segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Cinco Cardeais e a nouvelle théologie


Walter Kasper

Paulo Evaristo Arns














Henri de Lubac


Yves Congar
Jean Guénolé Louis Marie Daniélou








1] Em artigos recentes publicados neste site, expus o caráter heretizante do Vaticano II (1) e sua ruptura com a Tradição (2). Em ambos os casos, ficava claro que o Concílio se inspirou na nouvelle théologie, corrente de orientação inconfundivelmente modernista, condenada por Pio XII em 1950 na EncíclicaHumani Generis. Minha argumentação nesse sentido fundava-se, em parte, em artigo publicado em 12 de abril último no Osservatore Romano pelo Cardeal Walter Kasper, intitulado “Um Concílio ainda em Caminho”.

2] Amigos e leitores me pedem que esclareça melhor o papel da nouvelle théologie na atual crise da fé. Nas presentes linhas não pretendo esgotar a matéria sob o ponto de vista doutrinário, histórico ou qualquer outro. Quero apenas pôr em realce o modernismo extremado que imperava em certos círculos teológicos quando da publicação da Encíclica Humani Generis, bem como o seu desenvolvimento nas décadas seguintes, e até nossos dias. Para isso me valho de depoimento do Cardeal franciscano Paulo Evaristo Arns, Arcebispo de São Paulo por mais de 27 anos, de 1970 até 1998, em seu livro “Da Esperança à Utopia – Testemunho de uma Vida” que veio a lume em 2001 (3).

Um frade franciscano estuda em Paris

3] Nesse livro, o autor relata que, em fins de 1947, já ordenado sacerdote, foi estudar em Paris, onde permaneceu até 1952, quando se doutorou na Sorbonne. Dentre os escritores da época, refere Sartre, de quem diz que era “considerado” [sic!] de esquerda ou comunista (p. 80); e refere também os futuros cardeais Daniélou e de Lubac, e ainda “grandes autores dominicanos, entre eles o futuro cardeal Yves Congar” (p. 80).

4] O purpurado prossegue: “A única coisa que nos feriu profundamente foi a intervenção do Papa Pio XII, ou seja [sic!], da Cúria Romana, na chamada nouvelle théologie. Eu frequentava, sem inscrever-me, todos os cursos e conferências de Daniélou, de Congar e dos demais dominicanos. Devo dizer que os admirava, pensando até em imitá-los ao voltar para a pátria” (p. 80).

5] “Um dia se contou – narra ele – (...) que o mestre Daniélou e os demais colegas da Nova Teologia haviam sofrido rude admoestação e até restrições em suas publicações, porque a nouvelle théologie estava sob suspeita. Assisti à reunião dos alunos (...) e verifiquei que a maioria iria abandonar o estudo sistemático da teologia para consagrar-se a outras tarefas, ou simplesmente à pastoral, que vinha sendo renovada aos poucos na França” (pp. 80-81).

6] “Também os padres operários e as Missões da França – escreve o Cardeal Arns – receberam diversas admoestações que feriram nosso espírito de jovem e diminuíram nosso entusiasmo, que era grande, pela ação de Roma no pós-guerra. Só mais tarde, no Brasil, quando foi posta em discussão a Teologia da Libertação, é que (...) vim a sentir o mesmo temor e a manifestar a mesma apreensão ao secretário de estado de Sua Santidade João Paulo II, cardeal Agostinho Casaroli” (p. 81).

Comunismo e Teologia da Libertação

7] A visão do mundo e da Igreja que o Cardeal Arns revela tem uma lógica interna pela qual se estende a todos os campos do pensar e do agir humanos. Assim, não é de admirar que ele qualifique como “jovens idealistas” (pág. 302), e como “a juventude idealista e a intelectualidade mais esclarecida” (pág. 436), os comunistas e comunistóides que em 1964 preparavam confessadamente um golpe para tomar o poder no Brasil, e que posteriormente passaram à clandestinidade, praticando assaltos a bancos, sequestros, assassinatos.

8] E, igualmente, não é de admirar que em 1984, em Roma, ele haja defendido o frade franciscano Leonardo Boff, paladino da Teologia da Libertação, perante a Congregação para a Doutrina da Fé, fato que teve grande repercussão na imprensa mundial. Qualificando o acusado como “um de meus mais queridos ex-alunos”, “cuja ação só favorecia o nosso trabalho pastoral em São Paulo e na América Latina”, o Cardeal Arns informa o resultado do que chama de “diálogo” então havido com o Cardeal Ratzinger, Prefeito da Congregação, com um lamento profundo: “infelizmente o silêncio foi imposto a Leonardo Boff” (pág. 253). 

Cardeal Kasper, nouvelle théologie e Vaticano II

9] Não se pode deixar de relacionar o que diz o Cardeal Arns sobre a nouvelle théologie, com passagens do Cardeal Kasper no Osservatore Romano de 12 de abril, manancial inesgotável de sugestões para análise do Concílio. Ali se lê que a grande maioria dos Padres conciliares abraçou o otimismo do aggiornamento de João XXIII, e “quis acolher as demandas dos movimentos de renovação bíblica, litúrgica, patrística, pastoral e ecumênica, surgidos entre as duas guerras mundiais”. Ora, os textos do Cardeal Arns retro citados mostram à farta o que é sabido por todos os estudiosos da matéria, e por ninguém negado: que o principal desses movimentos de entre-guerras é a nouvelle théologie, condenada por Pio XII.

10] Lê-se ainda naquele artigo do Cardeal Kasper que a maioria dos Padres Conciliares, acolhendo as “demandas” dos referidos movimentos de renovação, quis “entrar em diálogo com a cultura moderna”, o que constituiu “o projeto de uma modernização, que não queria nem podia ser modernismo”. Ora, é igualmente sabido e incontestado, à luz da Tradição católica, que a nouvelle théologie nada mais é do que uma das versões do modernismo. É o que mostra o ínclito Pe. Garrigou-Lagrange no texto sobre o conceito modernista de verdade transcrito em anterior artigo deste site (4), onde fica claro que a nouvelle théologieredunda no próprio modernismo”. Portanto, o chamado “projeto de modernização” do Concílio, que conta com viva aprovação do Cardeal Kasper, é pleno modernismo.

Dos cinco referidos Purpurados

11] O padre jesuíta francês Jean Guénolé Louis Marie Daniélou (1905-1974) foi perito conciliar, criado Cardeal por Paulo VI em 1969.

12] O frade franciscano brasileiro Paulo Evaristo Arns nasceu em 1921. É Arcebispo emérito de São Paulo. Foi elevado ao Cardinalato em 1973, pelo Papa Paulo VI.

13] O padre jesuíta francês Henri de Lubac (1896-1991) difundia suas doutrinas novas já antes da segunda guerra mundial. Teve sua atividade docente restringida por Roma nas vésperas da publicação da Encíclica Humani Generis, com sanções mais graves em seguida. Sob João XXIII, foi perito na preparação do Vaticano II, e depois perito conciliar. Foi elevado ao cardinalato por João Paulo II em 1983. O Papa Francisco o tem como um de seus pensadores franceses contemporâneos prediletos (5).

14] O frade dominicano francês Yves Congar (1904-1995) defendia, logo depois da segunda guerra mundial, doutrinas novas sobre o ecumenismo, a colegialidade e outras matérias, o que levou o Vaticano a impor-lhe, em 1947, restrições na atuação docente. Seu livro “Verdadeira e Falsa Reforma na Igreja” foi proibido por Roma em 1952. Foi afastado do ensino em 1954. Em 1960, João XXIII o convidou para perito da comissão teológica preparatória do Vaticano II. Foi, depois, perito conciliar. De 1969 a 1985 fez parte da Comissão Teológica Internacional. Foi nomeado Cardeal em 1994, por João Paulo II.

15] O sacerdote Walter Kasper nasceu em 1933 na Alemanha. Foi assistente de Hans Küng. João Paulo II o nomeou Bispo de Rottenburg-Stuttgart em 1989, e Cardeal em 2001. Em 2010 foi aceito seu pedido de renúncia, por limite de idade.

Nouvelle théologie e Vaticano II

16]  A influência profunda da nouvelle théologie no Concílio Vaticano II é pacificamente admitida pelos autores. Jurgen Mettepenningen, por exemplo, da Faculdade de Teologia e Estudos Religiosos da Universidade Católica de Louvain, cujos trabalhos sobre o assunto, de orientação progressista, têm tido ampla divulgação internacional, declara: “nouvelle théologie (...) foi o nome de um dos movimentos mais dinâmicos e fascinantes na teologia católica no século XX. Embora inicialmente condenada pelo Papa Pio XII em 1946, e posteriormente em sua Encíclica Humani generis, de 1950, tornou-se influente na preparação do Concílio Vaticano II”. Esse texto consta em livro cujo título já fala por si, indicando que a nouvelle théologie é herdeira do modernismo e precursora do Vaticano II:“Nouvelle Théologie - New Theology - Inheritor of Modernism, Precursor of Vatican II” (6).

17] O papel dos peritos da nouvelle théologie no Concílio foi decisivo, especialmente o do Pe. Congar. Segundo a revista progressista francesaInformations Catholiques Internationales , ele inspirou diretamente dez dos dezesseis textos” (7).

18] O eminente historiador Roberto de Mattei escreve que, em seu Diário, “Congar reivindicou a paternidade da redação parcial ou total de muitos documentos: Lumen Gentium, De Revelatione, De ecumenismo, Dichiarazione sulle religioni non cristiane, Schema XIII [Gaudium et Spes], De Missionibus, De Libertate religiosa, de presbyteris” (8).

A técnica nada escolástica das insinuações e silêncios favorecedores da heresia

19] O Pe. José Francisco Hernández Medina, E.P., publicou artigo intitulado “La nouvelle théologie” (9), em que confirma plenamente o panorama geral dos fatos aqui relatados. O trabalho, com graves insinuações e silêncios favorecedores danouvelle théologie, é aqui analisado porque caracteriza bem a posição de muitos que, mantendo as aparências de fidelidade à boa doutrina, querem entretanto sintonizar-se com o modernismo dominante.

20] O Pe. Hernández Medina ali escreve que “o período entre as duas grandes guerras foi assinalado na França e também na Alemanha por um notável desenvolvimento da teologia, particularmente da católica”. Se é de estranhar essa alusão ao que seria um “notável desenvolvimento” da teologia não católica, a perplexidade cresce quando se lê, a seguir, que “a crise modernista e a publicação da Encíclica Pascendi (...) ‘impuseram’, por assim dizer, a ‘reforma da teologia’”, de modo a “‘renovar a teologia’ depois da crise modernista, procurando superar a dialética, história e dogma, ‘dialogando’ com a ciência, em continuidade com a teologia clássica”. Nessa passagem, o autor insinua que anouvelle théologie estaria na continuidade da Tradição, isto é, da “teologia clássica”; ora, é patente que tanto a nouvelle théologie quanto o Concílio em suas novidades e o chamado pós-Concílio, não se situam na continuidade da Tradição(10).

21] Adiante se lê que “a primeira reação dos meios eclesiásticos em confronto com essa nova teologia foi considerá-la semimodernista, tendente ao relativismo filosófico e dogmático e ao subjetivismo, em nome da experiência religiosa”. O Pe. Hernández Medina relata ─ sempre evitando emitir qualquer censura ─ que o Pe. Chenu, O.P., outro grande expoente da nouvelle théologie, assim lamentou a condenação desta por Pio XII: “Ao nosso pequeno colégio de trabalho nada restava senão fechar as portas”. E informa ainda que o Pe. Chenu registrou a asfixia dos seus partidários, ao falar na  “atmosfera que se tornara irrespirável”; e que só com João XXIII a nouvelle théologie teria voltado a sentir o ar oxigenado. Diz o Pe. Hernández Medina: “Com a subida de Ângelo Roncalli ao sólio pontifício (1958-1963), muitas coisas mudaram”, e a seguir cita o Pe. Congar: “João XXIII, em menos de algumas semanas, e em seguida o Concílio, criaram um clima eclesial novo. A abertura maior veio do alto. De um golpe, forças de renovação que tinham dificuldade para se manifestar abertamente podiam agora desenvolver-se”.

22] Note-se que o articulista não acusa a nouvelle théologie de heterodoxia, como um teólogo católico teria obrigação de fazer. Nem sequer insinua a mais leve censura a ela. E ─ nisso coerente consigo mesmo ─, também não louva as zelosas atitudes de São Pio X e de Pio XII ao condenarem erros de que a nouvelle théologie está encharcada. Diz apenas que, após as acusações da “primeira reação” dos meios eclesiásticos (ou da Santa Sé?), “muitas coisas mudaram”, com João XXIII e o Concílio. Ademais, as citações sem reservas do Pe. Congar e do Pe. Chenu deixam ver pelo menos a simpatia larvada pelo “clima eclesial novo”, de “abertura” vinda do alto, que afinal liberou as “forças de renovação” da nouvelle théologie.

23] No conjunto do sibilino artigo, inçado de silêncios tristemente eloquentes, o leitor recolhe a impressão de que o autor se afasta da clara posição de Pio XII e admiteque a nouvelle théologie não é semimodernismo, e que portanto sua condenação pela Santa Sé teria decorrido de um equívoco, posteriormente corrigido por João XXIII e pelo Concílio.

24] Permito-me aqui repetir que tem interesse especial esse artigo do Pe. Hernández Medina por mostrar até onde chegam certos círculos na origem claramente antimodernistas, que contudo não resistiram à tentação de aderir ao Vaticano II. Não renegam explicitamente suas posições anteriores, fundadas em São Pio X e Pio XII ─ talvez porque suas bases não o tolerariam. Dentro da contradição intrínseca à orientação que abraçaram, é logicamente inevitável que adotem linguagem não escolástica, escorregadia, simpática à nouvelle théologie, carregada de ambiguidades, insinuações e estranhos silêncios. Seus textos, claramente favorecedores de más doutrinas, sujeitam muitos católicos à tentação dabaldeação ideológica inadvertida (11), em direção ao vórtice modernista que hoje tudo atrai.

Conclusão: o modernismo triunfante

25] Os fatos aqui expostos põem em relevo as dimensões apocalípticas da infiltração do modernismo nos meios católicos, até mesmo na alta hierarquia, bem como seu surpreendente favorecimento ao longo de mais de meio século. Diante disso, não pode o fiel calar-se, segundo ensina Dom Guéranger: "Quando o pastor se transforma em lobo, é ao rebanho que, em primeiro lugar, cabe defender-se. Normalmente, sem dúvida, a doutrina desce dos Bispos para o povo fiel, e os súditos, no domínio da Fé, não devem julgar seus chefes. Mas há, no tesouro da revelação, pontos essenciais, que todo cristão, em vista de seu próprio título de cristão, necessariamente conhece e obrigatoriamente há de defender. O princípio não muda, quer se trate de crença ou procedimento, de moral ou de dogma . [...]Os verdadeiros fiéis são os homens que extraem de seu Batismo, em tais circunstâncias, a inspiração de uma linha de conduta; não os pusilânimes(12).

26] Que, na situação de extrema confusão doutrinária dos dias de hoje, Nossa Senhora das Vitórias conceda aos “verdadeiros fiéis” a que se refere D. Guéranger, Suas mais escolhidas graças de discernimento sobrenatural, para que possam defender-se do modernismo triunfante e contra ele lutar.
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NOTAS

1  Ver neste site Bonum Certamen o artigo “Da qualificação teológica extrínseca do Vaticano II”, postado em 29.06.2013.
2  Ver neste site Bonum Certamen o artigo “Sentir com a Igreja é sentir com o Vaticano II?”, postado em 02.09.2013.
3  Editora Sextante, São Paulo, 2001, 480 pp.
4    Ver neste site Bonum Certamen o item 15 do artigo “Sentir com a Igreja é sentir com o Vaticano II?”, postado em 02.09.2013.
5    Cf. Civiltà Cattolica nº 3.918, ano 164, 19.09.2013, Entrevista com o Papa Francisco, pp. 449/477.
6  T&T ClarkLondon/New York, 2010.
7  N. 336 - May 15, 1969, p. 9.
8  “Il Concilio Vaticano II, Una Storia mai scritta”, Lindau, Torino, 2010, p. 522.
9   Hernández Medina, José Francisco, La «Nouvelle Théologie», Università Gregoriana, postado em 17.10.2009 in www.presbiteros.arautos.org, em italiano.
10  Ver neste site Bonum Certamen o artigo “Sentir com a Igreja é sentir com o Vaticano II?”,02.09.2013.   
11  Cf. Plinio Corrêa de Oliveira, “Baldeação Ideológica Inadvertida e Diálogo”, Catolicismo, nos178/179, out-nov/1965, Campos/RJ, Brasil.
12 D. Prosper Guéranger, “L'année liturgique, Le temps de la Septuagésime, fête de Saint Cyrille d’Alexandriep. 321.


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