terça-feira, 16 de abril de 2013

DO DESCANSO À OCIOSIDADE - A EVAGATIO MENTIS



Nota do Blog: Foram introduzidas as correções 
necessárias para a correta intelecção da matéria.



originalmente publicado em 29/7/2010





Conta e Tempo



Deus pede estrita conta do meu tempo
E eu vou, do meu tempo, dar-lhe conta.
Mas, como dar, sem tempo, tanta conta.
Eu, que gastei, sem conta, tanto tempo?

Para dar minha conta feita a tempo,
O tempo me foi dado, e não fiz conta;
Não quis, sobrando tempo, fazer conta.
Hoje, quero acertar conta, e não há tempo.
Oh, vós, que tendes tempo sem ter conta,
Não gasteis vosso tempo em passatempo.
Cuidai, enquanto é tempo, em vossa conta!

Pois, aqueles que, sem conta, gastam tempo,
Quando o tempo chegar, de prestar conta,
Chorarão, como eu, o não ter tempo…

(Frei Antônio das Chagas, Séc. XVII) 



Tradicionalmente, a filosofia atribui duas partes à natureza humana, o corpo e a alma, unidos num só tudo, de modo que o homem não é apenas uma das duas partes, mas a junção de ambas.

Em razão de sua parte corpórea, o homem é um ser material. A matéria é definida como “pura potência”, porque sempre pode ser mudada e amoldada, não possuindo determinação própria, que recebe de fora, e que constitui a sua forma. 
Justamente por ser a matéria uma “indeterminação determinável”, isto é, pura capacidade de receber modelagem, é que se define alma como a “forma do corpo”. É este o princípio subsistente da vida, que, quando unida à matéria, dá a cada um a forma de homem, determinando e dispondo a constituição de cada indivíduo para formar a unidade substancial da natureza humana. Em outras palavras, a matéria é a “parte fraca”, que está aberta a uma moldagem, enquanto que a alma é a “parte forte”, porque é o princípio determinador da vida, capaz de se unir à matéria, tornando-a um corpo ordenado, para assim formar a unidade substancial da natureza humana.

Entretanto, se a alma é um princípio vital, e por isso mesmo essencialmente imutável e imortal, o corpo, por sua vez, é passível de mudança, porque a matéria pode receber ou perder as suas determinações de forma. Deste modo, a morte é o fim inevitável dos seres corpóreos, pois a união entre corpo e alma se desfará um dia, quando o corpo atingir o grau máximo de deterioração, além do qual impossibilitará a vida.

Por essa mesma razão, a fraqueza e passividade da matéria exige que o ser humano continuamente descanse. O homem possui muitas limitações físicas e psíquicas, de modo que continuamente necessita recompor-se, a fim de não cair na exaustão. A matéria não é capaz de assegurar uma atividade ilimitada ou ininterrupta, pois o desgaste total conduziria imediatamente à morte.

Assim Deus fez o homem para que, até mesmo em seu cansaço, algo da eternidade pudesse ser aprendido. Com efeito, o descanso – especialmente o sono – é figura da Vida Eterna, quando o homem terá posse do fruto de todos os seus trabalhos, e estará em completo repouso em Deus, mas um repouso ativo, porque o Céu consiste na união amorosa do homem com Deus.

Nesse sentido, o descanso é parte essencial da vida humana, seja na terra, seja, de forma análoga, na eternidade. 
Entretanto, como em qualquer ato humano, há sempre uma justa medida, que eu não compactue com falta ou excesso. Afinal, quem descansa pouco, ainda não completou o seu repouso, mas quem descansa demais, prejudica a vida ativa e deturpa o fim do repouso. Este assunto, aparentemente banal, é a raiz da esterilidade da vida espiritual de muitos, pois o descanso, fora de sua justa medida, já não é repouso, mas ociosidade. Cabe agora perguntar: no que consiste o descanso?

O descanso é um momento de passividade, quando o homem deixa as suas atividades ordinárias, sejam quais forem, e se aplica a restituir suas forças perdidas. Por conseguinte, o entretenimento pode ser uma maneira de descanso. Tendo o homem variadas formas de cansaço físico e psíquico, por muitos meios ele procurará readquirir o pleno uso de suas capacidades, desde atividades feitas em vigília até o próprio sono, realizando passeios, jogos, viagens, leitura de um agradável livro, música, conversas, banhos, exercícios físicos, etc. Mediante tais recursos,  cada um encontra sua forma peculiar de exercer um tempo de passividade, livre das preocupações diárias.

Visto assim, o descanso é como um contratempo, um fôlego, uma pausa em relação às atividades ordinárias. Não existe um descanso sem retorno, porque a natureza do descanso reside  propriamente em existir para a execução plena e saudável das obrigações rotineiras. O descanso é um repouso em direção ao movimento. Esta é a sua justa medida e razão de existir.

Saindo de seus limites, o descanso torna-se uma deformação, pondo tudo a perder à sua volta. Aqui cumpre ressaltar o papel do pecado original. Com efeito, a natureza humana está decaída pelo pecado de Adão, de modo que a inteligência dificultosamente chega à verdade, e a vontade tende ao mal. Em consequência, o pecado original contribui como causa para a distorção do descanso e da sua finalidade, impondo ao homem uma tendência ao exagero.

A partir daí, o que devia ser um momento de passividade, um repouso em direção ao movimento, torna-se evagatio mentis— divagação ou dissipação da mente. O homem perde o interesse pela finalidade, fadiga-se com os objetivos e quer apenas “vagar” em divertimentos e que só desperdiçarão o seu tempo, sem conduzi-lo a nenhuma meta.

A dissipação da mente consiste em uma abstenção da vontade e da ação. Este vício está diretamente ligado à vã curiosidade, a um simples desejo de olhar tudo, sendo que nada efetivamente lhe desperte interesse. É uma apatia completa da alma, “cansada” ou entediada pelas suas atividades, inerte nos entretenimentos que a conduzem a uma passividade mórbida.

Segundo o psiquiatra Enrique Rojas, em O homem moderno: A luta contra o vazio, este é exatamente o perfil psicológico contemporâneo. Com efeito, vivemos numa época “cansada”, mesmo sem ter trabalhado à exaustão, pois o homem moderno está entregue à passividade, a tudo o que é fácil e cômodo. A gênese desta atitude se acha no relativismo e no subjetivismo, que corrompem no homem a busca pelo Bem, reduzindo tudo a mera questão de deleite pessoal. Desse modo — ausente meta estabelecida e os meios para concretizar uma finalidade maior —, visto que todas as pulsões do homem estão corroídas pelo relativismo, o indivíduo ziguezagueia inevitavelmente, sem rumo, sem objetivo na vida, entregue apenas ao bem estar, ao consumismo, à permissividade e ao hedonismo. Tal atitude mental contribui em muito para desencadear a evagatio mentis, ao modo de um navio sem rumo, sempre à deriva.

Um católico não pode, pois, entregar-se à ociosidade, sob o risco de fazer ruir a sua vida espiritual. Deus é o nosso fim último, e deu a cada um tempo determinado para alcançá-Lo, através da constante busca da santificação. Quem se deixa dominar pela ociosidade perde o tempo que Deus lhe deu, deixando de fazer a única obrigação exigida do homem sobre a terra, e consequentemente afasta-se do seu Sumo Bem. Não se trata, contudo, de um pecado mortal, mas de um fastio pelo bem a ser feito, em virtude da passividade a que a alma está entregue. Não sem razão Santo Tomás classifica a evagatio mentis como a primeira filha da acídia, a preguiça espiritual.

A tendência ao exagero causada pelo pecado original distorce o fim do descanso, tornando-o ociosidade. Tal vício destrói no homem a vida de oração, que para muitos chega a se tornar uma indesejável obrigação, um verdadeiro fardo. Ora, sem vida de oração e entregue a um entretenimento vazio e sem relação com a vida ativa – porque o exagero secciona o descanso da sua natural vinculação com as obrigações ordinárias –, facilmente a imperfeição torna-se pecado, e para que a alma caia em falta grave muito pouco falta, tendo em vista a exposição sem rotineira ao pecado venial. Em resumo, a preguiça, a ociosidade e a divagação da mente minam o desenvolvimento das atividades do homem, porque ele passa a administrar imprudentemente o seu tempo. E uma alma entregue à passividade tem dificuldade em manter a vida de oração, de modo que, caso não venha a corrigir radicalmente esse defeito, cairá na indiferença com relação às coisas da Religião, o que pode culminar no pecado mortal. Pessoas que não corrigem a deficiente vida de oração, vivendo numa constante dissipação de espírito, facilmente caem, porque a alma está longe da fonte que a faz permanecer na graça e no amor a Deus.

Tais constatações tornam-se mais profundas quando se observam os preciosos ensinamentos do Abade Jean-Baptiste Chautard em A alma de todo o apostolado. Com efeito, nesse livro D. Chautard explica que a vida ativa – ou seja, a vida de apostolado – é resultado e manifestação da vida contemplativa, isto é, da vida de oração. Só tem apostolado frutífero e eficaz quem o faz brotar de uma autêntica e profunda vida de oração. Deus é a causa primeira, e aquele que confia seu apostolado a Deus, pela oração, obtém todo o sucesso, porque não esperou o mero favorecimento das circunstâncias. A Sagrada Escritura ensina que Deus ouve a oração do humilde, mas abate a do orgulhoso. Deste modo, quem reconhece a sua absoluta e radical dependência de Deus, faz toda a sua vida ativa depender de uma incondicional entrega a Deus pela oração.

O católico é aquele que sabe reconhecer, assim como está na Salve Rainha, que este mundo é um desterro, porque estamos apenas conquistando, dia após dia, a posse da Vida Eterna, isto é, estamos aqui de passagem. Por esta razão, um verdadeiro católico faz tudo tendo em vista a glória de Deus e salvação da própria alma. Quando pratica a autodisciplina, sacrifícios, aceita renúncias, ele o faz porque tais práticas o conduzem a Deus. Caso contrário, nem fariam sentido. Portanto, manter uma autêntica vida de oração equivale a reconhecer que esta vida só merece ser vivida em razão da salvação eterna, e por isso mesmo não há tempo para divertimentos irresponsáveis, nem para entretenimentos vazios. Tudo quanto fazemos é por Deus, e não por nós mesmos. Mesmo quando o homem descansa, está recuperando forças para adquirir maior ânimo em face das batalhas e lutas que terá de enfrentar. Assim como aqueles três mancebos, que foram cantando para a fornalha na qual seriam consumidos, também o católico vai alegremente enfrentando as provações, sofrimentos e contrariedades desta vida, sabendo serem estes os meios pelos quais se une a Jesus no Calvário, morre para a glória deste mundo, e ganha a verdadeira felicidade, que não pode encontrar na terra, mas só em Deus. Que o Sagrado Coração de Jesus, de onde a lança fez jorrar Sangue e água, seja para nós um verdadeiro refúgio de todas as falsas consolações do mundo, e que nos dê o repouso e o descanso que nossas almas procuram, aqui na terra em forma de graça, e na eternidade, em forma de glória.




Brevíssimo exame de consciência


1. Quando desejo descansar e relaxar, qual é a atividade que costumo empreender? Em qual entretenimento ou divertimento me ocupo usualmente? O que faço para adquirir um momento de passividade?

2. Agora que já pensou a respeito, reflita se tem empregado tempo suficiente para descansar e readquirir as forças gastas, o ânimo perdido e a motivação necessária para continuar as atividades ordinárias. Este tempo é suficiente ou muito além do necessário?

3. Para colaborar na autodisciplina, tem empregado um tempo determinado para os divertimentos? Escolhe um horário do dia, com começo e fim, para se aplicar em atividades de descanso, ou confia demasiadamente em seu próprio autocontrole, de modo que sempre acha que pode parar quando bem entende?

4. Tem comprometido as suas obrigações – especialmente as orações do dia – por causa dos entretenimentos? Aplica nele um tempo indeterminado, enquanto para a oração e para as outras atividades tem empregado o tempo que sobra? Tem procurado corrigir esta falha, disciplinando a própria vida de oração com horários regulares para rezar, de modo que nenhuma outra atividade o prejudique?

5. Julga que é facilmente vencido pela preguiça e pela ociosidade? Tem disciplinado as atividades, de modo que tenha um horário para rezar e estudar, e outro para descansar? Tem procurado utilizar prudentemente as diversões, ou elas se constituem como verdadeira perda de tempo, de modo que outros entretenimentos ser-lhe-iam mais saudáveis e produtivos?

6. Tem considerado que Deus lhe dá o tempo para empregá-lo na sua santificação e salvação? Considera que esta vida é passageira, e que aqui jamais terá um repouso permanente e completo? Considera que este mundo é um desterro, porque está aqui para conquistar a vida eterna? Tem administrado sábia e prudentemente o tempo, ou confia que sempre haverá tempo para corrigir os seus desperdícios?

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