DESTAQUE
A ‘PSY-WAR’ NEOCOMUNISTA SUBJUGA O OCIDENTE
Medo, provocação, projeção e propaganda: a elite do Kremlin domina todas
essas técnicas. São as armas usadas para justificar ocupações, tanto aos olhos
da população local quanto aos do mundo.
A chegada da maioria dessas pessoas à Crimeia resultou de transferências
maciças de população promovidas por Stálin com o fim de misturar a população
dos Estados vassalos soviéticos e russificar a região. Áreas de perfil
semelhante se encontram em diversos pontos da Europa Oriental. Agora essas
pessoas estão sendo exploradas pela gangue de Putin. Mas o fato é que os
habitantes originais da Crimeia, os tártaros, já foram esquecidos. Na
experiência deles, as políticas populacionais de Stálin terminaram em genocídio.
Enquanto escrevo, as portas das casas ocupadas
pelos tártaros na Crimeia são marcadas com cruzes. Isso lhes parece familiar?
Esse tipo de
governo não é uma democracia, mas o Ocidente acatou a explicação, como acatou
outros eufemismos do FSB (a versão atual da KGB) que tinham por objetivo
acalmar o resto do mundo enquanto a elite no Kremlin fazia preparativos para
criar o admirável mundo novo de Putin.
A União
Soviética foi reabilitada, e o jornalismo se tornou uma escolha profissional
suicida. Desde 2012, a elite de Putin vem repatriando os ativos que detinha no
Ocidente, a fim de garantir a independência dos que estão no poder.
Um dos
princípios fundadores da União Europeia é o de que deveríamos pelo menos tentar
aprender alguma coisa com o passado.
A União
Eurasiana promovida por uma panelinha dentro da elite de Putin é diametralmente
oposta a isso. Baseia-se em porções seletas do stalinismo e do
nacional-socialismo, cujas lições de propaganda são seguidas atentamente. E
essa forma de exercer o poder conta com um orçamento inesgotável.
*** * ***
Sob os
olhos do Ocidente
A Rússia e o contra-ataque do império decaído
SOFI OKSANEN
tradução PAULO MIGLIACCI
tradução PAULO MIGLIACCI
RESUMO Escritora que tem no cerne de sua obra os abusos soviéticos nos
países bálticos vê a anexação da Crimeia pela Rússia como parte de uma campanha
colonialista contínua. Medo, provocação, projeção e propaganda seriam as armas
do Kremlin para justificar ocupações, tanto para os habitantes locais quanto
para o Ocidente.
*
A cada
manhã, acordo imaginando se terá chegado o dia em que a Europa Oriental será
vendida mais uma vez. Verifico meu celular e, quando vejo que nada de muito
alarmante foi anunciado, mesmo que as notícias não sejam exatamente animadoras,
ligo meu computador e vasculho as manchetes, ainda imaginando se vai acontecer
hoje ou amanhã.
O dia em que
só me concentrando na observação de minhas reações pessoais e nas do mundo ao
meu redor serei capaz de lidar com as notícias -porque é dever do escritor
recordar os momentos em que se viram páginas da história.
Uma nova era
já começou. O período que separa as guerras frias -de 1989 a 2014- acabou.
A última vez
que a Europa Oriental e os países bálticos foram vendidos à União Soviética e
absorvidos em sua esfera de influência foi sob o pacto Molotov-Ribbentrop [em
1939], uma manobra que contribuiu para que o império soviético viesse a atingir
seu maior poder. Uma força de trabalho não remunerada estava trancada nos
campos de escravos do gulag. Agora a Rússia deixou claro, em palavras e atos,
que pretende restaurar a velha glória de seu império. A doutrina Brejnev foi
atualizada e adotada por Putin.
A Rússia
acredita que tem o direito de intervir nas ações de Estados independentes caso
estes pareçam estar se aproximando demais do Ocidente e caso a Rússia considere
ter autoridade sobre a área em questão.
A Duma, o
Legislativo russo, debate em regime acelerado uma lei que facilitaria a
anexação de regiões que no passado estiveram sob domínio soviético, e os povos
da Europa Oriental e dos países bálticos ficam imaginando se uma vez mais terão
depositado em vão sua fé no Ocidente -que, ao longo da última década, dedicou
pouca atenção ao Leste Europeu, a não ser para vê-lo como fonte de mão de obra
barata e local para instalações de produção lucrativas.
A anexação
ilegal da Crimeia tem grande valor simbólico; é a primeira região, desde o
período soviético, a ter sido tirada de um Estado independente e incorporada à
Rússia. Também é um teste, um estudo da tolerância e da moral do Ocidente: será
que ousará honrar suas promessas -ou trairá o Leste novamente?
O
contra-ataque do império decaído começou em 2005, quando Putin declarou que o
colapso da União Soviética foi o maior desastre geopolítico do século 20.
A forma como
a história é ensinada é um dos métodos pelos quais essa tese é promovida, um
conteúdo retrógrado motivado por interesses geopolíticos. O objetivo dessa
versão da história é fazer renascer o orgulho nacional russo e funcionar como
lembrete de que integrar o império russo era benéfico para pessoas de outras
regiões. Os antigos Estados vassalos têm opinião bastante diferente.
Por anos os
ocidentais aplaudiram polidamente os discursos de Putin sobre o
"desenvolvimento democrático" de seu país. Ele defendeu seu modelo
social como uma "democracia administrada".
Esse tipo de
governo não é uma democracia, mas o Ocidente acatou a explicação, como acatou
outros eufemismos do FSB (a versão atual da KGB) que tinham por objetivo acalmar
o resto do mundo enquanto a elite no Kremlin fazia preparativos para criar o
admirável mundo novo de Putin.
A União
Soviética foi reabilitada, e o jornalismo se tornou uma escolha profissional
suicida. Desde 2012, a elite de Putin vem repatriando os ativos que detinha no
Ocidente, a fim de garantir a independência dos que estão no poder.
Um dos
princípios fundadores da União Europeia é o de que deveríamos pelo menos tentar
aprender alguma coisa com o passado.
A União
Eurasiana promovida por uma panelinha dentro da elite de Putin é diametralmente
oposta a isso. Baseia-se em porções seletas do stalinismo e do
nacional-socialismo, cujas lições de propaganda são seguidas atentamente. E
essa forma de exercer o poder conta com um orçamento inesgotável.
Em 2005, o
canal de TV RussiaToday, em inglês, foi criado para servir às necessidades de
propaganda do Kremlin, com orçamento anual de mais de US$ 300 milhões.
Porque a
programação do canal parece jornalística, todos acreditam que seja
jornalística, quando, na verdade, ela serve para disseminar as
"verdades" russas para o Ocidente, como ex-funcionários da estação
admitiram.
Agora, com a
crise ucraniana, essa propaganda se tornou tão desavergonhada que já não tenta
esconder do Ocidente as suas intenções, como fazia no passado. E isso é uma
mudança considerável.
Entre os
editores ocidentais, é prática comum apresentar opiniões de diversas partes a
fim de produzir um artigo que se aproxime da verdade. Mas essa não é a maneira
certa de agir quando um dos lados está mentindo escandalosamente. Ao agir
assim, a mídia ocidental repete indiretamente a mensagem promovida pelos
"siloviks" do Kremlin ["pessoas de poder", termo usado para
denotar políticos importantes com antecedentes nos serviços de segurança].
O cerne da
política do Kremlin é a guerra de informações, plena de alegações e
contra-alegações, porque essa é a forma mais barata de conquistar territórios
sem utilizar blindados.
Medo,
provocação, projeção e propaganda: a elite do Kremlin domina todas essas
técnicas. São as armas usadas para justificar ocupações, tanto aos olhos da
população local quanto aos do mundo.
TAREFA FÁCIL
Para a
Rússia, a anexação da península da Crimeia, parte legal da Ucrânia, foi tarefa
fácil. A invasão não gerou baixas russas, que poderiam ter levado as mães do
país às ruas em protesto, e foi possível apresentar ao Ocidente uma narrativa
que tornava a anexação compreensível, partindo do fato de que boa parte da
população da área é russófona.
A chegada da
maioria dessas pessoas à Crimeia resultou de transferências maciças de
população promovidas por Stálin com o fim de misturar a população dos Estados
vassalos soviéticos e russificar a região. Áreas de perfil semelhante se
encontram em diversos pontos da Europa Oriental. Agora essas pessoas estão
sendo exploradas pela gangue de Putin. Mas o fato é que os habitantes originais
da Crimeia, os tártaros, já foram esquecidos. Na experiência deles, as
políticas populacionais de Stálin terminaram em genocídio.
Enquanto escrevo, as portas das casas ocupadas pelos tártaros na Crimeia
são marcadas com cruzes. Isso lhes parece familiar?
A Rússia vem
tentando desestabilizar a independência da Europa Oriental e dos países
bálticos já há muito tempo. Em 2008, Putin descreveu a Ucrânia como um Estado
artificial. A Rússia colocou em questão o direito ucraniano a fronteiras
invioláveis e, por meio de um engenhoso arcabouço de mentiras, conseguiu fazer
com que o país parecesse quase um Estado russo. Não há nada de novo nessa estratégia: foi o que ocorreu com o jovem
Estado austríaco nos anos 30, conduzindo-o ao Anschluss [união com a Alemanha]
em 1938.
Os países bálticos vêm suportando a retórica russa há anos. A informação que o resto do mundo tem sobre países como a Ucrânia é
relativamente escassa. Consequentemente, impor a agenda da Rússia -o
questionamento de seu direito à autodeterminação- não é nem de longe tarefa
irrealizável.
Aquilo que
na Rússia faz as vezes de imprensa tem publicado, há muito, reportagens sobre
campos de concentração estonianos onde russos estariam detidos (safra da
mentira: 2007). Também se publica que filhos de turistas russos foram
sequestrados de hotéis na Finlândia, historicamente considerada como
pertencente à Rússia (safra da mentira: 2013).
Com coisas
assim repetidas incansavelmente ano após ano, não surpreende que a maior parte
do populacho russo tenha adotado, pouco a pouco, uma atitude de suspeita com
relação ao Ocidente.
É esse
precisamente o objetivo do exercício. Dessa forma as pessoas podem ser
mobilizadas mentalmente para a guerra, e grupos étnicos antes amigáveis são
açulados uns contra os outros.
Inimigos imaginários
são exatamente o que a camarilha de Putin precisa para manter sua popularidade
e preservar os ativos que adquiriu para uso pessoal por meios altamente
questionáveis. Qualquer perda de poder exporia a corrupção que
permitiu o acúmulo de tal riqueza. Exatamente o que aconteceu a Viktor
Yanukovich, o presidente deposto da Ucrânia.
Por
enquanto, a liderança russa está concentrada nas mãos de um pequeno grupo de
"siloviks", e Putin -o homem mais rico da Europa e da Rússia- é sua
face pública.
A formação
dos membros do grupo difere da que recebem os políticos ocidentais e tem sua
base no FSB e na KGB. Não existe status mais elevado na hierarquia do poder
russa. Nos dias da União Soviética, pelo menos o partido ficava acima da KGB.
Quem ainda crê que a Rússia usa sua "política
dos compatriotas" para proteger interesses das pessoas de etnia russa que
vivem fora do país deveria cair na real o mais rápido possível e lembrar o uso
que Hitler fez das populações de etnia alemã em outros países.
Qualquer um que tenha visitado a Rússia sabe que os que estão no poder
ligam muito pouco para os russos comuns. Foram ações russas disfarçadas de
"assistência humanitária" que deixaram a Ossétia do Sul em estado tão
lastimável.
O Kremlin não tem grande apreço pelas distintas revoluções ocorridas em
países vizinhos. Por isso, pessoas que favorecem Moscou são instaladas nos
governos de países infectados pela corrupção. Enquanto esteve no poder,
Yanukovich ordenou a detenção de historiadores que investigavam crimes
soviéticos, e expressou dúvidas pessoais quanto ao "holodomor", a
fome catastrófica que constituiu, na verdade, um ato de genocídio instigado
pelos soviéticos no começo dos anos 30. (...).
Yanukovich
agiu segundo o dever de um líder pró-Moscou. Mas o povo protestou e estragou os
planos, já bem adiantados, de Putin para promover discretamente a união entre
Ucrânia e Rússia.
É hora de o Ocidente dizer não à intenção russa de expandir seu
território além das fronteiras do país, e isso não pode ser feito por meio de
diálogo diplomático.
É impossível
negociar com um adversário que mente consistentemente sobre seus objetivos. A
Rússia já demonstrou que adota uma fachada diplomática com a única finalidade
de ganhar tempo e transportar armas pesadas para a fronteira.
Para ganhar tempo
a fim de implementar leis que apoiam os regimes que controla.
O Ocidente tentou compreender as políticas que estão sendo colocadas em
prática pelo Kremlin, mas não há necessidade de compreender o colonialismo. Ele
é simples cobiça, e precisa ser detido.
Tentaríamos
mostrar compreensão caso Elizabeth 2ª decidisse reviver o colonialismo
britânico?
Você compreenderia o pensamento de Angela Merkel se
ela ameaçasse restaurar o Reich alemão? E se a TV alemã começasse a transmitir
programas infantis em que bonecos de pelúcia aparecem em preparativos para a
guerra? E se a Alemanha fosse governada por pessoas treinadas pela Gestapo?
Como você se sentiria caso os alemães vissem Hitler como um dos grandes homens
da história de seu país, da mesma forma como Stálin é encarado na Rússia?
E se a
Alemanha declarasse que a Europa (ou "Gayropa", como os russos a
chamam) é governada por uma conspiração homossexual, como ocorreu recentemente,
na Rússia atual, onde a intolerância foi reforçada por leis de combate à
propaganda gay?
Alguém lembra quem foi mesmo que disse que a degeneração do Ocidente era
resultado de uma conspiração judaica?
Não -você
não toleraria isso, nem por um instante. Você sabe que não haveria maneira de
explicar a seus netos por que permitiu que isso acontecesse.
SOFI OKSANEN, 37, escritora finlandesa de origem estoniana,
autora de "Expurgo" e "As Vacas de Stálin" (ambos publicados
pela Record).