segunda-feira, 14 de outubro de 2013

SENTIR COM A IGREJA É SENTIR COM O VATICANO II ?










Dados básicos de uma questão de consciência

A]  Como uma das razões da intervenção da Congregação dos Religiosos no Instituto dos Franciscanos da Imaculada em 11 de julho último, o comissário, Pe. Fidenzio Volpi, O.F.M.Cap., referiu-se a problemas na aceitação do Magistério e no “sentir com a Igreja”.

B]  Por outro lado, os numerosos comentários sobre o assunto publicados nas redes sociais antimodernistas indicam que o fundador e superior geral, Pe. Stefano Manelli, vinha orientando o Instituto no sentido da Tradição. A intervenção, portanto, não visaria apenas afastar os frades da celebração da Missa de São Pio V, mas também, ou sobretudo, pôr fim às resistências de muitos deles às doutrinas controvertidas do Vaticano II e às novidades inauditas do pós-Concílio.
              
C] Segundo deflui do decreto de intervenção da Congregação dos Religiosos e dos documentos de lavra do interventor, recusar tais doutrinas e a Missa de 1969, ou manifestar restrições em relação a elas, seria não ter o “sentir com a Igreja”, em cuja definição, por Santo Inácio de Loyola, se lê:

1ª regra - Renunciando a todo juízo próprio, devemos estar dispostos e prontos a obedecer em tudo à verdadeira esposa de Cristo Nosso Senhor, isto é, à Santa Igreja hierárquica, nossa mãe.

9ª regra - Louvar todos os preceitos da Santa Igreja, e estar disposto a procurar razões em sua defesa, e nunca para os criticar”.

13ª regra - Para em tudo acertar, devemos estar sempre dispostos a crer que o que nos parece branco é negro, se assim o determina a Igreja hierárquica; persuadidos de que entre Cristo Nosso Senhor - o Esposo - e a Igreja - sua Esposa – não há senão um mesmo Espírito, que nos governa e dirige para a salvação das nossas almas. Porque é pelo mesmo Espírito e mesmo Senhor, autor dos dez mandamentos, que se dirige e governa a Santa Igreja, nossa Mãe”.

D]  Com base nos estudos antimodernistas dos últimos cinquenta anos, pode-se atribuir ao Vaticano II o rótulo de “heretizante” ([1]). Seus documentos estão prenhes de proposições próximas da heresia modernista, dela favorecedoras, escandalosas, etc. Assim, é intolerável que o “sentir com a Igreja” seja identificado ao sentir com o Vaticano II. Na raiz dessa falsa identificação está uma noção errônea do Magistério da Igreja.

Falsa concepção da infalibilidade do Magistério

1]  Nosso Senhor prometeu que as portas do inferno não prevaleceriam contra a Igreja ([2]). Mas não foi só isso. Prometeu igualmente que estaria com os apóstolos “todos os dias até a consumação dos séculos” ([3]). Note-se bem, “todos os dias”. Logo, segundo a doutrina clássica de papas e grandes doutores, o ensinamento da Hierarquia em cada época é assistido por Nosso Senhor. Surge aqui a grande questão: o Papa e os bispos hoje vivos podem errar? O católico fiel é obrigado a aceitar incondicionalmente tudo que eles ensinam, como parecem determinar as regras do “sentir com a Igreja” de Santo Inácio de Loyola?

2]  Para muitas figuras representativas da teologia atual que acolhem o Vaticano II como regra absoluta da Fé, o Magistério, tanto pontifício quanto conciliar, jamais pode errar, mesmo quando fala sem preencher as cinco condições necessárias para gozar do carisma da infalibilidade. O Vaticano I definiu essas condições quanto à infalibilidade papal, as quais valem também, mutatis mutandis, para a infalibilidade conciliar. No texto dessa definição dogmática, a seguir transcrito, vêm ressaltadas as cinco referidas condições:

Ensinamos e definimos como dogma divinamente revelado que o Romano Pontífice, quando fala ex cathedra, isto é, quando,
[1ª condição]  no desempenho do ministério de pastor e doutor de todos os cristãos,
[2ª condição]  define,
[3ª condição]  com sua suprema autoridade apostólica,
[4ª condição]  alguma doutrina referente à fé e à moral
[5ª condição]  para toda a Igreja,
goza, em virtude da assistência divina a ele prometida na pessoa de São Pedro, daquela infalibilidade com a qual Cristo quis dotar a sua Igreja quando define alguma doutrina sobre fé e moral; e que portanto tais declarações do Romano Pontífice são irreformáveis por si mesmas, e não apenas em virtude do consentimento da Igreja”.

3]  Estudos antimodernistas dos últimos decênios já demonstraram amplamente a falsidade da concepção da uma infalibilidade absoluta e omnímoda, que tenho chamado de monolítica ([4]). Prevalece hoje, tanto em relação aos Papas quanto aos concílios ecumênicos, uma doutrina matizada e sólida, segundo a qual o Magistério pode cair em erro e mesmo heresia, quando não preenche as condições da infalibilidade.

4]  Em aprofundado estudo recente sobre essa matéria, o Pe. Daniel Pinheiro, do Instituto Bom Pastor, mostra que “o Magistério desse segundo tipo – não infalível – pode (...) conter erros porque, ao contrário do primeiro grau estudado, não se encontra garantido na verdade por Deus. (...). A possiblidade de erro nesse grau de Magistério é, praticamente, unanimidade entre os teólogos. É incompreensível que alguns afirmem a impossibilidade de erros em atos do Magistério não-infalível. Negar a possiblidade de erro desse Magistério seria torná-lo infalível (...). Deve ser assimilado a esse Magistério o magistério de um Concílio Ecumênico que não possui a voluntas definiendi/obligandi. Trata-se da autoridade suprema que ensina, mas sem a intenção de engajar toda a sua autoridade e revesti-la inteiramente da assistência divina infalível” ([5]).

5]  Para compreender que tal possibilidade de falha magisterial não se opõe às promessas de Nosso Senhor, é importante observar que, segundo a doutrina verdadeira do Magistério ordinário ([6]), uma condição essencial para a infalibilidade de seus ensinamentos é que estes sejam aceitos pacificamente pela Igreja universal, dentro de um tempo suficiente para serem tidos como pertencentes à Fé, e portanto como devendo ser professados pelos fiéis.

6]  E é manifesto que as novidades heretizantes do Vaticano II, mesmo após cinquenta anos de aggiornamento conciliar, jamais contaram com o consenso na Santa Igreja, tanto no corpo docente quanto no discente. Na Carta Apostólica Tuas Libenter, de 1863, Pio IX ressalta a importância fundamental desse consenso, declarando que a sujeição a ser prestada à fé divina “deve ser estendida também ao que é transmitido pelo Magistério Ordinário de toda a Igreja, dispersa pelo orbe, como divinamente revelado, e por isso é tido como pertencente à fé pelo consenso universal e constante dos teólogos católicos”. Adiante, Pio IX afirma que os fiéis devem também submeter-se “aos pontos de doutrina que pelo consenso comum e constante dos católicos são tidos como verdades teológicas e conclusões a tal ponto certas que as opiniões a estas doutrinas opostas, embora não possam dizer-se heréticas, merecem no entanto alguma outra censura teológica” ([7]).

7]  É chocante que, para muitos teólogos modernos, o “sentir com a Igreja” não permite rejeitar ensinamentos do Magistério atual mesmo quando não envolvem a infalibilidade; mas permite negar ensinamentos do passado, mesmo quando garantidos incontestavelmente pela infalibilidade do Magistério Extraordinário ou do Magistério Ordinário universal.

Bento XVI e a continuidade do Concílio com a Tradição

8]  A questão da compatibilidade entre o “sentir com a Igreja” e o sentir com o Vaticano II leva necessariamente ao problema suscitado pelo Santo Padre Bento XVI em dezembro de 2005, ao convocar os católicos a interpretarem o Vaticano II como uma “reforma na continuidade” da Tradição. Ele reprovou a hermenêutica de ruptura segundo a qual os progressistas declaram abertamente que o Concílio se opõe de modo formal às doutrinas de sempre; e reprovou também, como sendo igualmente de ruptura a hermenêutica dos defensores da Tradição, segundo os quais o Concílio contém novidades inconciliáveis com o Magistério anterior.  Que os progressistas rompem com dogmas católicos de todos os séculos é patente e incontestado, de modo que eles se calaram diante do dito de Bento XVI. Os antimodernistas, entretanto, se dedicaram a estudos aprofundados, mostrando cabalmente que não há como interpretar o Vaticano II na linha da “reforma na continuidade”.

9]  Já se tornou tranquilo para os teólogos antimodernistas, únicos que contam ([8]), que o Vaticano II não pode ser entendido como “reforma na continuidade”, mas carrega em seu bojo desvios graves em relação à doutrina tradicional. Essa posição foi recentemente exposta pelo Padre Jean-Michel Gleize, da Fraternidade São Pio X, numa fórmula cortante e concisa: “A hermenêutica da continuidade proposta pelo Papa Bento XVI é um esforço louvável mas vão, um a mais depois de cinquenta anos do Vaticano II. Esforço vão, porque incapaz de superar uma ruptura inscrita nos textos do Concílio” ([9]).

O Cardeal Kasper e a reforma na continuidade

10]  Artigo recente do Cardeal Walter Kasper ([10]), que comentei neste site ([11]), relata fatos fundamentais para a comprovação de que, numa hermenêutica séria e objetiva, não há como interpretar certos textos do Vaticano II na continuidade da Tradição. Depreende-se desse artigo que o Concílio se inspirou na nouvelle théologie. Expõe o Cardeal que Paulo VI, não desejando aprovar formulações às quais os tradicionalistas se opusessem em definitivo, “engajou” a minoria tradicionalista com alterações de redação que atenuavam ou confundiam o sentido das passagens modernizantes. Para isso, diz o Cardeal Kasper, “pagou-se um preço” com “fórmulas de compromisso” em que “as posições da maioria figuram imediatamente ao lado daquelas da minoria, pensadas para delimitá-las”. Essas limitações não tornavam ortodoxos os textos modernistas originais, mas debilitavam seu sentido, afastando ou dificultando as censuras teológicas mais graves, e bloqueando as reações sadias que pudessem surgir.

11]  Continua o artigo explicando que, em razão dessas “fórmulas de compromisso”, “os textos conciliares têm em si um enorme potencial de conflito, abrem a porta a uma recepção seletiva numa ou noutra direção”. 

12]  No mencionado artigo, o Cardeal declara que “a recepção oficial não permaneceu estática, mas, em parte, ultrapassou o Concílio”; “o primeiro passo oficial da recepção foi a reforma litúrgica; foi sobretudo a introdução do novo Missal”; “tudo isso transformou positivamente, sob muitos aspectos, o rosto da Igreja tanto interna quanto externamente”. Essa afirmação, que pelo menos beira o escândalo, permite entender melhor o alcance do título dado pelo purpurado ao artigo: Um Concílio ainda em caminho.

13]  Vê-se pois que o artigo do Cardeal Kasper revela patente descontinuidade do Concílio em face da Tradição. Somente uma hermenêutica a fórceps, e portanto falsa, poderia interpretar o Vaticano II como uma “reforma na continuidade”. Para poder prevalecer, essa hermenêutica haveria de partir do pressuposto de que jamais um Concílio poderia opor-se à Tradição. Haveria de ver nesse pressuposto um dogma de fé, que inexiste. A fórceps, haveria de interpretar as passagens modernistas e modernizantes originais do Vaticano II como se houvessem sido de todo corrigidas por “fórmulas de compromisso”, as quais entretanto, como diz com razão o Cardeal Kasper,  apenas se justapõem às posições da maioria, de modo tal que “os textos conciliares têm em si um enorme potencial de conflito, abrem a porta a uma recepção seletiva numa ou noutra direção”. Isto é, são textos heretizantes.

Modernismo e nouvelle théologie

14]  Como observado no item 13 retro, o mencionado artigo do Cardeal Kasper torna claro que o Vaticano II constituiu grande vitória da nouvelle théologie, condenada por Pio XII na Encíclica Humani Generis, de 1950. Nela está o elemento dinâmico dos textos conciliares, tudo confluindo para o vórtice do modernismo, que, em suas diversas correntes, ainda hoje se pavoneia como se fosse a doutrina católica verdadeira.

15]  O eminente teólogo dominicano Pe. Garrigou-Lagrange se perguntava, já bem antes do Vaticano II, para onde ia a nouvelle théologie, e respondia: “Ela redunda no próprio modernismo, porque aceitou a proposta que este lhe fazia: substituir, como se fosse quimérica, a definição tradicional da verdade, ‘adaequatio rei et intellectus’, pela definição subjetiva, ‘adaequatio realis mentis et vitae’. A verdade já não é a conformidade do juízo com o real extramental e suas leis imutáveis, mas a conformidade do juízo com as exigências da ação e da vida humana sempre em evolução. A filosofia do ser ou ontologia é substituída pela filosofia da ação que define a verdade não já em função do ser mas da ação. Retorna-se, pois, à posição modernista (...). Assim, Pio X dizia dos modernistas: ‘eles pervertem o conceito eterno da verdade’ (...). Ora, deixar de defender a definição tradicional da verdade, permitir seja ela tida como quimérica, dizer que é necessário substituí-la por outra, vitalista e evolucionista, isso leva ao relativismo completo e é um erro  muito grave” ([12]).

Conclusão: “sentir com a Igreja” não pode ser sentir com um Concílio heretizante

16]  Como se vê, os modernistas de hoje pretendem utilizar-se dos conceitos mais sagrados e das doutrinas mais santas da Tradição em favor de seus desvios na fé. Assim é que deturpam e degradam a noção do Magistério, atribuindo-lhe uma infalibilidade que discrepa das definições do Vaticano I. Entendem o “sentir com a Igreja” de forma errônea, levando muitos a interpretá-lo em sentido diverso do ensinamento de Santo Inácio. Valem-se da autoridade suprema de um Concílio Ecumênico para a propagação de suas novidades opostas à fé.

17]  A identificação pelos progressistas do “sentir com a Igreja” ao sentir com o Vaticano II transcende a questão dos Franciscanos da Imaculada, cujo desenrolar os fieis verdadeiros aguardam com extrema preocupação e orações ardentes. De todo modo deve-se proclamar, alto e bom som, que tal identificação não pode prevalecer, porque o Vaticano II foi um Concílio heretizante, insuscetível de uma interpretação como “reforma na continuidade”.

18]  Que Nossa Senhora das Vitórias dê forças ao fundador dos Franciscanos da Imaculada, a seus seguidores e a todos os católicos fiéis, mantendo-os firmes na mais pura ortodoxia em doutrina como na prática; e que Ela abrevie os dias de glória falaz e necessariamente transitória do modernismo.



[1]  Ver, neste site Bonum Certamen,  o artigo “Da qualificação teológica extrínseca do Vaticano II”.
[2]  Mt 16,18.
[3]  Mt 28.20.
[4] Ver, neste site Bonum Certamen, os artigos: “Infalibilidade monolítica e as divergências entre os antimodernistas” e “Grave lapso teológico de Mons. Ocáriz”.
[5]  “Assentimento ao Magistério”, parte I, item 3.2.2, no blog Scutum Fideiwww.scutumfidei.org.
[6]  Ver, neste site Bonum Certamen, o artigo “O caráter orgânico do magistério ordinário”.
[7]  Denzinger-Hünermann, 2875-2880.
[8]  Com efeito, para a finalidade aqui indicada, não se haverá de considerar os teólogos que notoriamente se distanciam da ortodoxia católica. A mesma ideia vem expressa nos itens 9 e 34-c do artigo “Da qualificação teológica extrínseca do Vaticano II”, publicado neste site Bonum Certamen.
[9]  Abbé Jean-Michel Gleize, “Vatican II en débat”, Courrier de Rome, maio 2013, p. 220.
[10]  “Um concílio ainda em caminho”, publicado em L’Osservatore Romano de 12 de abril último.
[11]  Ver, neste site Bonum Certamen,  o artigo “Da qualificação teológica extrínseca do Vaticano II.

[12]  Garrigou-Lagrange, “La nouvelle théologie, ou va-t-elle?”, Angelicum, 1946, vol. 23, p.126-145.


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