terça-feira, 6 de janeiro de 2015

A perfeita alegria


I FIORETTI de São Francisco de Assis - Capítulo VIII


Como a caminhar expôs São Francisco a frei Leão as coisas que constituem a perfeita alegria




   "Vindo uma vez São Francisco de Perusa para Santa Maria dos Anjos com frei Leão, em tempo de inverno, e o grandíssimo frio fortemente os atormentasse, chamou frei Leão, o qual ia mais à frente, e disse assim: Irmão Leão, ainda que o frade menor desse na terra inteira grande exemplo de santidade e de boa edificação, escreve todavia, e nota diligentemente que nisso não está a perfeita alegria. E andando um pouco mais, chama pela segunda vez: Ó irmão Leão, ainda que o frade menor desse vista aos cegos, curasse os paralíticos, expulsasse os demônios, fizesse surdos ouvirem e andarem coxos, falarem mudos, mais ainda, ressuscitasse mortos de quatro dias, escreve que nisso não está a perfeita alegria. E andando um pouco São Francisco gritou com força: Ó irmão Leão, se o frade menor soubesse todas as línguas e todas as ciências e todas as coisas futuras, mas até mesmo os segredos das consciências e dos espíritos, escreve que não está nisso a perfeita alegria. Andando um pouco além, São Francisco chama com força: Ó irmão Leão, ovelhinha de Deus, ainda que o frade menor falasse com língua de anjo, e soubesse o curso das estrelas e as virtudes das ervas; e lhe fossem revelados todos os tesouros da terra e conhecesse as virtudes dos pássaros e dos peixes e de todos os animais e dos homens e das árvores e das pedras e das raízes e das águas, escreve que não está nisso a perfeita alegria. E caminhando um pouco São Francisco chamou em alta voz: Ó irmão Leão, ainda que o frade menor soubesse pregar tão bem que convertesse todos os infiéis a fé cristã, escreve que não está nisso a perfeita alegria. E durando este modo de falar pelo espaço de duas milhas, frei Leão, com grande admiração, perguntou-lhe e disse: Pai, peço-te, da parte de Deus, que me digas onde está a perfeita alegria. E São Francisco assim lhe respondeu: Quando chegarmos a Santa Maria dos Anjos, inteiramente molhados pela chuva e transidos de frio, cheios de lama e aflitos de fome, e batermos à porta do convento, e o porteiro chegar irritado e disser: Quem são vocês? E nós dissermos: Somos dois dos vossos irmãos, e ele disser: Não dizem a verdade; são dois vagabundos que andam enganando o mundo e roubando as esmolas dos pobres; fora daqui; e não nos abrir e deixar-nos estar ao tempo, à neve e à chuva com frio e fome até à noite: então, se suportarmos tal injúria e tal crueldade, tantos maus tratos, prazenteiramente, sem nos perturbarmos e sem murmurarmos contra ele e pensarmos humildemente e caritativamente que o porteiro verdadeiramente nos tinha reconhecido e que Deus o fêz falar contra nós: ó irmão Leão, escreve que nisso está a perfeita alegria. E se perseverarmos a bater, e ele sair furioso e como a importunos malandros nos expulsar com vilanias e bofetadas dizendo: Fora daqui ladrõezinhos vis, vão para o hospital, porque aqui ninguém lhes dará comida nem cama; se suportarmos isso pacientemente e com alegria e de bom coração, ó irmão Leão, escreve que nisso está a perfeita alegria. E se ainda, constrangidos pela fome e pelo frio e pela noite, batermos mais e chamarmos e pedirmos pelo amor de Deus com muitas lágrimas que nos abra a porta e nos deixe entrar, e se ele mais escandalizado disser: Vagabundos importunos, pagar-lhes-ei como merecem: e sair com um bastão nodoso e nos agarrar pelo capuz e nos atirar ao chão e nos arrastar pela neve e nos bater com o pau de nó em nó: e se nós suportarmos todas estas coisas pacientemente e com alegria, pensando nos sofrimentos de Cristo bendito, as quais devemos suportar por seu amor; ó irmão Leão, escreve que aí e nisso está a perfeita alegria, e ouve, pois, a conclusão, irmão Leão. Acima de todas as graças e de todos os dons do Espírito Santo, os quais Cristo concede aos amigos, será o de vencer-se a si mesmo, e voluntariamente pelo amor suportar trabalhos, injúrias, opróbrios e desprezos, porque de todos os outros dons de Deus não nos podemos gloriar por não serem nossos, mas de Deus, do que diz o Apóstolo: Que tens tu que te gloriares como se o tivesses de ti? Mas na cruz da tribulação de cada aflição nós nos podemos gloriar, porque "isso não é nosso" e assim diz o Apóstolo: "Não me quero gloriar, senão na cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo". Ao qual sejam dadas honra e glória in seculaseculorum. Amém.

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