A 5 de novembro de 1849, à Rua dos Capitães na Freguesia da Sé, nasceu Rui Barbosa, na cidade do Salvador. Advogado, jornalista, jurista, político, diplomata, ensaísta e orador, essa figura extraordinária marcou a história do Brasil com o seu brilhantismo.
Alejandro Carriles nos lembra que é aniversário de Rui e sugere, para
comemorar a data, a publicação do texto abaixo que, como quase tudo que o
mestre produziu, continua tão atual hoje quanto nos dias em que foi escrito.
Trata-se de uma das melhores e menos conhecidas páginas de Rui Barbosa,
onde ele examina, à luz do Direito Hebraico e do Direito Romano, o processo de
Jesus.
O JUSTO E A JUSTIÇA POLÍTICA
Para os que vivemos a pregar à república o culto da justiça como o
supremo elemento preservativo do regímen, a história da paixão, que hoje se
consuma, é como que a interferência do testemunho de Deus no nosso curso de
educação constitucional. O quadro da ruína moral daquele mundo parece
condensar-se no espetáculo da sua justiça, degenerada, invadida pela política,
joguete da multidão, escrava de César. Por seis julgamentos passou Cristo, três
às mãos do dos judeus, três às dos romanos, e em nenhum teve um juiz.
Aos olhos dos seus julgadores, refulgiu sucessivamente a inocência
divina, e nenhum ousou estender-lhe a proteção da toga. Não há tribunais, que
bastem, para abrigar o direito, quando o dever se ausenta da consciência dos
magistrados.
Grande era, entretanto, nas tradições hebraicas, a noção da divindade do
papel da magistratura. Ensinavam elas que uma sentença contrária à verdade
afastava do seio de Israel a presença do Senhor, mas que, sentenciando com
inteireza, quando fosse apenas por uma hora, obrava o juiz como se criasse o
universo, porquanto era na função de julgar que tinha a sua habitação entre os
israelitas a majestade divina.
Tampouco valem, porém, leis e livros sagrados, quando o homem lhes perde
o sentimento, que exatamente no processo do justo por excelência, daquele em
cuja memória todas as gerações até hoje adoram por excelência o justo, não
houve no código de Israel norma, que escapasse à prevaricação dos seus
magistrados.
No julgamento instituído contra Jesus, desde a prisão, uma hora talvez
antes da meia-noite de Quinta-feira, tudo quanto se fez até ao primeiro
alvorecer da Sexta-feira subseqüente, foi tumultuário, extrajudicial, a
atentatório dos preceitos hebraicos. A terceira fase, a inquirição perante o
sinedrim, foi o primeiro simulacro de formação judicial, o primeiro ato
judicatório, que apresentou alguma aparência de legalidade, porque ao menos se
praticou de dia.
Desde então, por um exemplo que desafia a eternidade, recebeu a maior
das consagrações o dogma jurídico, tão facilmente violado pelos despotismos,
que faz da santidade das formas a garantia essencial da santidade do direito.
O próprio Cristo delas não quis prescindir. Sem autoridade judicial o
interroga Anás, transgredindo as regras assim na competência, como na maneira
de inquirir; e a resignação de Jesus ao martírio não se resigna a justificar-se
fora da lei: "Tenho falado publicamente ao mundo. Sempre ensinei na
sinagoga e no templo, a que afluem todos os judeus, e nunca disse nada às
ocultas. Por que me interrogas? Inquire dos que ouviam o que lhes falei: esses
sabem o que eu lhes houver dito". Era apelo às instituições hebraicas, que
não admitiam tribunais singulares, nem testemunhas singulares. O acusado tinha
jus ao julgamento coletivo, e sem pluralidade nos depoimentos criminadores não
poderia haver condenação. O apostolado de Jesus era ao povo.
Se a sua prédica incorria em crime, deviam pulular os testemunhos
diretos. Esse era o terreno jurídico. Mas, porque o filho de Deus chamou a ele
os seus juízes, logo o esbofetearam. Era insolência responder assim ao
pontífice. Sic respondes pontifici? Sim, revidou Cristo, firmando-se no ponto
de vista legal: "Se mal falei, traze o testemunho do mal; se bem, por que
me bates?"
Anás, desorientado, remete o peso a Caifás. Este era o sumo sacerdote do
ano. Mas, ainda assim, não, não tinha a jurisdição, que era privativa do conselho
supremo. Perante este já muito antes descobrira o genro de Anás a sua
perversidade política, aconselhando a morte a Jesus, para salvar a nação.
Cabe-lhe agora levar a efeito a sua própria malignidade, "cujo resultado
foi a perdição do povo, que ele figurava salvar, e a salvação do mundo, em que
jamais pensou".
A ilegalidade do julgamento noturno, que o direito judaico não admitia
nem nos litígios civis, agrava-se então com o escândalo das testemunhas falsas,
aliciadas pelo próprio juiz, que, na jurisprudência daquele povo, era
especialmente instituído como o primeiro protetor do réu. Mas, por mais falsos
testemunhos que promovessem, lhe não acharam a culpa, que buscavam. Jesus
calava. Jesus autem tacebat.
Vão perder os juizes prevaricadores a segunda partida, quando a astúcia
do sumo sacerdote lhes sugere o meio de abrir os lábios divinos do acusado.
Adjura-o Caifás em nome de Deus vivo, a cuja invocação o filho não podia
resistir. E diante da verdade, provocada, intimada, obrigada a se confessar,
aquele, que a não renegara, vê-se declarar culpado de crime capital: Reus est
mortis. "Blasfemou! Que necessidade temos de testemunhas? Ouvistes a
blasfêmia". Ao que clamaram os circunstantes: "é réu de morte".
Repontava a manhã, quando à sua primeira claridade se congrega o
sinedrim. Era o plenário que se ia celebrar. Reunira-se o conselho inteiro. In
universo concilio, diz Marcos. Deste modo se dava a primeira satisfação às
garantias judiciais. Com o raiar do dia se observava a condição da publicidade.
Com a deliberação da assembléia judicial, o requisito da competência. Era essa
a ocasião jurídica. Esses eram os juizes legais. Mas juízes, que tinham
comprado testemunhas contra o réu, não podiam representar senão uma infame
hipocrisia da justiça. Estavam mancomunados, para condenar, deixando ao mundo o
exemplo, tantas vezes depois imitado até hoje, desses tribunais, que se
conchavam de véspera nas trevas, para simular mais tarde, na assentada pública,
a figura oficial do julgamento.
Saía Cristo, pois, naturalmente condenado pela terceira vez. Mas o
sinedrim não tinha o jus sanguinis. Não podia pronunciar a pena de morte. Era
uma espécie de júri, cujo veredictum, porém, antes opinião jurídica do que
julgado, não obrigava os juizes romanos. Pilatos estava, portanto, de mãos
livres, para condenar, ou absolver. "Que acusação trazeis contra este
homem?" assim fala por sua boca a justiça do povo, cuja sabedoria jurídica
ainda hoje rege a terra civilizada. "Se não fosse um malfeitor, não to
teríamos trazido", foi a insolente resposta dos algozes togados. Pilatos,
não querendo ser executor num processo, de que não conhecera, pretende evitar a
dificuldade, entregando-lhes a vítima: "Tomai-o, e julgai-o segundo a
vossa lei". Mas, replicam os judeus, bem sabes que "nos não é lícito
dar a morte a ninguém". O fim é a morte, e sem a morte não se contenta a
depravada justiça dos perseguidores.
Aqui já o libelo se trocou. Não é mais de blasfêmia contra a lei sagrada
que se trata, senão de atentado contra a lei política. Jesus já não é o
impostor que se inculca filho de Deus: é o conspirador, que se coroa rei da
Judéia. A resposta de Cristo frustra ainda uma vez, porém, a manha dos
caluniadores. Seu reino não era deste mundo. Não ameaçava, pois, a segurança
das instituições nacionais, nem a estabilidade da conquista romana. "Ao
mundo vim", diz ele, "para dar testemunho da verdade. Todo aquele que
for da verdade, há de escutar a minha voz". A verdade? Mas "que é a
verdade"? pergunta definindo-se o cinismo de Pilatos. Não cria na verdade;
mas a da inocência de Cristo penetrava irresistivelmente até o fundo sinistro
dessas almas, onde reina o poder absoluto das trevas. "Não acho delito a
este homem", disse o procurador romano, saindo outra vez ao meio dos
judeus.
Devia estar salvo o inocente. Não estava. A opinião pública faz questão
da sua vítima. Jesus tinha agitado o povo, não ali só, no território de
Pilatos, mas desde Galiléia. Ora, acontecia achar-se presente em Jerusalém o
tetrarca da Galiléia, Heródes Antipas, com quem estava de relações cortadas o
governador da Judéia. Excelente ocasião, para Pilatos, de lhe reaver a amizade,
pondo-se, ao mesmo tempo, de boa avença com a multidão inflamada pelos
príncipes dos sacerdotes. Galiléia era o forum originis do Nazareno. Pilatos
envia o réu a Heródes, lisonjeando-lhe com essa homenagem, a vaidade.
Desde aquele dia um e outro se fizeram amigos, de inimigos que eram. Et facti sunt
amici Herodes et Pilatus in ipsa die; nam antea inimici erant ad invicem. Assim se reconciliam os tiranos sobre os despojos da justiça.
Mas Herodes também não encontra, por onde condenar a Jesus, e o mártir
volta sem sentença de Herodes a Pilatos que reitera ao povo o testemunho da
intemerata pureza do justo. Era a terceira vez que a magistratura romana a
proclamava. Nullam causam inveni in homine isto ex his, in quibus eum
accusatis. O clamor da turba recrudesce.
Mas Pilatos não se desdiz. Da sua boca irrompe a Quarta defesa de Jesus:
"Que mal fez esse ele? Quid enim mali fecit iste?" Cresce o conflito,
acastelam-se as ondas populares. Então o procônsul lhes pergunta ainda:
"Crucificareis o vosso rei?" A resposta da multidão em grita foi o
raio, que desarmou as evasivas de Pilatos. "Não conhecemos outro rei,
senão César". A esta palavra o espectro de Tibério se ergueu no fundo da
alma do governador da província romana. O monstro de Cáprea, traído, consumido
pela febre, crivado de úlceras, gafado da lepra, entretinha em atrocidades os
seus últimos dias. Traí-lo era perder-se. Incorrer perante ele na simples
suspeita de infidelidade era morrer. O escravo de César, apavorado, cedeu,
lavando as mãos em presença do povo: "Sou inocente do sangue deste
justo".
E entregou-o aos crucificadores. Eis como procede a justiça, que se não
compromete. A história premiou dignamente esse modelo da suprema cobardia na
justiça. Foi justamente sobre a cabeça do pusilânime que recaiu antes de tudo
em perpétua infâmia o sangue do justo.
De Anás a Herodes o julgamento de Cristo é o espelho de todas as
deserções da justiça, corrompida pela facções, pelos demagogos e pelos
governos. A sua fraqueza, a sua inocência, a sua perversão moral crucificaram o
Salvador, e continuam a crucificá-lo, ainda hoje, nos impérios e nas
repúblicas, de cada vez que um tribunal sofisma, tergiversa, recua, abdica. Foi
como agitador do povo e subversor das instituições que se imolou Jesus.
E, de cada vez que há precisão de sacrificar um amigo do direito, um
advogado da verdade, um protetor dos indefesos, um apóstolo de idéias
generosas, um confessor da lei, um educador do povo, é esse, a ordem pública, o
pretexto, que renasce, para exculpar as transações dos juizes tíbios com os
interesses do poder. Todos esses acreditam, como Pôncio, salvar-se, lavando as
mãos do sangue, que vão derramar, do atentado, que vão cometer. Medo,
venalidade, paixão partidária, respeito pessoal, subserviência, espírito
conservador, interpretação restritiva, razão de estado, interesse supremo, como
quer te chames, prevaricação judiciária, não escaparás ao ferrete de Pilatos! O
bom ladrão salvou-se. Mas não há salvação para o juiz cobarde.
(A imprensa, Rio, 31 de março de 1899, em Obras Seletas de Rui Barbosa,
vol. VIII, Casa de Rui Barbosa, Rio, 1957, págs. 67-71.)
Fonte: Revista Consultor Jurídico, 5 de novembro de 2002
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