um bem. Por exemplo, até de perguntas sofísticas, Deus tira um bem: a explicação que estou dando, que lhe poderá fazer bem, caso você as aceite livremente. Ademais, outros leitores poderão bem aproveitar respostas boas para perguntas más.

     Vamos, então, à sua terceira pergunta – que não é má. E é até bem útil:

“ 3. Se Deus possui infinita liberdade para escolher o melhor, por que, entre todos os mundos possíveis, escolheu este?”

     Deus fez este mundo à sua imagem e semelhança, para que através das qualidades das coisas criadas compreendêssemos suas qualidades em grau infinito.
     Deus poderia criar muitos outros mundos. Criou este, porque, como bom mestre, escolhe os melhores meios para fazer compreender o que Ele quis nos ensinar. Não se multiplicam ações desnecessárias, mas apenas as convenientes e suficiente para o fim almejado.

    E agora sua quarta pergunta – um pergunta bem velha e não “insolúvel”, pois que Deus a respondeu nos Salmaos e no livro de Jó.

4. Se Deus não cessa de intervir sobre o mundo (como atestam os milagres), por que deixa que os bons sofram e os maus sejam felizes?

    Sendo Deus bom e justo, Ele deve premiar todo bem que o homem faz livremente.

    Ora, até gente assassina pode fazer algum bem natural, como por exemplo, cuidar da mãe na velhice. Deus então precisa premiar esse bem. Vendo que a pessoa má não vai se emendar, Deus então recompensa os bens materiais que os maus fazem dando-lhe saúde, vida longa e dinheiro nesta vida. Pelo contrário, Deus dá dores e cruzes para os bons, para que eles sofram já na terra o castigo de seus pecados, a fim de premiá-los com o bem eterno na outra vida. Deus dá cruzes aos bons como penitência, para lhes dar a recompensa na outra vida.

     Por isso, os bons sofrem dores e humilhações nesta vida e os maus na outra vida.
     Cristo sofreu. Nero gozou e teve fama...
     Mas... Na outra vida...
     Além disso, os bons sofrem por amor às almas dos maus para que se emendem, porque o amor se vê na capacidade de sofrer por amor do outro.
     Quem é mau tem ódio do bem, tem inveja do homem bom, e, por ódio o acusa caluniosamente. Podendo, o escarnece, difama e humilha, como os fariseus fizeram com Jesus.

     Quinta pergunta “insolúvel”:

“5. Se Deus é plenitude infinita, que necessidade teria de criar um mundo finito e imperfeito?”

     Deus nada criou por “necessidade".
     Deus criou tudo por amor.
     Deus não podia criar outro ser infinito. Necessariamente a criatura tinha que ser finita.
     Deus não pode criar outro Deus, porque este segundo seria criado. Portanto inferior a seu Criador.
     Perfeito significa completo, acabado. Deus tudo fez perfeito. Os defeitos são causados pelo homem.
     Perfeito absoluto só pode ser Deus. Deus não pode fazer outro ser absoluto igual a Ele mesmo, pois que, como já disse, esse Absoluto criado seria menos que o absoluto criador.

     Finalmente sua última pergunta “insolúvel”:

“6. Se Deus é puro espírito e se uma causa só pode produzir um efeito de mesma natureza que ela, como explicar a origem da matéria?”

     Como ficou provado anteriormente, Deus só poderia fazer criaturas finitas, portanto menos que ele mesmo enquanto ser. Deus como causa de tudo tinha que fazer criaturas finitas, mas semelhantes a Ele mesmo.
     E Ele fez o universo com seres puramente espirituais (os anjos) puros espíritos como Deus, mas finitos; depois fez os homens, inferiores aos anjos, porque os homens embora tenham alma espiritual têm um corpo animal; por isso fez animais que se movem por instinto, e não pensam; a seguir fez os vegetais que tem vida, mas não instintos e nem movimento; por fim fez os minerais que apenas existem, como pura matéria.
     Como você vê minha cara Viviane, o universo possui desde seres puramente espirituais (os anjos) até seres puramente materiais (as pedras). Há, pois, no universo, uma gama ordenada de seres que refletem a Deus em graus diversos:
·        Os minerais refletem analogicamente apenas a existência de Deus;
·        Os vegetais refletem analogicamente a existência e a vida de Deus;
·        Os animais além da existência e da vida refletem analogicamente a capacidade de agir de Deus;
·        Os homens refletem analogicamente a existência, a vida, a capacidade de agir e a capacidade de conhecer e de amar de Deus Criador;
·        Finalmente os anjos refletem a existência, a vida, a ação, o conhecer e o amor de Deus, sua essência puramente espiritual, mas de modo finito.
     Deus então criou todas as coisas desde um pedregulho até o sol. Desde uma formiga até o elefante. Do grão de areia até a Virgem Maria. E tudo fala dEle. Por isso é preciso compreender o canto das criaturas.
     E criou também a nós dois. Você para me por perguntas “insolúveis”. E a mim, velho professor cansado, mas ainda e sempre pronto para a luta, para procurar lhe ajudar, respondendo com paciência e com meu pouco saber às perguntas que lhe pareciam insolúveis. E por isso também Deus seja louvado que nos fez com boca para falar, e com ouvido para ouvir.
     Que Deus a faça então bem ouvir, e que a converta. E a mim que me ajude a bem responder, para que faça o bem que me for possível. E seja Deus sempre louvado por todo o bem que existe e que Ele só faz.

In Corde Jesu, semper,

Orlando Fedeli




FONTE: MONTFORT

Pauperismo: a velha humildade herética — e o momento atual



          “O católico que
coloca questões
políticas à frente das
 doutrinais é o sujeito
que concedeu
indulgência plenária
à sua própria
estupidez”.


Sidney Silveira

A exibição histriônica da humildade deixa,
 ipso facto, de ser humildade. Isto pelo simples fato de que a humildade é, antes e acima de tudo, o ato interior da vontade pelo qual alguém refreia o afã de ser louvado e reconhecido, ao mesmo tempo em que se imbui de um notável espírito de serviço. Mas aqui vem a pergunta decisiva: qualquer serviço? Não. Um milhão de vezes, não! Os demônios, por exemplo, servem a Lúcifer — o superior deles na hierarquia satânica — não porque sejam humildes, pois, como ensina Santo Tomás, a obediência de uns a outros é tirânica. Em suma, entre os demônios a concórdia na maldade não procede da amizade, a qual pressupõe o amor que lhes falta, nem do espírito de humildade, mas do seu ódio aos homens e à justiça divina.[1] A coincidência deles no mal se dá por meio de uma agônica submissão dos menos poderosos aos mais poderosos.

Ratifiquemos tudo isso com poucas palavras:
 nem todo servir é humildade. Há um servir que é soberba pura, cupidez, engano, vontade de poder e de supremacia despótica sobre as demais pessoas. Vamos a um exemplo simples: quando comparsas obedecem ao chefe da quadrilha, o seu serviço nada tem de humilde, nem denota amizade ao líder: ele provém do maldoso desejo comum de obter bens de maneira ilícita, contrária à ordem da justiça. Aqui não existe o despojamento espiritual que caracteriza a humildade, muito menos o fim bom que a especifica, moralmente. Em síntese, a humildade é para o bem, por bem e com o bem, daí ser a rainha das virtudes cristãs, do ponto de vista da razão prática. Ademais, ela se baseia na submissão a Deus e no reconhecimento da nossa absoluta miséria perante o Altíssimo. Não é o caso de desenvolver neste breve texto o tema, mas deixemos registrado que um ateu humilde é mera contradictio in terminis, porque lhe faltam os motivos conformadores da humildade.

Estabelecido, pois, o princípio de que a humildade é um
 ato interior que radica na vontade, e de que nem todo serviçal é humilde, falemos agora de uma antiga forma de macaquear ou distorcer a humildade: associá-la exageradamente à pobreza material e ao serviço aos pobres. Essa velha heresia tem um nome: pauperismo. Foi condenada pelo Magistério da Igreja, e com toda razão. Segundo os seus propugnadores, a pobreza é o sinal distintivo da virtude evangélica, não sendo lícito possuir nenhum (!) bem material próprio, como também bens comunitários. Tal doutrina possui um viés notadamente gnóstico — ou seja, de aversão à matéria, como se esta fosse a distinção ontológica do mal —, e não por outro motivo foi pregada entre cátaros, valdenses, e “espirituais” franciscanos que, na Idade Média, fizeram de tudo para destruir a autoridade do Papa e, por conseguinte, a força do Papado.

Imbuídos dessa falsa humildade que encobria a mais insana soberba, tais homens tentaram corroer os alicerces doutrinais da Igreja com incrível pertinácia, sempre lançando mão de astuciosos sofismas. O Papa João XXII, que a propósito canonizara Santo Tomás de Aquino, pôs fim aos exageros pauperísticos desses fanáticos
 fraticelli, ao condenar a sua posição como herética e totalmente contrária à verdadeira pobreza evangélica — a qual é voluntária, sim, mas jamais absoluta. Em verdade, esses fraticelli não eram animados por nenhum espírito fraternal, pois trabalhavam para matar um dos princípios que transformam em irmãos os homens marcados pela fé em Cristo: a obediência à autoridade do Magistério tradicional da Igreja. Eram, na prática, fratricidas espirituais que procuravam transformar um conselho evangélico em preceito, fazer dele um “dogma” fundamental, entre outras coisas porque eram estrondosos analfabetos teológicos.

Passados seis séculos e meio daquele período agitado em que se inicia o longo declínio da Cristandade, a chamada “opção preferencial pelos pobres” foi a expressão eufemística com a qual esta antiga heresia renasceu camuflada, no final da década de 60 do século passado, com o verniz do marxismo e o mesmíssimo ódio à autoridade (magisterial e jurídica) do Vigário de Cristo — assim como movida por uma ojeriza invencível ao caráter monárquico e hierocrático do Papado. Tratava-se, tanto na Idade Média como na época imediatamente posterior ao Concílio Vaticano II, de uma
 verdadeira sedição empacotada em formato de má-teologia, ou melhor: de diabolice com fumos de sabedoria teológica. Era o surgimento da funesta Teologia da Libertação (TL), direta ou indiretamente incentivada por clérigos vaticano-secundistas. Aqui não nos custa lembrar que Joseph Ratzinger patrocinou a publicação da tese de doutoramento de Leonardo Boff... Será que Ratzinger via hegelianamente em Boff um teólogo de futuro?

A disseminação desse joio marxista com o incentivo de homens influentes da própria Igreja passou despercebida pelos tolos e pelos “otimistas”, que sempre servem de fermento para as revoluções. A propósito, no caso do catolicismo, os otimistas cegos são adeptos do esporte radical de cair das nuvens: não dominando bem os princípios, são facilmente manipuláveis por quem os queira deturpar, e depois se mostram “chocados” — com ar de donzela  violentada — quando não dá mais para sustentar a sua cegueira voluntária. São massa de manobra bastante útil para o andamento da revolução que, há cinqüenta anos, vem autodemolindo a Igreja. É o caso de pessoas que, a esta altura dos acontecimentos, ainda acreditam no conto da Carochinha chamadohermenêutica da continuidade, e se recusam a enxergar que a desgraça atual está essencialmente ligada aos falsos princípios que inspiraram os textos do Concílio Vaticano II.

São exatamente estes
 católicos deveras tolerantes para com os desvios e as imprecisões doutrinais que parecem não enxergar a hidra marxista da TL, por trás do discurso do Papa Francisco a favor de uma Igreja pobre e para os pobres.

A estes, vale lembrar algo que deveria ser óbvio:
Ø  Não é papel da Igreja resolver o problema da pobreza no mundo. A função dela é salvar as almas, valendo-se para tanto dos seus carismas, do seu ministério, do seu Magistério, dos sacramentos, etc. É claro que os conflitos sociais e a injustiça tendem a ser minorados numa sociedade que aceita o Evangelho, mas isto nada tem a ver com a instituição de uma Igreja pobre e para os pobres.
Convém, ao contrário, que a Igreja seja institucionalmente rica e politicamente poderosa, para que não lhe faltem meios materiais para o exercício de seu múnus salvífico, e para que ela não seja constrangida pelos poderosos do mundo em sua atuação. A propósito, quando Platão — a certa altura da República — nos diz que, numa sociedade ideal, é conveniente a riqueza estar nas mãos de homens devotados às coisas do espírito (referindo-se ali aos filósofos), e não com homens cúpidos, ímpios ou aproveitadores, nos aponta o seguinte: mesmo o antigo paganismo tinha noção da hierarquia dos bens a ser custodiados, para que os alicerces sociais se mantenham de pé.

Portanto, não confundamos Cristo com Barrabás. A revolução de Cristo faz os Santos; a revolução de Barrabás faz os Stálins. Ademais,
 não sendo a pobreza em si um mal, nem muito menos um empecilho à salvação (o Evangelho inclusive nos aconselha a ela, para melhor seguimento de Cristo), é flagrante contra-senso pensar que a Igreja deva ser para os pobres. Ora, muito mais do que para os necessitados materiais, o seu trabalho deve voltar-se para os necessitados espirituais. É claro que isto não exclui o fato de que ela possa incentivar a criação de irmandades voltadas ao auxílio aos pobres, como sempre o fez, mas constranger ou reduzir a isto o seu papel é aberração, pura e simples.
A pobreza só é indigna fora dos princípios cristãos.

Francisco, o humilde “Papa dos pobres”?
Agora, muitas dessas pessoas que têm o hábito de se precipitar das nuvens estão se dizendo “chocadas” com o ecumenismo do Cardeal Bergoglio, eleito Papa Francisco; dizem-se temerosas de que a sua salada litúrgica, tão contrária à sacralidade, e tão ao estilo pós-conciliar, tome conta de Roma; escandalizam-se com a sua declarada intenção de que a Igreja seja pobre e para os pobres; com o seu constrangimento em dar bênçãos públicas, para não ferir a consciência dos não-católicos, como na ocasião em que agradeceu aos jornalistas que cobriram o Conclave, sem contudo deixar de lhes dizer que, crendo ou não, “todos são filhos de Deus” (até então, éramos filhos de Deus porque irmãos em Cristo, mas a nova fraternidade à moda da Revolução Francesa excluiu a filiação adotiva, a qual antes assumíamos apenas ao aceitar Nosso Senhor e Sua Igreja); etc.  

Não conseguem ver a perfeita linha de continuidade entre todos os Papas conciliares, que culmina no atual. Este, em pouquíssimo tempo de pontificado, já mostrou a que veio, e o mundo começa a amá-lo, a “adorá-lo”. E não por menos: trata-se do homem flagrantemente ecumênico na cúpula da Igreja, como o mundo quer; do homem que, alegando humildade, dispensa até os tradicionais paramentos papais e os chama de... carnavalescos! Do homem que é “humilde” porque anda de ônibus, cozinha a própria comida e caminha entre o povo. Ó, humildade, flor das virtudes cristãs, a que arremedo de si mesma te reduziram?

A propósito, ao ler por estes dias no
 Frates in Unum (e depois checar com outras fontes) as palavras que o Papa Francisco dirigiu, diante de algumas testemunhas, ao cerimoniário pontifício Mons. Guido Marini, enfatizando que “o tempo do carnaval acabou”, referindo-se aos paramentos tradicionais, não pude evitar as lágrimas, e foram muitas, muitíssimas. Mas não foram lágrimas de quem foi pego de surpresa, e sim de quem vê o caos instaurado de forma humanamente impossível de reverter — embora de Deus sempre possamos esperar o milagre de reapostolicizar a hierarquia eclesiástica, fazê-la perder os pruridos diplomáticos e as susceptibilidades baseadas na “liberdade de consciência”.

Os católicos tradicionais — chamados de “tradicionalistas” por seus detratores liberais — precisarão de uma dose suplementar de heroísmo para não sucumbir ao tsunami que desponta no horizonte. A hora é de provação. Serão inculpados ou acusados de ferir a “unidade” da Igreja, e em geral os acusadores serão pessoas que mal leram um manual de teologia (quanto mais o Magistério e os Santos Doutores), e por isso ignoram que
 a unidade cristã só se dá na integralidade da fé. Serão caluniados por pessoas que acham que a defesa de artigos da lei natural (como as questões relativas ao aborto, etc.) basta para a unidade cristã, visto considerarem o aspecto político em primeiro lugar. Ocorre o seguinte: o católico que coloca questões políticas à frente das doutrinais é o sujeito que concedeu indulgência plenária à sua própria estupidez; dele poderíamos dizer shakespearianamente que faz da ignorância a melhor defesa. Mas não lhe respondamos; o melhor é calar perante quem confunde solidariedade com caridade, politicagem com esperança e opinião pessoal com fé.

Pois bem. Ao contrário do que pensavam Kierkegaard e Karl Barth,
 a fé não é um salto no absurdo, mas sim um salto na mais ofuscante luz, como dizia o Pe. Penido, eminente tomista brasileiro. E essa luz não é outra senão a da cruz. Ad lucem per crucem: a caminho da luz, pela cruz. Este é o dístico do cristão, que nada tem de bandeira ideológica ou política. E, num momento como o atual, ele deve ser o guia maior para os que amam a Igreja e a vêem tão dramaticamente desrespeitada. E não apenas pelo mundo, mas pelas próprias autoridades eclesiásticas.

Aos amigos tradicionais que porventura se sentirem constrangidos pelas difamações e detrações que, a partir de agora, hão de se multiplicar, entre as quais o doce apelido de "sedevacantista prático" é o mínimo, vale o conselho:
 lancem em rosto dos acusadores o “dogma” por eles defendido (implícita ou explicitamente) da intocabilidade da consciência individual. Esta mesma que o recém-eleito Papa Francisco tanto demonstra respeitar nos ateus, nos não-católicos e nos adeptos de outras religiões.

Mostrem a eles que vocês não podem contrariar as suas consciências católicas, pois a isto seria preferível a morte.
_______________________________________
1- Cfme. Tomás de Aquino, Suma Teológica, I, q.109.
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