terça-feira, 18 de março de 2014

‘Atualidade da Pascendi - a hidra modernista ainda vive’, por Dom Bernard Tissier de Mallerais


A fé, para os modernistas, é a emanação da necessidade religiosa ou a expressão da experiência religiosa do crente.

Depois, na segunda etapa, a fé vai “objetivizar”, perdoem-me o barbarismo, e concretizar sua experiência subjetiva mediante símbolos imaginados, que são os relatos evangélicos.

A tese: o personalismo de Emmanuel Mounier foi a ferramenta que faltou a Lamennais no século XIX para introduzir a liberdade de culto no cristianismo. Quis Lamennais introduzir a liberdade de culto na doutrina cristã. Por essa razão, ele foi condenado em 1832 pela encíclica Mirari vos, de Gregório XVI. Diz Yves Congar: Por quê? Porque Lamennais não conhecia, não tinha a ferramenta que Emmanuel Mounier forneceria um século depois: o personalismo. Faltou-lhe a ferramenta necessária para introduzir a liberdade de culto no catolicismo. Antítese: basta utilizar hoje essa ferramenta, purificando e corrigindo esse valor da liberdade religiosa, valor de dois séculos de cultura liberal, como dizia Joseph Ratzinger em 1984.

      Não se fará apoiar a liberdade religiosa na verdade do culto, afirmando que somente a verdadeira religião tem direito à liberdade, mas sim no sólido fundamento da dignidade da pessoa humana, sobre “a verdade da pessoa”, como dizia João Paulo II na Veritatis Splendor, n. 40.Ratzinger: “O Vaticano II, felizmente, ultrapassou o plano da polêmica e traçou um quadro completo e positivo da posição da Igreja a respeito do sacerdócio, no qual foram igualmente acolhidas as petições da Reforma” (Os Princípios da Teologia, p. 279). Vocês entenderam bem: as petições da “Reforma” protestante, que via o padre como o homem da palavra de Deus, da pregação do Evangelho, e ponto.

Assim, diz Joseph Ratzinger, “a totalidade do problema do sacerdócio se reduz, em última análise, à questão do poder de ensinar na Igreja, de maneira geral” (Os Princípios..., p. 279). Ele reduz, desse modo, todo o sacerdócio ao poder de ensinar na Igreja. Não vai negar o sacrifício; apenas diz: “tudo se reduz ao poder de ensinar na Igreja.” Logo, a própria oferenda da missa pelo padre deve ser relida numa perspectiva de ensinamento da palavra de Deus. É necessário reinterpretar o sacerdócio, o sacrifício mesmo, a consagração mesma: isso não é nada mais que a celebração dos grandes feitos de Cristo, sua encarnação, sua paixão, sua ressurreição, sua ascensão, vividos em comum, sob a presidência do padre. O sacerdócio foi reinterpretado. O padre tornou-se o animador da celebração e da vivência comunitária da fé. Isso foi apenas um parêntese para lhes mostrar como as idéias de Joseph Ratzinger de 1967 foram efetivamente aplicadas no Concílio Vaticano II, porque é o que encontramos no decreto sobre o sacerdócio.

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“Ainda que não se consiga alcançar a via de aceitação de Deus, dever-se-ia tentar viver e conduzir a vida como se Deus existisse” (Conferência em Subiaco, 1° de abril de 2005, pouco antes de ser eleito Papa BENTO XVI).



‘Atualidade da Pascendi - a hidra modernista ainda vive’, por Dom Bernard Tissier de Mallerais


Atualidade da Pascendi:

a hidra modernista ainda vive*



Dom Bernard Tissier de Mallerais


Senhoras e senhores, caros fiéis católicos,

Vocês vieram ouvir a voz do magistério da Igreja através de São Pio X, na sua encíclicaPascendi.

No dia 8 de setembro de 1907, ou seja, há cem anos, o Papa São Pio X, em acurada análise, condenou na encíclica Pascendi uma heresia nova e singular. Essa heresia não consistia, como as precedentes, em negar tal ou qual verdade de Fé, em escolher uma ou outra dentre as verdades em que se deve crer (pois a palavra heresia, em grego, significa “escolher”); mas o modernismo era uma heresia que consistia em transformar e perverter a própria noção da fé. “Não foi nos galhos e nos ramos”, diz São Pio X, “que os modernistas desferiram seu machado, mas na raiz mesma, ou seja, na fé e nas suas fibras mais profundas” (Pascendi, n. 1).

O objetivo de minha breve exposição é mostrar-lhes, primeiramente, as origens do modernismo. Em seguida, veremos o modernismo tal como São Pio X o condenou. Depois, as implicações atuais do modernismo, especialmente a exegese, o historicismo, isto é, a evolução do dogma, e, por fim, a revisão e releitura moderna dos grandes dogmas da encarnação, da redenção e de Cristo Rei. Será uma exposição a um só tempo histórica e muito atual, e creio que tratarei antes da atualidade do modernismo do que da atualidade da Pascendi.


Sumário


1. A origem do modernismo
1.1. Kant: A negação da realidade dos entes
1.2. Kant professa a incognoscibilidade dos entes imateriais
1.3. A ruína do princípio de causalidade, da teodicéia
1.4. A aplicação à moral: negada a finalidade sobrenatural, Deus torna-se um acréscimo à moral

2. O modernismo tal como São Pio X o condenou
2.1. São Pio X desvenda os dois princípios de Kant que estão na raiz do modernismo
2.2. O imanentismo da fé modernista
2.3. O duplo movimento da fé modernista: de dentro (criação vital) em direção ao símbolo e, em sentido inverso, do símbolo-dogma em direção à interpretação vital
2.4. A essência do modernismo: os dogmas são apenas símbolos
2.5. A invenção modernista: o Jesus da história e o Cristo da fé
2.6. Aplicação de Husserl à fé: o real revelado é esvaziado e substituído pela vivência da fé
2.7. O modernista afasta-se da realidade para apreender seus problemas psicológicos através dos símbolos

3. Em três artigos de fé, Ratzinger nega a realidade do mistério
3.1. “desceu aos infernos”: o símbolo do abandono moderno pela ausência de Deus
3.2. “ressuscitou dos mortos”: a reanimação do Corpo de Jesus substituída pela sobrevida através do amor
3.3 “subiu aos céus”: a ascensão no cosmos reduzida a um lugar psicológico

4. O método modernista em Ratzinger-Bento XVI: hermenêutica e historicismo
4.1. A ocultação da realidade física do mistério por Ratzinger, ignorando-se o sentido literal
4.2. O recente Jesus de Nazaré de Bento XVI afirma a noção de evolução na interpretação das Sagradas Escrituras
4.3. A exegese torna-se uma arte hermenêutica que reduz os fatos fabulosos a fenômenos psicológicos
4.4. Joseph Ratzinger se inspira em Dilthey, o pai da hermenêutica e do historicismo
4.5. O discurso de Bento XVI de 22 de dezembro de 2005: ilustração do historicismo e da hermenêutica

5. Ratzinger aplica o método modernista a três dogmas: encarnação, redenção e Cristo Rei
5.1. O dogma da encarnação reinterpretado por Ratzinger à luz do existencialismo de Heidegger
5.2. O dogma da redenção revisto por Ratzinger segundo a dialética de Hegel e o existencialismo de Gabriel Marcel
5.2.1. Santo Anselmo vê na cruz um sacrifício expiatório
5.2.2. Negação do sacrifício da cruz nos dias de hoje
5.2.3. A cruz transforma-se: Jesus amou por nós
5.2.4. A cruz torna-se mera exemplaridade
5.2.5. A cruz é desmaterializada, torna-se uma idéia platônica; Jesus é descrucificado
5.2.6. O sacerdócio é reduzido ao poder de ensinar
5.3. A realeza política e social de Nosso Senhor Jesus Cristo revista por Ratzinger a partir do personalismo de Emmanuel Mounier

6. Conclusão: um supermodernismo cético: os dogmas são apenas símbolos para Ratzinger
6.1. O Deus de Emmanuel Kant
6.2. O Deus de Kant é o Deus de Ratzinger


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1. A ORIGEM DO MODERNISMO

Podemos dizer que a origem do modernismo foi o agnosticismo kantiano. A origem da fé subjetiva dos modernistas foi o agnosticismo (incognoscibilidade), professado já na Idade Média por Guilherme de Ockham (1280-1349), depois, na época moderna, por David Hume (1711-1776), e sistematizado por Emmanuel Kant (1724-1804).



1.1. Kant: A negação da realidade dos entes

Para o filósofo de Königsberg, na Prússia oriental, e contemporâneo de Jean-Jacques Rousseau, as nossas idéias gerais, nossos princípios não obtêm sua necessidade da natureza das coisas, a qual é incognoscível (a inteligência é incapaz de conhecer a natureza das coisas; não pode conhecer o que é um gato, o que é um cão, o que é o homem).
Donde vêm nossas idéias gerais e necessárias? Vêm da razão somente, e não das coisas. Vêm da nossa razão e das suas categorias subjetivas inatas. Por exemplo, a idéia de substância, a idéia de causa são categorias subjetivas da minha inteligência, e não gêneros do ente real. A razão sozinha estrutura o real e lhe dá inteligibilidade.
Se podemos compreender uma coisa, não é porque ela é inteligível, mas porque a estruturamos, a fazemos entrar nos esquemas das nossas categorias subjetivas. É preciso dizer que a ciência física moderna seguiu esse idealismo com sucesso, sustentando que o mundo físico permanece opaco para a razão; que nós não podemos conhecer a natureza ou o sentido das coisas; que não podemos ter senão representações matemáticas do mundo físico, ou simbólicas, com noções de energia, ondas e coisas assim, que são símbolos matemáticos.
E não possuímos senão teorias científicas aproximadas, jamais adequadas ao real e sempre perfectíveis. Vejam, pois, o sucesso de Kant na ordem das ciências físicas. O mal está em que se desejará aplicar isso à filosofia e à religião.



1.2. Kant professa a incognoscibilidade dos entes imateriais

Kant não percebe que os entes reais, a essência das coisas, por exemplo, ou então o próprio ser, ou ainda o Ente Primeiro, a causa primeira, Kant não percebe que essas realidades são, ao contrário, supremamente inteligíveis em si mesmas, e tanto mais inteligíveis quanto mais imateriais. A conseqüência dessa incognoscibilidade, que se chama também agnosticismo (não podemos conhecer o ser das coisas, não podemos conhecer o ente como tal, o que chamamos ente enquanto ente, aquilo que existe, não podemos conhecê-lo, diz Kant), a conseqüência dessa incognoscibilidade consiste nisto: a analogia do ser é indecifrável. Não há entre os entes reais uma relação de analogia que possa ajudar a raciocinar de um a outro.



1.3. A ruína do princípio de causalidade, da teodicéia

O princípio de causalidade (todo efeito se explica por uma causa) igualmente não possui nenhum valor metafísico, isto é, ontológico, de modo que qualquer analogia entre as criaturas e o Ente Primeiro, o Criador, é incognoscível. É impossível remontar das criaturas ao criador, para afirmar algo sobre Deus, porque a analogia do ser não tem valor. Não tem sentido dizer que Deus é o Ente Primeiro, seria quase uma blasfêmia para Kant. A analogia do ser não existe.
Do mesmo modo, a analogia entre o bem sensível, objeto do desejo, e o bem honesto, objeto da razão: não há nenhuma relação, nenhum raciocínio a partir do desejo natural das coisas sensíveis para explicar o natural desejo espiritual do bem.
Definitivamente, segundo Kant, a razão não pode conhecer, através das suas próprias forças, a existência nem as perfeições de Deus. É a ruína, portanto, da chamada teologia natural, a teodicéia, o conhecimento de Deus pela simples razão. No entanto, o Concílio Vaticano I recordou que nós podemos conhecer a existência e as perfeições divinas a partir das criaturas. Mas Kant nega isso. Não podemos conhecer, por nossa razão, nem a existência nem as perfeições de Deus.
Dessa forma, outra conseqüência: as analogias reveladas no Evangelho, na Bíblia, das quais se utilizou Deus para nos falar, e que nos desvendam seus mistérios sobrenaturais, são fatalmente metáforas, uma vez que não há entre Deus e a criatura nenhuma relação. Tudo o que Deus nos diz são metáforas. Por conseguinte, toda e qualquer palavra de Deus não pode ser senão alegórica, e todo e qualquer discurso humano sobre Deus, inversamente, não pode ser senão mitológico. É a aplicação do agnosticismo à religião.



1.4. A aplicação à moral: negada a finalidade sobrenatural, Deus torna-se um acréscimo à moral

Por fim, a aplicação à moral deste agnosticismo kantiano. Em moral, o ato bom, o ato virtuoso, não é o que tem um objeto e um fim conformes com a natureza (incognoscível), mas sim o agir independente de qualquer objeto e de qualquer fim, por mero dever, para respeitar, em si mesma, a sua humanidade, diz Kant. E, como tal virtude de agir por mero dever, por respeito à humanidadeem si mesma, como tal virtude é quase estóica e não coincide com a felicidade neste mundo (o homem virtuoso não é verdadeiramente feliz), pois bem, ela postula a existência de um Deus remunerador no além, e, assim, a existência de Deus resulta simplesmente de uma necessidade de recompensa ou de sanção eterna da virtude.
Deus não é, portanto, o Bem soberano, a chave da moral. Deus é um acréscimo acidental da moral. A natureza humana é incognoscível; nós não conhecemos suas leis, não conhecemos seu autor; Deus não é o autor da natureza humana, Deus não é o autor da lei moral, Deus serve como um acréscimo acidental à moral. Ora, esse agnosticismo kantiano está na base do modernismo.



2. O MODERNISMO TAL COMO SÃO PIO X O CONDENOU

Passemos ao modernismo, condenado por São Pio X.



2.1. São Pio X desvenda os dois princípios de Kant que estão na raiz do modernismo

O idealismo de Kant reside, pois, em dois princípios coerentes entre si: a incognoscibilidade metafísica e moral, que se chama agnosticismo (não podemos conhecer a natureza das coisas, não podemos conhecer o que é uma ação boa), e, segundo princípio, a autonomia da razão teórica e da razão prática, que se denomina imanentismo, isto é, todo conhecimento parte do sujeito e toda bondade moral provém do sujeito e não do objeto. Portanto, os dois princípios da filosofia kantiana são o agnosticismo (ignorância das naturezas e de Deus) e o imanentismo (todo conhecimento vem do sujeito, das suas categorias subjetivas).
São esses os dois princípios que São Pio X desvenda no modernismo, na concepção puramente subjetiva da fé. Para a fé católica, o objeto se apresenta do exterior. Refiro-me à fé católica. O objeto se apresenta do exterior pela autoridade divina e pelo magistério da Igreja. E esse objeto exterior, o mistério divino, impõe-se à minha inteligência em razão da autoridade de Deus, que revela, e não pela autoridade da minha razão. Assim, a fé católica vem do exterior, os mistérios divinos nos são apresentados do exterior, por Deus e pela Igreja, e a eles presto adesão com minha inteligência por causa da autoridade de Deus, que revela e é soberanamente veraz, e não pode enganar-se a si mesmo nem enganar-nos a nós.



2.2. O imanentismo da fé modernista

A fé modernista, ao contrário, vem de dentro de mim mesmo, donde a palavra imanência ou imanentismo (in manere: permanecer dentro); ela vem do interior, eis a diferença.
A fé católica vem do exterior, de mistérios objetivos que eu não fabriquei, que se impõem a mim. A fé modernista, por outro lado, vem do meu interior, é imanentista, é a emanação da necessidade religiosa, diz São Pio X; ou, ainda, essa fé modernista é a expressão de minha experiência religiosa de crente. Assim, na raiz do modernismo está a experiência religiosa. Cada pessoa deve ter na sua vida uma experiência original de onde brota a sua fé. Vocês notaram o erro. Quem vai ter uma experiência original? Existem graças místicas, mas não as possui o comum dos fiéis. Portanto, a fé, para os modernistas, é a emanação da necessidade religiosa ou a expressão da experiência religiosa do crente.
Depois, na segunda etapa, a fé vai “objetivizar”, perdoem-me o barbarismo, e concretizar sua experiência subjetiva mediante símbolos imaginados, que são os relatos evangélicos. Por exemplo, o relato da ascensão de Nosso Senhor Jesus Cristo, cuja imagem irá representar e exprimir o poder de soberano juiz de Jesus: ele subiu aos céus para ser nosso soberano juiz, por exemplo.
Minha experiência original, pois, será “objetivizada” por símbolos imaginados, que são os relatos evangélicos, e depois pelas fórmulas representativas desses símbolos, que são os dogmas. Eis como os modernistas expressam as origens dos Evangelhos e dos dogmas.



2.3. O duplo movimento da fé modernista: de dentro (criação vital) em direção ao símbolo e, em sentido inverso, do símbolo-dogma em direção à interpretação vital

São os dogmas meros símbolos da minha fé subjetiva. Assim, se vocês preferirem, dito de outra maneira, a fé modernista possui um duplo movimento. Primeiro, historicamente, um movimento centrífugo, que parte do interior em direção ao exterior, um movimento de criação vital, de transformação da minha experiência original em símbolo expressivo dessa experiência; e desses símbolos a Igreja produziu dogmas. A seguir, um segundo movimento, centrípeto, que parte do exterior em direção ao interior, após o que o crente vai ao encontro de uma interpretação vital dos símbolos e das fórmulas dos dogmas que a Igreja lhe dá para viver a fé. Devo interpretar os dogmas vitalmente para viver a minha fé, para interiorizar a minha crença de modo que ela se torne assim fonte de vida interior. Notem que o princípio é justo, a minha fé deve ser fonte de vida interior; mas o modernista entende por essa interiorização uma deformação. Já o veremos.



2.4. A essência do modernismo: os dogmas são apenas símbolos

Chama-se a isso interiorização dos dogmas para vivê-los. São Pio X analisou esse duplo processo, centrífugo e centrípeto, e extraiu a essência do modernismo, a qual, a meu ver, é afirmar que os dogmas são apenas símbolos. Eis algumas citações para ressaltar essa verdade, que completa o que disseram meus confrades a respeito do modernismo. Cito São Pio X, na Pascendi: “É o ofício da inteligência” (vimos que primeiro há o sentimento, em seguida a inteligência; o sentimento é a experiência, e depois a inteligência fará os dogmas), “é o ofício da inteligência, faculdade de pensamento e de análise, de que se serve o homem para traduzir, primeiro em representações intelectuais, depois em expressões verbais, os fenômenos da vida, dos quais ele é o teatro. A inteligência é que interpretará meus sentimentos para fazer deles símbolos. Daí esta expressão comum entre os modernistas: o homem deve pensar a sua fé” (n. 12).
O produto desse pensamento são as fórmulas de fé. Continuo a citar: “estas, terminando por ser acolhidas pelo magistério da Igreja, tornam-se dogmas” (n. 12).
Outra citação (n. 13): essas fórmulas de fé “constituem, entre o crente e a sua fé, uma espécie de intermediário. Em relação à fé, essas fórmulas são apenas sinais inadequados de seu objeto (dizer que Jesus é o filho de Deus é um sinal inadequado da realidade); na linguagem corrente são símbolos”.
A noção de filho de Deus constitui símbolo de uma realidade que não é necessariamente a divindade de Jesus. Prossigo a citação do n. 13: “do que se pode deduzir que as fórmulas dogmáticas não encerram a verdade absoluta. Como símbolos, são imagens da verdade.”
Conseqüência (n. 16): “A doutrina da experiência, unida à doutrina do simbolismo, consagra como verdadeira toda religião”, pois que toda religião tem suas experiências religiosas e seus dogmas. O islã possui dogmas, o islã possui símbolos. Portanto, toda religião que tenha uma experiência e um simbolismo é verdadeira, toda religião é verdadeira. Aqui interrompo a citação desses textos de São Pio X. Segundo ele, a essência do modernismo é a experiência religiosa e o simbolismo.
Na raiz há uma experiência religiosa, e ela conduz a símbolos. Os dogmas são apenas símbolos que me ajudam a... já o veremos, não tenhamos pressa.
Os símbolos exercem duplo papel: exteriorizar a fé subjetiva, tornando-a objetiva, comunicável como Igreja, e o magistério consistirá em controlar, verificar e unificar a experiência comum dos fiéis como Igreja. Por exemplo, durante a celebração eucarística: experiência comum. O magistério controlará e unificará a experiência comum pelo “único sujeito Igreja”, como diz o cardeal Ratzinger. E, reciprocamente, os símbolos têm outro papel: o de interiorizar as crenças comuns (divindade de Jesus Cristo), graças ao seu poder de evocação dos estados de alma do crente. Jesus Cristo, filho de Deus, pois bem: isso atua, ativa o meu estado de alma para eu meconsiderar também filho de Deus, por exemplo. Os símbolos ajudam-me a evocar meus estados de alma. Basta decodificar o sentido metafórico dos símbolos dogmáticos. São Pio X dá um exemplo: o Cristo da história e o Cristo da fé. Resumo-o: o Cristo da história, o Cristo histórico que realmente viveu, era mero homem. Mas “um homem de natureza excepcional”, diz São Pio X, para explicar o modernismo (n. 11). Esse mero homem de natureza excepcional foi sublimado pela fé dos primeiros cristãos em um Cristo da fé, que é filho de Deus e fez milagres (n. 10).



2.5. A invenção modernista: o Jesus da história e o Cristo da fé

Portanto, existe um duplo Cristo: o Cristo real, histórico, que não era Deus, que era um tanto extraordinário, e depois o Cristo da fé, que é Deus e fez milagres. Como conciliá-los? O modernista, se for filósofo e historiador, irá negar que Cristo seja Deus segundo a realidade histórica; e, se for exegeta, suspenderá o juízo sobre a divindade de Cristo: “Não podemos dizer nada sobre esse assunto. Tudo isso são símbolos.” Mas, se o modernista for crente (porque ele se diz crente), afirmará a divindade de Cristo, “pois considera a vida de Jesus Cristo como que vivida novamente, por meio da fé e na fé”, por ele mesmo, crente (n. 18).
Vejam esta dicotomia de Jesus Cristo: o Cristo da história e o Cristo da fé, que o modernista reconcilia. Se for historiador, negará: “Jesus não é Deus”; se for exegeta, dirá: “Não podemos dizer nada sobre isso”; e, se for crente, ou se se julgar crente, afirmará: “Sim, eu creio na divindade de Jesus Cristo porque isso me ajuda a viver interiormente a minha fé.” No fundo, pouco importa ao modernista a realidade extramental daquilo em que ele crê; o importante é que isso em que ele crê, a saber, os símbolos, o ajuda a evocar seus problemas psicológicos, situá-los e resolvê-los.



2.6. Aplicação de Husserl à fé: o real revelado é esvaziado e substituído pela vivência da Fé

Aqui temos uma pequena aplicação à fé da teoria do filósofo alemão Edmund Husserl, fundador da escola fenomenológica. Existe, digamos, uma semelhança. Para Husserl, o mundo exterior tal como é não tem nenhum interesse. O que conta é a vivência existencial, a vivênciarepresentativa, a força de representação das idéias. O importante é que se viva. Pouco importa a existência ou não de uma coisa. É a teoria da fenomenologia, que se desinteressa da realidade do mundo exterior, a põe entre parênteses, sem negá-la: ela não nos interessa, o importante é estudar as condições da vivência existencial.
Uma pequena citação de Husserl: “O dado” (o que é dado à minha consciência, a minha vivência) “é essencialmente a mesma coisa, quer o objeto representado exista, quer seja imaginado, quer seja talvez absurdo.” Vocês têm aqui uma aplicação no modernismo: minha vivência interior é o essencial, pouco importa que aquilo a que eu chamo divindade de Jesus Cristo seja uma verdade ou um erro ou uma imaginação.
Husserl, que viveu de 1859 a 1938 e era contemporâneo de Loisy, jamais aplicou isso à fé. Ele era hebreu, um mero filósofo, mas podemos notar certa convergência de idéias. É interessante.



2.7. O modernista afasta-se da realidade para apreender seus problemas psicológicos através dos símbolos

Vê-se que naquela época estava em voga isto: desinteressar-se do real para interessar-se somente pelo fenômeno interior da consciência. Ora, essa filosofia é que permitirá o modernismo. Portanto, no fundo, repito minha primeira conclusão desta parte filosófica e histórica sobre a origem do modernismo: pouco importa ao modernista a realidade extramental, exterior, daquilo em que ele crê, e até a mesma existência de Deus; o importante é que isto em que eu creio, a saber, os símbolos, me ajuda a evocar meus problemas psicológicos, situá-los e resolvê-los. Isso parece inverossímil e, no entanto, é o que existe atualmente.



3. EM TRÊS ARTIGOS DE FÉ, RATZINGER NEGA A REALIDADE DO MISTÉRIO

Vou apresentar-lhes a exegese do Evangelho segundo o teólogo Joseph Ratzinger (quando era teólogo). Eis como o teólogo de Tübingen, na Alemanha, no seu livro Fé Cristã Ontem e Hoje, de 1968, reeditado sem alterações em 2005, pois disse ele que não tinha nada substancialmente para mudar, e não mudou nada, eis como o teólogo Joseph Ratzinger interpreta três artigos de fé do nosso Credo, que estão contidos no Evangelho: “desceu aos infernos, no terceiro dia ressuscitou dos mortos, subiu aos céus”. O primeiro não está contido no Evangelho, mas em outro lugar da Sagrada Escritura. Vejamos o comentário de Joseph Ratzinger, que era apenas padre na época, sobre esses três fatos da vida de Jesus. Como, na condição de exegeta, de comentador das Sagradas Escrituras, ele interpretou esses três fatos da vida de Jesus.



3.1. “desceu aos infernos”: o símbolo do abandono moderno pela ausência de Deus

Primeiramente, “desceu aos infernos”. Vocês sabem que Jesus desceu ao limbo para libertar as almas dos patriarcas do Antigo Testamento, dos justos, que aguardavam a libertação para subir ao céu com ele. Portanto, Jesus visitou as almas do limbo. Cito Joseph Ratzinger:
– “Nenhum artigo de fé é tão estranho à nossa consciência moderna” (é a maior, a tese).
      – Antítese: Mas, apesar disso, não eliminemos este artigo de fé; ele representa a experiência do nosso século, a experiência do abandono pela ausência de Deus, [ausência] que Jesus Cristo experimenta na cruz: “Meu Deus, por que me abandonastes?”, disse Jesus na cruz. Ele experimentou o abandono pela ausência de Deus. Pois bem, a descida aos infernos é isto: um símbolo para exprimir o nosso abandono moderno pela ausência de Deus.
– Síntese: portanto, este artigo de fé exprime, cito, que “Jesus abriu a porta da nossa última solidão, que Ele entrou, através da sua paixão, no abismo do nosso abandono”. Então o limbo, visitado por Jesus, é o sinal de que, “lá onde nenhuma palavra nos conseguiria alcançar, há Ele. Assim, o inferno é superado, ou melhor, a morte, que antes era o inferno, já não o é, dado que na morte habita o amor” (p. 213).
Aí está uma interpretação da descida aos infernos. A experiência psicológica do abandono pela ausência de Deus que será superada pelo amor, eis a descida aos infernos.

3.2. “ressuscitou dos mortos”: a reanimação do Corpo de Jesus substituída pela sobrevida através do amor

Em segundo lugar, “ressuscitou dos mortos”. Explico:
– Tese: o homem está destinado à morte. Jesus, como homem, estava destinado à morte ou Jesus pode ser exceção? E eu mesmo poderia ser exceção? Esta é a tese.
– Antítese: com efeito, este artigo de fé corresponde ao desejo de amor que aspira à eternidade, pois o amor é mais forte que a morte, diz o Cântico dos Cânticos (cap. VIII). Ora, o homem não pode ter sobrevida (desejo de eternidade: sobreviver) senão continuando a subsistir em outro, seja nos filhos, seja na boa reputação, seja em outro, nesse outro que é: o Deus dos vivos. Portanto, não posso ter sobrevida senão continuando a subsistir em Deus.
Continuando, resumo Joseph Ratzinger: “De fato, n’Ele sou mais eu mesmo do que quando tento ser simplesmente eu mesmo.” Notem o platonismo. Eu seria mais real em Deus do que em mim mesmo; o que é um pouco exagerado.
– Síntese. Cito: “Jesus, aparecendo de modo exterior realmente aos discípulos, mostrou-se demasiadamente poderoso para provar-lhes que, n’Ele, o poder do amor se confirmara mais forte que o poder da morte.” É, portanto, o triunfo do amor sobre a morte.
Conclusão: A reanimação do corpo de Jesus, no momento em que saiu do túmulo,       sua saída do túmulo na manhã de Páscoa, não é necessária. Basta professar a sobrevida de Cristo pela força do seu amor. E essa sobrevida é garantia da minha sobrevida pelo amor depois da morte, o que no entanto não me assegura a realidade da minha ressurreição futura. Preservamos a palavra ressurreição, professando: Jesus ressuscitou dos mortos; mas entendemo-lo como uma sobrevida de Jesus pelo amor.
[comentário Raphael de la Trinité: parece uma transcrição, quase literal, do pensamento de Rudolf Bulttmann, célebre teólogo protestante, precursor dos modernistas e do Vaticano II]



3.3 “subiu aos céus”: a ascensão no cosmos reduzida a um lugar psicológico

Enfim, “subiu aos céus”. Cito Ratzinger:
– “Falar de ascensão ao céu ou de descida aos infernos reflete aos olhos da nossa geração, despertada pela crítica de Bultmann” (um protestante liberal), “essa imagem do mundo, em três andares, que nós chamamos mítica e consideramos definitivamente obsoleta” (p. 221). Esta, a tese: é ridículo acreditar que Jesus subiu aos céus. Na concepção dos nossos contemporâneos, um mundo de três níveis (inferno, terra e céu) está ultrapassado. É obsoleto. “De acordo com a relatividade” (de Einstein, que tem razão...) “não existe alto nem baixo”.
Continuo a tese, citando Ratzinger: “Essa concepção obsoleta forneceu certamente imagens pelas quais a fé representou seus mistérios.” Portanto, no fundo há um mistério, pois a fé exprimiu esse mistério por meio dessas imagens de Jesus subindo aos céus. Jesus subindo aos céus, entre as nuvens, é uma imagem que a fé utilizou para exprimir um mistério. Cabe a nós decodificar esse mistério. Temos o símbolo: a subida de Jesus entre as nuvens.
– Cabe a nós decodificar esse símbolo para alcançar o mistério: movimento centrípeto, movimento de análise ou de hermenêutica. A antítese: a realidade, o mistério, é que há dois pólos na existência humana: o alto e o baixo.
– Síntese: portanto, a ascensão do Cristo não acontece na dimensão do cosmos, mas na dimensão da existência humana. Assim como a descida aos infernos representa o mergulho na “zona de solidão do amor recusado”, pois bem, “assim a ascensão de Cristo evoca o outro pólo da existência humana, o contato com todos os outros homens no contato com o amor divino, de tal forma que a existência humana pode encontrar, de algum modo, seu lugar geométrico na intimidade de Deus”. Portanto, a ascensão do Cristo no cosmos é um símbolo que exprime o lugar geométrico-psicológico de uma alma que se une a Deus. Reparem: nada de físico, nada de sobrenatural: é psicológico.



4. O MÉTODO MODERNISTA EM RATZINGER-BENTO XVI: HERMENÊUTICA E HISTORICISMO



4.1. A ocultação da realidade física do mistério por Ratzinger, ignorando-se o sentido literal

A conclusão que tiro dessa exegese de Joseph Ratzinger a respeito desses três artigos do Credo, desses três fatos evangélicos: a realidade física do mistério não é afirmada, nem descrita, nem comentada. Em seu livro, não se explica como, diante dos olhos dos discípulos, Jesus se elevou e desapareceu entre as nuvens, como diz o Evangelho; não se faz nenhum esforço para afirmar ou descrever ou comentar a realidade física do mistério. O sentido literal das Escrituras é silenciado, posto entre parênteses; pouco importa a realidade histórica, importa que os símbolos escriturísticos e depois dogmáticos (encontrados pelo evangelista e depois criados pela Igreja) possam representar a experiência interior do crente do século XX ou XXI. A verdade dos fatos da Escritura, a verdade do dogma, é seu poder de evocar os problemas existenciais da época presente.



4.2. O recente Jesus de Nazaré de Bento XVI afirma a noção de evolução na interpretação da Sagrada Escritura

Cito Joseph Ratzinger, na introdução de seu Jesus de Nazaré, que veio a lume este ano. É Bento XVI quem fala. Resumo-o: “De resto, toda palavra de peso encobre muito mais do que seu autor pode conceber; ela ultrapassa o instante em que é pronunciada e vai amadurecer no processo da história da fé.”
O autor não fala só de si mesmo, por si mesmo, mas fala potencialmente numa história que prossegue, numa história comum que o conduz e em que estão secretamente presentes as possibilidades futuras da sua palavra. O processo de releitura e de ampliação das palavras não teria sido possível se já não estivessem presentes, nessas próprias palavras, tais aberturas intrínsecas. Logo, outra noção se revela: a noção de evolução inspirada na interpretação das Sagradas Escrituras.



4.3. A exegese torna-se uma arte hermenêutica que reduz os fatos fabulosos a fenômenos psicológicos

A exegese, isto é, o estudo e interpretação das Sagradas Escrituras, torna-se uma arte de adivinhação. Podemos adivinhar o que o escritor sagrado jamais quis dizer e jamais disse. Basta imaginar que a sua palavra contém a evolução ulterior de significação que ela receberá na Igreja. A exegese torna-se arte de adivinhação, o exegeta adivinha o que o autor sagrado não pensou nem exprimiu.
A exegese é, pois, uma arte hermenêutica de releitura e ampliação. Voltaremos a isto. É sobretudo arte de criação livre de um sentido espiritual das Escrituras, o qual não se fundamenta no sentido literal, porque o sentido literal é posto entre parênteses. Mas é ainda e sempre a via da imanência, descrita por São Pio X na Pascendi; é também a transfiguração que o escritor sagrado faz dos seus sentimentos em fatos fabulosos, os milagres de Jesus Cristo, sua ressurreição, sua ascensão: fatos fabulosos. As palavras são minhas, mas é assim que acontece. E, em contrapartida,é a desmitologização desses fatos fabulosos, a fim de reduzi-los, mediante a redução antropológica e naturalista, a fenômenos interiores de consciência. Isso quanto à exegese de Bento XVI.

[comentário Raphael de la Trinité: parece uma transcrição, quase literal, do pensamento de Rudolf Bulttmann, célebre teólogo protestante, precursor dos modernistas e do Vaticano II]




4.4. Joseph Ratzinger se inspira em Dilthey, o pai da hermenêutica e do historicismo

É o método modernista, portanto. Os dogmas são apenas símbolos, os fatos evangélicos são apenas símbolos que evocam meus problemas psicológicos. Para alcançar depois essa evolução dos dogmas, é preciso que tome parte um filósofo alemão, inspirador de toda a teologia alemã e, portanto, influenciador de Joseph Ratzinger: Wilhelm Dilthey (1833-1911), o pai da hermenêutica e do historicismo.
Hermenêutica é a arte de interpretar os fatos ou os documentos. Historicismo refere-se ao papel da história na realidade. Para Dilthey, como para Schelling e Hegel, que eram idealistas, a realidade não se compreende senão na sua história. Mas, enquanto para Schelling e Hegel a verdade se desenvolve por si mesma, por um processo dialético (que já explicamos), para Dilthey a verdade se desenvolve pelo processo de reação vital do sujeito em face do objeto, segundo a relação de reação vital entre o historiador que se debruça sobre os fatos históricos e o embate da história.
Desse modo, a riqueza emotiva do historiador, ou daquele que lê a história, enriquecerá o objeto estudado. Em cada época, a história carrega-se da energia, das emoções dos leitores, e, assim, os julgamentos do passado são incessantemente coloridos pelas reações vitais do historiador ou do leitor. Desse modo, os julgamentos do passado, segundo Joseph Ratzinger, que se inspira nessa tese, devem ao fim de cada época histórica (segundo Dilthey) ser revisados – por exemplo, ao fim da época moderna, 1962 (o início do Concílio Vaticano II era o fim de uma época), podiam-se e deviam-se reinterpretar, revisar todos os fatos históricos, os julgamentos do passado, especialmente quanto à religião – para extrair os fatos significativos e os princípios permanentes.
Essa retrospectiva purifica necessariamente o passado daquilo que se tinha acrescentado ao núcleo da fé, e essa revisão, essa retrospectiva agrega necessariamente à verdade o colorido das preocupações do presente. Portanto, há um duplo processo na releitura do passado: primeiro, a purificação do passado, dos acréscimos adventícios, das reações emotivas do passado ou das filosofias do passado, e, segundo, um enriquecimento dos fatos históricos através da reação vital atual.



4.5. O discurso de Bento XVI de 22 de dezembro de 2005: ilustração do historicismo e da hermenêutica

Assim crêem as ciências humanas, e a fé não será exceção, segundo a escola de Tübingen. A fé será submetida a esse pensamento historicista, de que Joseph Ratzinger é herdeiro. Eis o que ele diz no seu discurso de 22 de dezembro de 2005, o discurso inaugural do seu pontificado: “A fé exige uma nova reflexão sobre a Verdade e uma nova relação vital com ela.” Trata-se da mesma coisa: a relação vital de Dilthey. Ele continua: “Essa interpretação [hermenêutica] foi a do Vaticano II: procurar uma nova relação vital com a verdade revelada, e essa interpretação vital deve guiar a recepção do Concílio.” Portanto, segundo Bento XVI, o Concílio foi uma interpretação vital da fé tradicional, e para assimilar o Concílio é preciso continuar a praticar e fazer, ainda hoje, tal interpretação vital. Por que instrumentos? Pelas filosofias modernas, que serão, dizia João XXIII no seu discurso de abertura do Concílio Vaticano II, que são, por seus métodos de investigação, o grande auxílio para exprimir a fé na sua pureza linear e numa linguagem adaptada aos nossos contemporâneos. Esse é todo o objetivo de João XXIII, no seu discurso do Concílio, de 11 de outubro de 1962, o qual Bento XVI cita na sua “quase” encíclica inaugural, o discurso de 22 de dezembro de 2005.
Logo, o Concílio Vaticano II tinha duplo objetivo: era preciso purificar a fé de todos os artefatos dos séculos passados (obviamente, não estamos de acordo com isso, é puro modernismo) e enriquecê-la com as nossas próprias experiências atuais. Notem a subjetividade. Ofendemos nossos pais na fé dizendo que eles desencaminharam a fé com a sua subjetividade, o que é falso, e traímosa fé ajuntando-lhe a nossa própria subjetividade. Eis o método da imanência do modernismo.
Portanto, João XXIII queria isto, era este o objetivo do Concílio: purificar a fé e adaptá-la. Dois movimentos contraditórios num círculo vicioso: purificar a fé de todos os seus artefatos passados e enriquecê-la com todas as nossas experiências modernas.



5. RATZINGER APLICA O MÉTODO MODERNISTA A TRÊS DOGMAS: ENCARNAÇÃO, REDENÇÃO E CRISTO REI

Vejamos como Joseph Ratzinger aplicará esse método aos três grandes dogmas da fé católica. É a atualidade do modernismo, é atual.



5.1. O dogma da encarnação reinterpretado por Ratzinger à luz do existencialismo de Heidegger

Primeiramente, o dogma da encarnação, reinterpretado à luz do existencialismo. Far-se-á uso do existencialismo praticando o método da imanência e o método do historicismo. O princípio da imanência, que diz que tudo vem do interior (a fé vem do nosso interior), e o método do historicismo, que diz que houve uma evolução do dogma, uma transformação do dogma.
Eis como se apresenta o dogma da encarnação de acordo com o teólogo Joseph Ratzinger, no seu livro Fé Cristã, de 1968, segundo tese, antítese e síntese.
– A tese: o filósofo Boécio (480-526) definiu no fim da Antiguidade a pessoa, a pessoa humana, como um subsistente de natureza racional, permitindo o desenvolvimento do dogma das duas naturezas de Jesus Cristo em uma só pessoa, definido no Concílio de Calcedônia, em 451. Eis a tese, clássica. Boécio, filósofo cristão, esclareceu a noção de pessoa e ajudou a desenvolver o dogma de Calcedônia.
– Antítese: hoje Boécio está superado por Martin Heidegger, existencialista alemão nascido em 1889, que vê na pessoa a auto-superação de si mesmo, o que é mais conforme com a experiência do que o subsistente de natureza racional. Ele prefere a auto-superação. Realizamos a nossa pessoa superando a nós mesmos, eis a definição de pessoa segundo Heidegger.
– Conclusão, síntese: o Cristo, homem-Deus, cuja divindade professamos no Credo, já não tem necessidade de ser considerado Deus feito homem. Ele é o homem que, “tendendo infinitamente para além de si mesmo, superou-se totalmente e aí se encontrou verdadeiramente. Jesus Cristo é um com o infinito” (p. 159). Repito, porque vale a pena ler isso. Logo, é preciso crer na divindade de Jesus Cristo, mas já não há necessidade de considerá-lo Deus feito homem. Não, é preciso considerar que, tendendo infinitamente para além de si mesmo, Jesus superou-se totalmente e lá se encontrou verdadeiramente. Jesus Cristo é um com o infinito. Portanto, é o homem que se supera, que se torna super-homem e divino. Eis o mistério da encarnação reinterpretado à luz do existencialismo e, ao mesmo tempo, do historicismo.
Diz-se que Boécio está superado e é necessário preferir Heidegger, porque a experiência de Boécio está superada, enquanto a experiência de Martin Heidegger corresponde aos nossos problemas atuais, aos nossos problemas psicológicos atuais: a auto-superação. O egoísmo vencido pela auto-superação. Jesus Cristo venceu o egoísmo radicalmente, superando infinitamente a si mesmo, unindo-se ao infinito.



5.2. O dogma da redenção revisto por Ratzinger segundo a dialética de Hegel e o existencialismo de Gabriel Marcel

Em segundo lugar, o dogma da redenção revisto dialeticamente segundo Gabriel Marcel. Será utilizado o método da dialética de Hegel e, ao mesmo tempo, o existencialismo cristão de Gabriel Marcel. Emprega-se o método de Hegel, o princípio de Gabriel Marcel e ainda, é claro, o princípio da imanência. Vocês já o verão.



5.2.1. Santo Anselmo vê na cruz um sacrifício expiatório

Desde Santo Anselmo de Cantuária (1033-1109), a piedade cristã vê na cruz de Jesus Cristo um sacrifício expiatório, isto é, uma satisfação oferecida a Deus, em justiça, para reparar os pecados, através de um ato mais agradável a Deus do que Lhe terão sido desagradáveis todos os pecados. Questão de justiça.



5.2.2. Negação do sacrifício da cruz nos dias de hoje

– A tese: o Novo Testamento, porém, não diz que o homem se reconcilia com Deus, mas que Deus se reconcilia com o homem. Deus é que oferece ao homem. Portanto, Deus exigir de seu Filho um sacrifício humano não é conforme com a mensagem de amor do Novo Testamento. Deus não podia exigir de seu Filho um sacrifício humano. De resto, o Antigo Testamento proibia os sacrifícios humanos. Dito de outro modo, já não podemos nos dias de hoje aceitar que a cruz seja um sacrifício expiatório.
Era conveniente para Santo Anselmo, mas hoje é impossível, porque nosso conhecimento do Novo Testamento, a mensagem de amor do Novo Testamento nos diz que Deus não pode exigir o sangue de seu Filho como um deus Moloch sedento de sangue. Perdoem-me a blasfêmia, perdoem-me, não sou eu quem a diz, foram bispos que disseram isso, como Dom Huyghe, bispo de Arras, há vinte anos, aplicando J. Ratzinger, na obra coletiva intitulada Bispos Dizem a Fé da Igreja.
Então, temos esta negação: a cruz não é esse sacrifício de expiação oferecido por um homem a Deus, pelo homem Jesus Cristo a Deus seu Pai. A cruz não é um sacrifício expiatório.
– Antítese: essa negação, no seu absoluto, pelo seu absoluto, é tão absoluta que produz a sua contraditória, isto é, a antítese, segundo o método de Hegel. Com efeito, toda uma série de textos do Novo Testamento afirma, ao contrário, a satisfação penal oferecida por Jesus em nosso lugar a Deus seu Pai. Pode-se citar Isaías mesmo, no Antigo Testamento, ao descrever-nos o homem de dores que carrega nossos pecados e paga a expiação de nosso pecado: “Eram os nossos crimes o que Ele carregava, foi por causa dos nossos crimes que Ele foi desfigurado, que Ele foi ferido” (Is., 53). Santo Isaías descrevia, antecipadamente, a paixão de Jesus como um sacrifício expiatório, e toda a Epístola aos Hebreus proclama o sacrifício expiatório de Jesus na Cruz.
– Síntese: a cruz transforma-se: “Jesus amou por nós.”
Assim, pois, Joseph Ratzinger é constrangido pelo mesmo absoluto da sua negação; ele deve ao menos fornecer a contraditória. Existe toda uma série de textos das Sagradas Escrituras que afirmam, não obstante, que a cruz é um sacrifício expiatório. Eis o problema: como escapar da contradição? Enfim, como negar que a cruz é satisfação por nossos pecados, uma obra de justiça operada por Cristo em nosso lugar para fazer justiça a seu Pai, por causa dos pecados dos homens?



5.2.3. A cruz transforma-se: Jesus amou por nós

Síntese de Joseph Ratzinger: na cruz, Jesus nos substituiu, é verdade. Não para quitar uma dívida, nem sequer para pagar uma pena, mas para “amar por nós”. Portanto, Jesus na cruz nos substitui para amar por nós. A cruz é isto: Jesus amou por nós. Por nós, que já não podíamos amar (não se sabe bem por quê; estávamos longe de Deus, já não podíamos amar). Na cruz, “o Cristo amou por nós” (Fé Cristã, p. 202)
E assim se recupera a tese, enriquecida da antítese. É a dialética de Hegel. A verdade deve progredir na história por uma tese que, mediante sua afirmação, produz sua contradição, antítese, e essa contradição vem finalmente enriquecer a tese numa síntese. Portanto, a síntese: há, sim, uma substituição de Jesus Cristo, em nosso lugar, na cruz, mas simplesmente para amar por nós. E vocês podem notar que nessa dialética de Hegel, aplicada à fé, a tese e a antítese são verdadeiras, mas contraditórias; são verdadeiras, e ambas fazem parte da verdade. Assim, aceita-se a contradição nas coisas; ela não é solucionada, mas integrada por uma síntese. A negação do início, Jesus não ofereceu um sacrifício expiatório, e, a seguir, o fato de existir apesar disso uma série de textos que dizem que a paixão é um sacrifício expiatório conciliam-se ou, pelo menos, caminham juntos na síntese: Jesus se põe no nosso lugar, ama por nós. Ele nos substitui para amar por nós.
O que não é falso: Jesus tem uma caridade infinita, que é a alma do seu sacrifício. Mas não é tudo: Jesus pagou duramente a pena dos nossos pecados; logo, a heresia consiste na negação. A afirmação é correta: Jesus amou por nós, mas isso não é o suficiente; a heresia consiste na negação da pena suportada por Jesus voluntariamente por nós na cruz.



5.2.4. A cruz torna-se mera exemplaridade

E, assim, vejam que segundo Hegel e segundo Joseph Ratzinger nada impede essa síntese, no futuro, de tornar-se uma tese que, por seu absoluto, produza uma nova antítese, que exigirá uma nova síntese; e assim poderá o dogma evoluir. Nossa concepção da redenção poderá evoluir ainda, indefinidamente.
Resultado: vou citar um pouco Joseph Ratzinger, sobre a redenção: “O sacrifício cristão não é outra coisa senão o êxodo do ‘por’ que consiste em sair de si, realizado completamente no homem, que é todo êxodo, superação de si por meio do amor” (p. 203) (são categorias existencialistas: a saída de si, o êxodo). Portanto, a paixão do Cristo não opera a nossa salvação por mérito (não se fala dos méritos de Jesus Cristo, dos seus sofrimentos), nem por satisfação (não se fala da pena de Jesus, nem, portanto, da remissão obtida dos nossos pecados), nem por sacrifício (não se fala do sacrifício da cruz), nem por eficiência, eficácia, à maneira de uma causa eficiente, nada do que Santo Tomás, entretanto, proclama na sua Suma Teológica. Não, a paixão de Jesus Cristo operou a nossa salvação por mera exemplaridade do dom absoluto de si. Quer dizer, trata-se de um exemplo extraordinário de dom absoluto de si. Logo, como exemplo de dom de si, a paixão opera a nossa salvação.



5.2.5. A cruz é desmaterializada, torna-se uma idéia platônica; Jesus é descrucificado

Eis o dogma da redenção: a cruz é uma idéia platônica, mero exemplar. Exemplar de quê? De qualquer coisa interior a mim, o dom de mim. O que não é falso: o dom de si é a caridade. Mas notem o erro: a cruz torna-se apenas um exemplar do dom de si. A cruz é despojada de toda a sua carga de sofrimento, de opróbrios suportados por Jesus. A cruz é desmaterializada. Jesus é descrucificado. Não resta nada senão o amor.
A cruz é um símbolo do dom de si, pouco importa a materialidade dos sofrimentos de Jesus. O importante é o valor de evocação de meu dever de doar a mim mesmo. A cruz torna-se uma idéia platônica.
Continuo a citar Joseph Ratzinger: “A partir dessa revolução na idéia de expiação” (Jesus não expia pagando uma pena, mas amando em nosso lugar; é uma revolução, diz ele, na idéia de expiação: não se fala de pena ou de penitência ou de sacrifício, somente de dom de si e de amor; ao menos é mais “valorizador” e positivo), “e, portanto, no eixo mesmo da realidade religiosa, o culto cristão e toda a existência cristã recebem também uma nova orientação” (p. 199).
O culto cristão e a existência cristã, e portanto toda a vida cristã e toda a liturgia, serão afetados por essas idéias platônicas. Vou mencionar algo acerca deste assunto: trata-se da missa nova. O padre François Knittel mostrou-nos que as orações do novo missal já não falam de combate cristão contra os inimigos, contra si mesmo; já não há penitências, já não há expiação, basta amar. Resta o amor. Isso não é falso. O amor é a alma da penitência, mas não se pode desmaterializar a vida cristã e esquecer o aspecto penitencial, o aspecto cotidiano, o aspecto de vencer-se a si mesmo, de carregar sua cruz e seguir a Jesus Cristo. É isso o que diz Jesus no Evangelho.



5.2.6. O sacerdócio é reduzido ao poder de ensinar

Logo, como podem ver, toda a existência cristã recebe uma nova orientação, e o culto cristão também: é a missa nova. A missa nova torna-se a celebração comum da fé. Já não é uma oferta a Deus, uma ação separada da do povo, mas uma ação de comunhão interpessoal, uma experiência comum da fé, a celebração dos grandes feitos de Jesus. Por outro lado, paralelamente, o sacerdócio “ultrapassou o plano da polêmica”, que, no Concílio de Trento, havia estreitado a visão do sacerdócio, vendo-se o padre apenas como mero sacrificador (Sessão XXIII, decreto sobre o sacramento da ordem). O Concílio de Trento estreitara a visão global do sacerdócio; o Vaticano II alargou-lhe as perspectivas. Cito então Ratzinger: “O Vaticano II, felizmente, ultrapassou o plano da polêmica e traçou um quadro completo e positivo da posição da Igreja a respeito do sacerdócio, no qual foram igualmente acolhidas as petições da Reforma” (Os Princípios da Teologia, p. 279). Vocês entenderam bem: as petições da “Reforma” protestante, que via o padre como o homem da palavra de Deus, da pregação do Evangelho, e ponto.
Assim, diz Joseph Ratzinger, “a totalidade do problema do sacerdócio se reduz, em última análise, à questão do poder de ensinar na Igreja, de maneira geral” (Os Princípios..., p. 279). Ele reduz, desse modo, todo o sacerdócio ao poder de ensinar na Igreja. Não vai negar o sacrifício; apenas diz: “tudo se reduz ao poder de ensinar na Igreja.” Logo, a própria oferenda da missa pelo padre deve ser relida numa perspectiva de ensinamento da palavra de Deus. É necessário reinterpretar o sacerdócio, o sacrifício mesmo, a consagração mesma: isso não é nada mais que a celebração dos grandes feitos de Cristo, sua encarnação, sua paixão, sua ressurreição, sua ascensão, vividos em comum, sob a presidência do padre. O sacerdócio foi reinterpretado. O padre tornou-se o animador da celebração e da vivência comunitária da fé. Isso foi apenas um parêntese para lhes mostrar como as idéias de Joseph Ratzinger de 1967 foram efetivamente aplicadas no Concílio Vaticano II, porque é o que encontramos no decreto sobre o sacerdócio.



5.3. A realeza política e social de Nosso Senhor Jesus Cristo revista por Ratzinger a partir do personalismo de Emmanuel Mounier

Vejamos agora Cristo Rei, o direito de Jesus de impor sua lei às leis civis, o dever do Estado e da sociedade civil de seguir a lei de Jesus Cristo, sua realeza social. Ora, Cristo Rei será também purificado, numa visão historicista, pelo personalismo. Já não se trata do existencialismo, mas do personalismo, com Emmanuel Mounier (1905-1950), um cristão francês.
A tese: o personalismo de Emmanuel Mounier foi a ferramenta que faltou a Lamennais no século XIX para introduzir a liberdade de culto no cristianismo. Quis Lamennais introduzir a liberdade de culto na doutrina cristã. Por essa razão, ele foi condenado em 1832 pela encíclicaMirari vos, de Gregório XVI. Diz Yves Congar: Por quê? Porque Lamennais não conhecia, não tinha a ferramenta que Emmanuel Mounier forneceria um século depois: o personalismo. Faltou-lhe a ferramenta necessária para introduzir a liberdade de culto no catolicismo. Antítese: basta utilizar hoje essa ferramenta, purificando e corrigindo esse valor da liberdade religiosa, valor de dois séculos de cultura liberal, como dizia Joseph Ratzinger em 1984.
      Não se fará apoiar a liberdade religiosa na verdade do culto, afirmando que somente a verdadeira religião tem direito à liberdade, mas sim no sólido fundamento da dignidade da pessoa humana, sobre “a verdade da pessoa”, como dizia João Paulo II na Veritatis Splendor, n. 40.
Desse modo, a liberdade dos cultos já não se apóia na verdade do culto, na realidade objetiva do culto praticado (trata-se de uma religião falsa ou verdadeira?); mas apóia-se na verdade da pessoa, isto é, no agir livre e responsável de cada um, em virtude de suas próprias opções, como dizia Emmanuel Mounier. O Concílio inspirou-se em Emmanuel Mounier ao dizer que, hoje, nossos contemporâneos tomam incessantemente consciência da dignidade da pessoa, e cada um reivindica a vantagem de agir em virtude de suas próprias opções. Quase uma citação literal de Emmanuel Mounier, e nessa idéia se constrói a base da liberdade religiosa, do direito à liberdade religiosa.
Substitui-se assim a verdade objetiva do culto, a saber, o verdadeiro culto católico, que é da única religião verdadeira, razão por que as outras religiões não são religiões e não podem ter direitos. Substitui-se pela pretensa verdade da pessoa, isto é, pela subjetividade da pessoa. A liberdade de agir que a pessoa reivindica em virtude das suas próprias opções, segundo a imanência. De acordo com Emmanuel Mounier, eu me realizo, eu realizo minha pessoa pelas minhas próprias opções, pelas minhas próprias escolhas de vida, independentemente da verdade ou do erro em que eu possa incorrer, pois o que importa é agir em virtude das minhas próprias opções: isso é Emmanuel Mounier. Põe-se entre parênteses a verdade ou o erro. Não se negará que existe uma verdadeira e uma falsa religião. Simplesmente isso não nos interessa. O método é sempre o mesmo. Considera-se somente o interior. Agir em virtude das minhas próprias soluções.
Dessa forma, vocês podem notar muito bem a reinterpretação de Cristo Rei, cuja palavra se cassou, e que foi destronado, porque agora é a pessoa humana, agindo segundo as suas próprias opções, que fundamenta o direito da liberdade religiosa, o direito de praticar na sociedade civil o culto de sua escolha. Foi o que o Vaticano II ensinou na Dignitatis Humanae, a declaração sobre a liberdade religiosa.




6. CONCLUSÃO: UM SUPERMODERNISMA CÉTICO: OS DOGMAS SÃO APENAS SÍMBOLOS PARA RATZINGER

Para concluir, eu diria que estamos às voltas com um modernismo aperfeiçoado, um supermodernismo cético. Os modernistas consideravam os dogmas como meros símbolos. Hoje não se nega a verdade, não se nega o mistério, ninguém se torna francamente ateu ou herético, não, simplesmente põe-se entre parênteses Deus, a encarnação real, a redenção real, Cristo Rei real. Põe-se tudo isso entre parênteses. O que interessa é que esses símbolos evocam meus problemas psíquicos e me ajudam a resolver meus problemas existenciais.



6.1. O Deus de Emmanuel Kant

Cem anos antes da Pascendi, Kant já via nos dogmas meros símbolos de idéias morais (se vocês lerem Kant, verão que interessante; ele escreveu uma pequena obra intitulada A Religião nos Limites da Simples Razão). Kant já via nos dogmas meros símbolos de idéias morais. Dou-lhes alguns exemplos: a trindade, para Kant, simboliza a união em um só ser de três atributos: a santidade, a bondade e a justiça. Vejam a reinterpretação da Trindade por Kant: um mero símbolo moral, coisas morais: a santidade, a bondade e a justiça. Do mesmo modo, para Kant, o filho de Deus encarnado (ah, interessante isto!) não é um ser sobrenatural, é um ideal moral, o de homem heróico. Aí está a inspiração de Joseph Ratzinger: o homem que se supera a si mesmo e chega ao infinito; um ideal moral.
E à idéia de inferno, dizia Kant, não é necessário conceder mais que um valor regulador de minhas ações; serve para o temor, serve para praticar a virtude. Não quer dizer que o inferno exista. Põe-se entre parênteses. Para Kant os dogmas são meros símbolos: essa é a essência do modernismo. Logo, cem anos antes do modernismo, ele já existia; apenas estava fora da Igreja. Kant não era católico, mas protestante. Cem anos depois, é um padre católico, mas logo excomungado, Alfred Loisy, quem elabora as mesmas teorias que São Pio X denunciou em 1907.



6.2. O Deus de Kant é o Deus de Ratzinger
                                                 
E cem anos depois da Pascendi, em 2007, são teólogos católicos, entre os quais um futuro papa, infelizmente, que, imbuídos de toda a filosofia do século XIX e XX, desencarnam, descrucificam e destronam Jesus Cristo. Mas a fé subjetiva deles “debate-se nas ondas da dúvida” de que fala Joseph Ratzinger na obra Fé Cristã (pp. 11-12). Essa fé quer experimentar Deus em vez de aderir simplesmente a Deus; essa fé se entrega à razão filosófica em vez de confiar-se à autoridade de Deus, que revela; essa fé é debilitada por suas razões humanas. Debate-se nas ondas da dúvida, pois Joseph Ratzinger diz que o crente, assim como o descrente, está sempre ameaçado pela dúvida a respeito da sua posição: “O crente estará sempre ameaçado pela descrença, e o descrente estará sempre ameaçado pela fé” (Fé Cristã, p. 11)Tal crente já não pode propor ao mundo sem Deus, a um mundo sem Deus em perigo de perder-se, como meio de salvação, senão um Deus ideal e hipotético: o Deus de Emmanuel Kant, um Deus “do qual não se saberia afirmar se existe fora do pensamento racional do homem” (Kant, Opus postumum, Convolutum VII).
Na época das Luzes, buscava-se estabelecer leis universais que fossem válidas ainda que Deus não existisse; hoje, aconselha Joseph Ratzinger, seria necessário mudar essa palavra de ordem e dizer: “Ainda que não se consiga alcançar a via de aceitação de Deus, dever-se-ia tentar viver e conduzir a vida como se Deus existisse” (Conferência em Subiaco, 1° de abril de 2005, pouco antes de ser eleito Papa). Eis a solução social para instaurar a ordem no mundo: “O homem deveria tentar viver e organizar a sua vida como se Deus existisse”; não porque Deus existe e Jesus Cristo é Deus. É pois de um ceticismo apavorante, que nos indica a realização última do modernismo. O modernismo conduz ao ceticismo, isto é, a cristãos que já não são seguros daquilo em que crêem, que se contentam em aconselhar: viva como se cresse!



6.3. Em face do supermodernismo, o remédio encontra-se em Santo Tomás de Aquino

Enfim, meus caros amigos, eis que a Pascendi é mais que nunca atual em face desse agudo acesso de modernismo que afeta no presente a própria cátedra de Pedro. Ora, a pastores e fiéis aPascendi prevenia-nos contra esse contágio mortal, e para essa falsa filosofia indicava-nos o remédio: Santo Tomás de Aquino.
O grande remédio protetor para conservar a fé sã, a verdadeira noção de fé sobrenatural, o firme assentimento da inteligência à verdade divina recebida do exterior, apoiando-se na autoridade mesma dessa divina verdade, é Santo Tomás de Aquino, que deu essa simples definição de fé. Ora, nele temos o grande instrumento protetor da fé. Com efeito, porque essa fé objetiva católica concorda perfeitamente com a filosofia de Santo Tomás de Aquino, é que São Pio X prescreveu aos futuros padres “o estudo da filosofia que nos legou o Doutor Angélico”. Eu concluiria, enfim: a essa febre cética que afeta as mais altas autoridades da Igreja no presente, nós preferimos o fervor tomista.


* Conferência dada no Simpósio Pascendi (9, 10 e 11 de novembro de 2007, Paris). Tradução: Renato Romano.

FONTE: http://spessantotomas.blogspot.com.br/2011/10/atualidade-da-pascendi-hidra-modernista.html

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