“Quando as palavras do Papa equivalem às de um homem comum, todas as críticas se tornam lícitas... Um caminho que “leva à protestantização da Igreja. Eis o risco que vejo”, diz De Mattei.
“O machado cai sobre o pequeno, sobre os mais fracos, sobre os fiéis à tradição. Se Francisco quer inclinar-se para os mais fracos, não precisa ir muito longe, basta se voltar para as muitas comunidades de fiéis que permanecem tenazmente ligadas ao Magistério e à moral perene. Sim, para os que são ultrajados, isolados e perseguidos pelos respectivos bispos, ou pelos dicastérios da Cúria. Procurar o mais distante esquecendo o mais próximo, eis um falso conceito de amor”. De Mattei explica que não está em discussão o fato de o Pontífice se dirigir à periferia, aos mais distantes. Acima de tudo, o que importa é que “o caminho para chegar aos mais distantes passa pelos mais próximos, e não há atalhos possíveis. E esses próximos hoje são os católicos ligados à tradição. Se há alguém precisando de misericórdia e ternura (palavras usadas por Francisco no Rio), é o caso destes”.
Fonte: Corrispondenza Romana
Tradução: Raphael de la Trinité
O historiador de
Mattei põe os pingos nos is e acusa ‘a forma de atuar’ de Francisco
Sapatos vermelhos, maleta preta com barbeador e breviário, sem carro
blindado... “Estamos agora reduzidos à condição de avaliar um Papa a partir
desses elementos, ou seja, a partir de um discurso no avião, e não pelos atos
de ensino” — diz o historiador Roberto de Mattei, preocupado com o fato de que
o Papa se vai tornando uma estampa, um talk-show. “Hoje tudo é
superficial, gestos, e é neste campo que se costuma procurar o sentido último
das coisas, perdendo-se o conteúdo e a substância; discute-se a forma, que
passa a ocupar o lugar da substância”, acrescenta. “Basta fazer uma comparação
com a importância dada à Lumen Fidei, sua primeira encíclica:
paradoxalmente, destaca-se mais o que é dito no avião do que o conteúdo desse
texto. Isso como se, em entre os dois, não houvesse um abismo de distância [em
matéria de grau de ensinamento]”.
De Mattei não se impressiona com a entrevista de Francisco com
jornalistas a bordo do airbus que o trouxe a Roma, após a
semana agitada no Rio com jovens, pobres e mais desvalidos. Mais do que uma
conferência de imprensa em voo, “o que importa [no modo hodierno de ver as
coisas] é discutir os atos de governo do Papa, ainda que em pequeno número, até
o momento. Os Pontífices se exprimem com as encíclicas e com aquilo que se chama
de motu proprio. As palavras no avião são espontâneas, opiniões
improvisadas e pessoais, completamente desprovidas do atributo de magistério”.
Acrescenta De Mattei: embora “úteis para montar o perfil da personagem”, “serão
sempre aspectos colaterais”.
Se tomarmos, por exemplo, as declarações sobre os gays, ou as afirmações
referentes a Nossa Senhora, retratada pelo Papa como “sendo mais importante do
que os apóstolos, os bispos, os sacerdotes e os diáconos” — observa De
Mattei — “ [devemos considerar que se trata de] temas delicados e importantes,
que só podem ser abordados num contexto de ensino, e jamais mediante um dito
espirituoso. Os ditos espirituosos têm o seu papel, mas não gozam de valor
intrínseco. As frases improvisadas, sendo de natureza espontânea, facilmente
podem criar mal-entendidos, que mais facilmente seriam sanáveis quando
pronunciadas uma pessoa qualquer. Quando, porém, saem da boca do Vigário de
Cristo, tornam-se problemáticas”.
Prossegue: “Lendo, por exemplo, alguns comentários sobre o comentário de
Bergoglio acerca dos gays (como, por exemplo, a análise do filósofo católico
Giovanni Reale, publicada por Corriere della Sera nesta
terça-feira), tem-se a impressão de que estaríamos diante de uma mudança
doutrinária. Já em face do conjunto das afirmações de Bergoglio, cessa essa
impressão desfavorável, qual seja, de estarem em desacordo com a doutrina
católica”. Trata-se de perceber onde está colocada a ênfase. Ora, nesse jesuíta
vindo quase do fim do mundo, o destaque se acha na ideia de mudança: “A mudança
de estilo, uma revolução nos gestos e na fala”, que para De Mattei termina por
“tornar-se mais profunda do que o plano doutrinário”.
A forma exprime um conteúdo, ou, pelo menos, é como presumimos que deva ser. Quando o conteúdo é esvaziado, subtraído ou deturpado, então é que surge
o problema. Nesse caso, discute-se uma forma sem conteúdo. Prescindindo-se da
dimensão sagrada do Papado — prossegue o historiador do Cristianismo —, o
sapato vermelho, por exemplo, poderia ser visto como “uma extravagância”.
Também os meios de comunicação têm a sua parcela de culpa.
Palavras de De Mattei: “Sou indiferente ao fato de o Papa fazer uso de
um Fiat 500 ou de um automóvel Mercedes. Se me encontrasse em presença de São
Pio X, talvez preferisse vê-lo com uma vestimenta mais simples”. A questão é
outra: “a redução da posição do Papa a puros gestos”, sem que se atribua
verdadeiro valor à substância — esse o ponto central. Contudo, diz Roberto de
Mattei, “Francisco não é nenhum espírito parvo ou ingênuo. Pensa naquilo que
faz e deliberadamente escolheu valorizar mais os seus gestos do que os termos
do discurso, fazendo a sua mensagem consistir mais no primeiro do que no
segundo ponto, assim como mais nas palavras do que nos atos pessoais do
Magistério”. Em face disso, De Mattei exprime o receio de que, no plano
midiático, o Papa “esteja brincando com fogo, ao nutrir a ilusão de que seria
capaz de exercer domínio sobre a esfera da mídia. Também para este efeito
ninguém o terá em conta de ingênuo. Contudo, não é de excluir que o bispo de
Roma supervalorize a sua habilidade política no manejo dos meios de
comunicação”. Ora, no mundo de hoje, “impõe-se mais a necessidade de espírito
sobrenatural do que de cálculos políticos ou de recurso aos meios de
comunicação. Temo que — continua o nosso interlocutor —, à força de se
apresentar como homem comum, realmente venha a tornar-se um. Não obstante,
trata-se do Vigário de Cristo, questão central, que jamais poderá ser
posta em segunda plana. O uso dos sapatos vermelhos e da sedia
gestatoria tinham o condão de exprimir — de uma forma que não destoava
da realidade — o caráter sacral de que se acha aureolada a sua condição de
Vigário de Cristo”, diz De Mattei.
Em contrapartida, se o Papa “andasse de clergyman, como o
Cardeal Bergoglio costumava fazer em Buenos Aires, que mensagem seria
transmissível aos fiéis?”. O ponto fundamental, que deve ser posto no realce
devido, reside no fato de que o Papa “não é um homem como nós, sendo que essa
humanização do papado conduz ao esquecimento da fundamentação divina e
metafísica da dignidade pontifícia”.
Para o historiador do Cristianismo, a consequência desse processo de
secularização é a eliminação da ótica que estabelece distinções entre
ensinamento do magistério e ensinamento corrente: “Quando as palavras do Papa
equivalem às de um homem comum, todas as críticas se tornam lícitas. Quando a
verdade é reduzida a uma opinião, quando se esvai o sentido profundo, quando
não se fala mais de valores não negociáveis, tudo se torna negociável, tudo se
torna suscetível à discussão”. Um caminho que “leva à protestantização da
Igreja. Eis o risco que vejo”, diz De Mattei.
No tocante à questão da Igreja pobre, próxima dos mais fracos, veículo
de ação privilegiada junto aos elementos periféricos da sociedade, o nosso
interlocutor demonstra algumas perplexidades: “Causou-me impacto muito
desfavorável o seguinte: como se explica que um Papa que busca inspiração em
São Francisco de Assis como modelo de vida, formulando ademais constantes
censuras ao mundanismo, mediante gestos em favor da sobriedade, tenha podido
aprovar a decisão da Congregação para os Institutos de Vida Consagrada,
presidida pelo cardeal brasileiro João Braz de Aviz, de desferir um golpe nos
Franciscanos da Imaculada?” Se há uma Congregação religiosa que vive do
espírito do Evangelho é justamente essa, diz De Mattei.
“Há, por outro lado, visível descompasso (algo que desconcerta), quando
consideramos que, enquanto se fazem referências contínuas à simplicidade do
Evangelho, a Cúria se mantém inalterada com suas estruturas. O machado
cai sobre o pequeno, sobre os mais fracos, sobre os fiéis à tradição. Se
Francisco quer inclinar-se para os mais fracos, não precisa ir muito longe,
basta se voltar para as muitas comunidades de fiéis que permanecem tenazmente
ligadas ao Magistério e à moral perene. Sim, para os que são ultrajados,
isolados e perseguidos pelos respectivos bispos, ou pelos dicastérios da Cúria. Procurar o mais
distante esquecendo o mais próximo, eis um falso conceito de amor”. De Mattei
explica que não está em discussão o fato de o Pontífice se dirigir à periferia,
aos mais distantes. Acima de tudo, o que importa é que “o caminho para chegar
aos mais distantes passa pelos mais próximos, e não há atalhos possíveis. E
esses próximos hoje são os católicos ligados à tradição. Se há alguém
precisando de misericórdia e ternura (palavras usadas por Francisco no Rio), é
o caso destes”.
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