quarta-feira, 3 de abril de 2013

A renúncia de Bento XVI e a eleição de Francisco. Pergunta: quem é o Papa?



"O papado não pode ser transformado em uma monarquia constitucional em que o rei reina, mas não governa. Tal mudança de governo não feriria apenas sua forma histórica, mas a própria essência divina do Papado."


Por Roberto de Mattei 



Foglio Quotidiano, 28-3-2013 | Tomado em: Fratres in Unum.com - Tradução: Hélio Viana*


A pergunta “quem é o Papa?” surge espontaneamente toda vez que um novo Pontífice é eleito, sobretudo quando seu nome e sua história pessoal são desconhecidos do grande público. Tal não foi o caso do cardeal Joseph Ratzinger, romano de adoção, após tantos anos passados como prefeito da Congregação para a Fé; mas foi o caso de Karol Wojtyla, vindo de Cracóvia, e o é hoje o de Jorge Mario Bergoglio, proveniente de uma diocese ainda mais distante, nos confins do mundo, como ele disse no dia de sua eleição.



É compreensível que nos primeiros dias e semanas após a eleição procuremos sondar o passado próximo ou remoto do novo Pontífice, conhecer suas idéias, tendências e hábitos, para inferir, a partir de suas palavras e ações do passado, o programa do novo pontificado. O volume El Jesuita. Conversaciones con el cardenal Jorge Bergoglio s.j. (Vergara, Buenos Aires 2010, por Sergio Rubin e Francesca Ambrogetti) já delineia o rosto de um papabile e merece ser conhecido. Menos conhecida é a reação indignada que ao referido volume dedica um estudioso argentino de orientação tradicional, Antonio Caponnetto (La Iglesia traicionada, Editorial Apóstol Santiago, Buenos Aires, 2010). Tampouco se pode entender quem seja o novo Pontífice sem conhecer o julgamento que dele faz o padre Juan Carlos Scannone, um jesuíta discípulo de Karl Rahner que o teve como aluno e que inscreve o arcebispo de Buenos Aires na “escola argentina” da teologia da libertação (La Croix, 18 de março de 2013).



A “opção preferencial pelos pobres” do cardeal Bergoglio está enraizada em particular no ensinamento de Lucio Gera e Rafael Tello, expoentes de uma “teologia do povo” caracterizada pela substituição da ideologia da revolução armada pela praxis da pobreza. Analisando em La Nación de 21 de março o “Método Bergoglio de governar”, Carlos Pagni explica a razão teológica pela qual a “periferia” ocupa o lugar central na paisagem ideológica do arcebispo Bergoglio. O pobre para ele não é uma realidade sociológica para ajudar, mas um sujeito teológico do qual aprender: “Esta atitude pedagógica tem uma raiz religiosa: a relação do povo com Deus seria mais genuína porque carece de contaminações materiais”. Também Maurizio Crippa, no Foglio de 23 de março (“A pobreza é um sinal teológico, não sociologia”) enfatiza este aspecto, recordando as origens remotas dessa atitude: “A aposta é sempre transformar a Igreja na pessoa dos pobres em marcha, melhor ainda se autoconvocados: dos Pobres de Lyon, mais tarde chamados valdenses, a todas as correntes ortodoxas ou heréticas que atravessaram a Idade Média, como os Humilhados e Frei Dolcino de Novara, com desvios que chegaram até Tolstoi; e assim em diante, num percurso de privação e regeneração que retorna idêntico, desde as ‘Cinco chagas da Santa Igreja’ de Antonio Rosmini – a quinta é precisamente ‘a escravidão aos bens eclesiásticos’ – até as teologias conciliares da Igreja pobre”.



Trata-se de temas que seria útil aprofundar. Mas, no fundo, não é esse o ponto. A vida de um homem, mesmo de um Papa, não se mede pelos gestos do passado; ela muda a cada dia e pode a cada dia ser redefinida por mudanças, maturações e correções de rota novas e inesperadas.
Mais do que despertar tais interrogações a que só o futuro poderá responder, cada mudança de pontificado deveria proporcionar ocasião para se refletir sobre o que o novo eleito representa; refletir sobre o Papado como instituição mais do que sobre o Papa como pessoa individual. E isso especialmente após um período no qual, entre 11 de fevereiro e 13 de março de 2013, a própria constituição do Papado parece ter sido profundamente ferida.



O primeiro golpe dessa flagelação foi a renúncia de Bento XVI ao pontificado, um evento canonicamente legítimo, mas de impacto histórico devastador. “Um Papa que renuncia – observou Massimo Franco – já é um evento memorável na história moderna. Mas um Pontífice que o faz na plena posse de suas faculdades mentais, dando como razão simplesmente a fragilidade proveniente da idade, quebra uma tradição plurissecular” (A crise do império vaticano, Mondadori, Milão 2013, p. 9).



Um segundo golpe à instituição foi a escolha por Bento XVI de se autodefinir como “Papa emérito”, conservando o nome e a veste pontifícia e continuando a viver no Vaticano. Canonistas renomados como Carlo Fantappié destacaram a novidade do gesto, sublinhando como “a renúncia do Papa Bento XVI colocou graves problemas a respeito da constituição da Igreja, da natureza da primazia do Papa, bem como quanto ao âmbito e a extensão dos seus poderes após a cessação do ofício” (“Papado, sede vacante e ‘Papa emérito’. Equívocos a serem evitados”, em chiesa.espresso.repubblica.it/articolo/1350457).


A coexistência de um Papa que se apresenta como Bispo de Roma e de um bispo (porque tal é hoje Joseph Ratzinger) que se autodefine como Papa oferece a imagem de uma Igreja “bicéfala” e evoca inevitavelmente as épocas dos grandes cismas. Não se compreende a este propósito a ênfase midiática que as autoridades vaticanas quiseram dar ao ‘encontro dos dois papas’, no dia 23 de março, em Castel Gandolfo. As imagens que deram volta ao mundo e que o próprio Osservatore Romano publicou na primeira página no dia seguinte é a de dois homens que a linguagem dos símbolos coloca em pé de absoluta paridade, impedindo discernir de forma imediata quem fosse o autêntico Papa. O evento também contrasta com a garantia dada pela assessoria de imprensa da Santa Sé de que depois de 28 de fevereiro Bento XVI renunciaria ao cenário midiático, retirando-se no silêncio e na oração. Não teria sido mais prudente se o encontro tivesse se dado longe dos holofotes? Ou existe por acaso uma estratégia voluntária atrás dessa escolha midiática? Qual?



Estudioso da História do Cristianismo, Roberto Rusconi descreveu por sua vez o que vai resultar da encíclica inacabada de Joseph Ratzinger sobre a fé, em complemento das já promulgadas sobre a caridade e esperança. “A encíclica não terminada – observa Rusconi – poderia ser publicada depois como mais um texto de Joseph Ratzinger, quem durante seu pontificado sustentou repetidamente que seus últimos livros não deveriam ser considerados de nenhum modo como uma expressão direta de seu magistério pontifício” (Roberto Rusconi, A grande recusa. Por que um papa renuncia, Morcelliana, Brescia 2012, pp. 143-144). Se isso acontecer, o resultado vai ser o de minar pela base não só a autoridade dos documentos magisteriais promulgados anteriormente por Bento XVI, mas também daqueles futuramente exarados pelo seu sucessor, porque se dissolveria a distinção entre aquilo que é ato magisterial e aquilo que não é ato magisterial, diluindo o conceito de infalibilidade, do qual com freqüência se fala despropositadamente.


Há defensores declarados de um redimensionamento do Papado, os quais geralmente invocam um texto de João Paulo II, na encíclica Ut unum sint, de 25 de maio de 1995, na qual o Papa Woytila se diz disposto a “encontrar uma forma de exercício do primado que, sem renunciar de modo algum ao que é essencial da sua missão, se abra a uma situação nova” (nº 95). Daí a distinção, feita por Giuseppe Alberigo e pela escola de Bolonha, entre a essência imutável do Papado e “as formas de exercício” nas quais ele se expressa na história (“Formas históricas de governo da Igreja”, em “O Reino”, 1º de dezembro de 2001, pp. 719-723). O inimigo de fundo é a idéia da “soberania pontifícia”, supostamente nascida na Idade Média, que estaria na origem do desvio do Papado de seu espírito original. A partir de meados do século XV, segundo outro historiador de Bolonha, Paolo Prodi, ter-se-ia iniciado uma metamorfose do Papado que modificou a instituição como um todo, levando não só a uma mudança das características institucionais dos Estados Pontifícios, convertidos em um principado temporal, mas também a uma reformulação do conceito de soberania eclesiástica inspirada na soberania política. Vitorioso sobre o conciliarismo, o Papado teria sido, no entanto, derrotado pelo Estado moderno, pois enquanto a Igreja se secularizava, o Estado se sacralizou (O Sumo Pontífice, Il Mulino, Bologna, 1983, p. 306). Porém, para os mesmos autores, a partir da Revolução Francesa, a Igreja, numa dialética frutífera com o mundo moderno, teria começado a se libertar dos grilhões do passado. Apesar de algumas fases regressivas, representadas principalmente pelos pontificados de Pio IX, Pio X e Pio XII, o Concílio Vaticano II marcaria finalmente, de acordo com Alberigo e seus discípulos, o momento da “virada”, descartando a dimensão jurídico-institucional da Igreja e abraçando uma nova visão desta, fundada nos conceitos de “comunhão” e de “povo de Deus”.



Essas teses foram novamente propostas, no plano teológico, em um recente livro dedicado ao ministério do Papa pelo decano dos eclesiólogos italianos Severino Dianich (Por uma teologia do Papado, Cinisello Balsamo, San Paolo, 2010). O fulcro da sua tese é a passagem de uma visão jurídica da Igreja, com base no critério de competência, a uma concepção sacramental, baseada na idéia de comunhão. O cerne do problema remonta à discussão havida no Vaticano II sobre a interpretação do nº. 22 da Lumen Gentium e da Nota prévia inserida por Paulo VI nesse documento, durante o que os progressistas apelidaram de “semana negra” do Concílio. As relações entre o Papa e os bispos, depois do Vaticano II, de acordo com Dianich, não podem mais ser baseadas na delegação e na subordinação. O Papa não governa “do alto” a Igreja, mas a guia na ordem da comunhão. Seu poder de jurisdição procederia, de fato, do sacramento da Ordem. E, sob esse aspecto sacramental, o Papa não é superior aos bispos. Ele, antes de ser Pastor da Igreja universal, é o Bispo de Roma, e a primazia que ele exerce sobre a Igreja universal não é de governo, mas de amor, porque, ontologicamente, como bispo, o Papa está em pé de igualdade com os outros bispos. Por isso Dianich quereria atribuir maior poder ao colégio episcopal, atribuindo a este a possibilidade de legislar com autoridade. O Papa deveria exercer de maneira nova o seu Primado, associando ao seu poder órgãos deliberativos e consultivos, tais as conferências episcopais, os sínodos ou até órgãos permanentes que o assistiriam no governo da Igreja. Tratar-se-ia de um Primado de “honra” ou de “amor”, mas não de governo e de jurisdição sobre a Igreja.



Porém, em primeiro lugar, essas teses são historicamente falsas. A história do Papado não é de fato a história de formas históricas diferentes e conflitantes entre si, mas a evolução homogênea do princípio de suprema jurisdição presente nas palavras que Jesus Cristo disse a São Pedro, e somente a ele: “Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja” (Mt 16, 14-18). Quando São Clemente (ano 92-98 ou 100), terceiro sucessor de Pedro como Bispo de Roma, no início do império de Nerva (por volta de 97), interveio para restabelecer a unidade na igreja de Corinto, abalada por uma violenta discórdia, ele evocou o princípio da sucessão estabelecida por Cristo e pelos Apóstolos, exigindo obediência e até mesmo ameaçando com sanções se as suas disposições não fossem seguidas (Carta Propter subitas aos Coríntios, in Denz-H, nn. 101-102). O tom autoritário da carta e a veneração com que foi recebida são uma prova clara da Primazia do Bispo de Roma no final do primeiro século.



Cerca de dez anos mais tarde, Santo Inácio, Bispo de Antioquia, na viagem de Antioquia para Roma, onde foi martirizado, escreveu uma carta aos romanos na qual ele reconhece à Igreja de Roma uma posição de preeminência sobre toda a Igreja universal, dizendo: “Vós haveis instruído os outros e eu desejo que permaneçam firmes aquelas coisas que prescrevestes com o vosso ensinamento” (Epístola aos Romanos, 3, 1). Sua afirmação, tantas vezes mal interpretada, de que a Igreja de Roma “preside ao ágape”, deve ser entendida em seu sentido próprio. O “ágape” não é uma mera “caridade” genérica, mas, para Inácio, é a própria Igreja universal (que ele é o primeiro a chamar de “católica”), unida pelo vínculo do amor.
Ao longo dos séculos, o Primado pontifício, concebido como princípio ativo e central do governo da Igreja universal, permaneceu como a nota característica do Papado, assim como a constituição monárquica e hierárquica continuou a caracterizar a Igreja. Nas diferentes épocas que a Igreja percorreu, cada vez que o Papado esteve ausente ou foi fraco ou ineficaz, produziram-se cismas, heresias, agitações religiosas e sociais. Pelo contrário, as grandes reformas e a revitalização da Igreja se deram com papas que exerceram o governo usando a plenitude de seus poderes, de São Gregório VII a São Pio X.



O múnus específico do Sumo Pontífice não consiste em seu poder de Ordem, que ele tem em comum com todos os outros bispos do mundo, mas em seu poder de jurisdição, que o distingue de qualquer outro bispo, porque só no caso do Papa este poder é pleno e absoluto, e fonte do poder dos outros bispos. O poder de Magistério faz parte do Primado de jurisdição, e a infalibilidade constitui a expressão mais alta e perfeita do Primado pontifício, uma soberania ainda mais necessária do que aquela das sociedades temporais.


O poder de jurisdição é eminentemente um poder do governo. O Papa é tal porque governa a Igreja exercendo uma jurisdição doutrinária e disciplinar que não pode delegar senão parcialmente: não existe de fato uma diferença entre o poder jurídico de governo e o seu exercício, porque é inimaginável um governo cuja característica seja a de não governar. A essência do Papado tem neste sentido características imutáveis​​: é um governo absoluto que não pode ser delegado a outros no todo, mas apenas em parte. O Papado é uma monarquia absoluta na qual o Sumo Pontífice reina e governa, e que não pode ser transformada em uma monarquia constitucional em que o rei reina, mas não governa. Uma tal mudança de governo não feriria apenas sua forma histórica, mas a própria essência divina do Papado.


Não se trata de um debate abstrato, mas de um problema teológico com efeitos históricos concretos. Nossa época de mundialização dos mercados e de revolução informática assistiu ao colapso dos estados nacionais, substituídos por novos poderes, financeiros e midiáticos. Mas o caos, a fragmentação e o conflito dos novos cenários derivam precisamente desta perda de soberania, da qual é eloquente exemplo a União Europeia nascida do Tratado de Maastricht, que não se apresenta como um “super-Estado” europeu, mas como um não-estado, caracterizado pela multiplicação dos centros de decisão e pela confusão de poderes.


A autoridade e o poder dos estados nacionais e das democracias representativas se desintegram e o vazio é preenchido por lobbies ideológicos e financeiros, visíveis ou ocultos. Deverá a Igreja Católica remodelar-se com base num processo similar de pulverização, se autodemolindo? Face ao relativismo, deverá a Igreja deixar de lado a infalibilidade, como pediu o pastor valdense Paulo Ricca (​​Il Foglio, 19 de março de 2013), para se apresentar ao mundo fraca e demissionária, ou seja, não mais servindo-se desse carisma, que só ela possui, para contrapor sua soberania religiosa e moral aos escombros da modernidade? A alternativa é dramática, mas inevitável.



O certo é que a pergunta “quem é hoje o Papa?”, antes que à mídia deve ser dirigida à Teologia, à História e ao Direito Canônico da Igreja. Eles nos respondem que, por trás das pessoas de Bento XVI e de Francisco, há um trono papal instituído pelo próprio Cristo. O Papa São Leão Magno, que pode ser considerado o teólogo mais completo do Papado no primeiro milênio, explicou com clareza o significado da sucessão petrina, resumindo-a na fórmula: “Indigno herdeiro de São Pedro”. O Papa se tornava herdeiro de São Pedro no que dizia respeito à sua natureza jurídica e aos seus poderes objetivos, mas não em relação à sua situação pessoal e aos seus méritos subjetivos. A distinção entre o cargo e o detentor do cargo, entre a pessoa pública do Papa e a sua pessoa privada, é fundamental na história do Papado.



O Papa é o Vigário de Cristo que em seu nome e pelo seu mandato governa a Igreja. Mais do que uma pessoa privada é uma pessoa pública; mais do que um homem é uma instituição; mais do que o Papa é o Papado, no qual se resume e concentra a Igreja, que é o Corpo Místico de Cristo.



* A quem agradecemos a gentileza de nos fornecer a sua tradução.

Nota do blogue: Grifos e destaques por Core Catholica.

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