sábado, 21 de dezembro de 2013

Entrevista papal retirada do site vaticano









Arnaldo Xavier da Silveira




Ingênuo seria o fiel católico para quem a questão de fundo estaria resolvida com a simples retirada da entrevista ao La Repubblica do site da Santa Sé. Essa retirada pouco ou nada significa, diante da permanência no site da entrevista à Civiltà Cattolica, que contém numerosas passagens igualmente inaceitáveis.


1] Os debates sobre as entrevistas concedidas recentemente pelo Papa Francisco ao Diretor da Civiltà Cattolica e ao fundador do jornal romano La Repubblica tomaram, em meados de novembro, um caminho surpreendente. No dizer do professor e jornalista italiano Antonio Socci, “em torno daquela entrevista [ao La Repubblica] nasceu o primeiro, verdadeiro problema do pontificado de Francisco. Ou melhor, um drama (1). Com o coração dilacerado, o católico fiel verifica que uma observação serena dos fatos mostra que falar em “drama”, no caso, não é sensacionalismo de jornalista.

Crise dramática

2] As duas mencionadas entrevistas papais, divulgadas amplamente pela imprensa internacional em setembro e outubro últimos, provocaram reações vigorosas de numerosos setores católicos antimodernistas de todo o orbe, porque ali o Papa adotava posicionamentos aberrantes da doutrina tradicional. As manifestações nesse sentido vinham num crescendo inaudito, e em termos inesperados, por partirem sobretudo dos analistas e autores mais apegados ao Papado e à Tradição. Destes vieram respeitosas mas públicas e veementes observações quanto à ortodoxia daqueles posicionamentos.

3] Na política civil é frequente e até corriqueiro que uma autoridade pressionada por setores de peso da sociedade se veja forçada a explicar-se. Assim também, estava se tornando estranho o silêncio do Papa. O sabor amargo de suas duas entrevistas pedia um esclarecimento, dele pessoalmente ou talvez da Cúria, que fosse visto como uma resposta tranquilizadora para seus filhos mais fieis.

4] Eis que na sexta-feira, 15 de novembro, o porta-voz do Vaticano, Pe. Federico Lombardi, anuncia à imprensa que, por ordem da Secretaria de Estado de Sua Santidade, a entrevista ao La Repubblica estava sendo retirada do site da Santa Sé. Os fatos foram noticiados no próprio dia 15, conforme se lê no site Vatican Insider,sob o título Il testo non era stato rivisto parola per parola”, nos termos seguintes:

A Santa Sé decidiu retirar do site vaticano o texto do colóquio entre o Papa Francisco e o fundador do La Repubblica, Eugênio Scalfari. Francisco havia recebido Scalfari, que veio agradecer-lhe a carta aberta recebida e publicada em seu cotidiano.
Às perguntas dos jornalistas sobre a razão dessa decisão, o porta-voz da Santa Sé, Padre Federico Lombardi, respondeu: ‘a entrevista é confiável no sentindo geral, mas não em suas valorações  individuais. Por isso se decidiu não deixar o texto consultável no site da Santa Sé. Em substância, retirando-a, fez-se uma mise-au-point da natureza daquele texto. Havia algum equívoco e debate sobre o valor dele. A decisão foi da Secretaria de Estado’.
O Padre Lombardi, nos dias que sucederam à publicação da entrevista, havia declarado que o Papa não havia revisto pessoalmente o texto, mas que Scalfari o havia simplesmente enviado ao Vaticano. Com efeito, o arquivo continha expressões dificilmente atribuíveis ao Papa Francisco. Quando não, um erro concernente ao acontecido na Sistina. Em uma das respostas, se dissera que o Pontífice, após ter sido atingido o quórum necessário para a eleição, antes de aceitar se teria retirado para rezar. Circunstância não verdadeira e desmentida por diversos cardeais, entre os quais o Arcebispo de Nova York ,Timothy Dolan.
Muitas polêmicas e discussões havia provocado ainda uma afirmação ─ aliás em tudo compatível com o Catecismo da Igreja Católica ─ concernente ao primado da consciência. Lombardi também desmentiu que a decisão de retirar a entrevista do site teria sido tomada a pedido do Prefeito do ex-Santo Oficio, Gerhard Ludwig Müller (2).

5] Dispensamo-nos de uma análise circunstanciada dessas declarações, em vista das incongruências que apresentam, e da debilidade insanável de sua fundamentação. Fazemos uma única e rápida observação. O Padre Lombardi indica como uma das razões da retirada da entrevista do site, os ditos papais sobre o primado da consciência, que provocaram polêmicas e discussões; e, para justificar o texto pontifício, acrescenta ser este em tudo compatível com o Catecismo da Igreja Católica. Ora, essa consideração, de si, não elimina a reserva, uma vez que, na passagem em questão, esse Catecismo é conflitante com a doutrina tradicional, do mesmo modo que o é o Vaticano II, no qual ele se inspira (vide Declaração a Dignitatis Humanae), que deve ser qualificado como heretizante (ver, neste site, o artigo “Da qualificação teológica extrínseca do Vaticano II).

6] Outrossim, as singulares declarações do Pe. Lombardi suscitam dúvidas e questões variadas, como por exemplo as que seguem. ─ Por que retirar o texto do site sem explicar em que pontos precisos ele não fora fiel ao pensamento do Papa? ─ Por que retirar do site só a entrevista a La Repubblica, ali deixando a da Civiltà Cattolica, que revela idêntica orientação teológica? ─ Desqualificar dessa forma, indiretamente, o texto de La Repubblica como documento magisterial, não seria fugir às graves acusações formuladas pelos antimodernistas de todo o mundo, em vez de enfrentá-las serenamente e às claras, como seria de rigor para o mestre e intérprete infalível da verdade revelada? ─ Bem sopesada a exclusão dessa entrevista do site da Santa Sé, não se poderia concluir, em boa e singela lógica, que realmente seu texto estava prenhe de proposições desviadas da boa doutrina? ─ E, enfim: por mais que os fieis verdadeiros cultuem filialmente o Papa e o Papado, à luz da Fé; por mais que tenham o Pontífice como o doce Cristo na Terra; e por mais que lamentem de toda a alma a dramática situação presente, seriam eles insanae mentis a ponto de pensarem que a questão da ortodoxia das duas aludidas entrevistas estaria encerrada com a retirada de uma delas do site vaticano?

Expressões inaceitáveis na entrevista à Civiltà Cattolica

7] Nas declarações do Papa a La Repubblica estão algumas das frases papais que correram mundo atordoando os católicos fieis, tais como: ─ “o proselitismo é um solene disparate”; ─ “cada um tem sua ideia do Bem e do Mal e deve escolher de seguir o Bem e combater o Mal como ele os concebe”; ─ “os cabeças da Igreja com frequência foram narcisistas, adulados e mal instigados por seus cortesãos; ─ a corte é a lepra do Papado”; ─ “muitos da teologia da libertação eram crentes e com um alto conceito de humanidade”; ─ “não existe um Deus católico, existe Deus”. Tudo isso, portanto, foi agora retirado do site vaticano.

8] Contudo, ingênuo seria o fiel católico para quem a questão de fundo estaria resolvida com a simples retirada do texto de La Repubblica do site vaticano. Com efeito, na entrevista à Civiltà Cattolica, que permanece no site, o Papa disse:
a.   Que um de seus pensadores contemporâneos preferidos é Henri de Lubac. ─ Tal asserção constitui uma recomendação implícita mas incisiva para que o neomodernista Cardeal Henri de Lubac seja estudado e seguido pelos católicos fieis, como já observamos anteriormente (ver, neste site, o artigo “Grave lapso teológico do Padre Federico Lombardi).
b.   Jamais fui de direita”. ─ Também já observamos, no mesmo artigo, que essa expressão claramente convida os fieis a adotarem um posicionamento antes de esquerda.
c.   Deus é maior do que o pecado. ─ Essa frase insinua que o pecado não é tão grave, desde que se creia em Deus e em sua misericórdia.
d.   “Durante o voo de retorno do Rio de Janeiro, eu disse que se uma pessoa homossexual tem boa vontade e está à procura de Deus eu não sou ninguém para julgá-la”. ─ É evidente que não cabe ao Papa julgar o íntimo da consciência individual ─ de internis nec Ecclesia ─, mas é missão essencial ao representante de Jesus Cristo na Terra expor a doutrina da Igreja sobre fé e moral. A esse propósito, é estarrecedora a notícia de que o casamento homossexual foi aprovado, no Estado americano de Illinois, graças às instâncias de um deputado católico, Michael J. Madigan, que conseguiu obter a pequena dezena de votos necessária para que a nova lei fosse aprovada, com o argumento de que, se o Papa dizia “eu não sou ninguém para julgá-la”, menos ainda o poderia ele.
e.   A religião tem o direito de exprimir a própria opinião a serviço do povo, mas Deus na criação nos tornou livres: a ingerência espiritual na vida pessoal não é possível”. ─ Nos pontos fundamentais do dogma e da moral, a doutrina católica não tem “opiniões” mas certezas. O apostolado, a formação doutrinária, o aconselhamento na direção espiritual não podem ser considerados “ingerência” na “vida pessoal” de ninguém. Nos documentos pontifícios anteriores ao Vaticano II, como a Encíclica Libertas Praestantissimum, de Leão XIII, e nos manuais da neoescolástica, a verdadeira noção da liberdade vem exposta de modo claro, sem relativizações.
f.    Não podemos insistir apenas nas questões ligadas ao aborto, ao matrimônio homossexual e ao uso dos métodos contraceptivos. Isso não é possível”. ─ Essa frase vem evidentemente desestimular as magníficas campanhas que têm sido promovidas em todo o orbe contra aqueles flagelos. É grave que essa intervenção papal se dê exatamente quando do auge de algumas dessas campanhas.
g.   O parecer da Igreja [sobre aborto, homossexualidade, contracepção] é conhecido, e eu sou filho da Igreja, mas não é necessário falar disso continuamente ─ É igualmente estarrecedor que a posição da Igreja sobre esses pontos fundamentais da moral seja qualificada como simples “parecer”. E não se vê que o texto dê a devida atenção ao dever enunciado por São Paulo, de “insistir oportuna e importunamente”.   
h.   Uma pastoral missionária não tem obsessão pela transmissão desarticulada de uma multidão de doutrinas a serem impostas com insistência”. ─ Essa afirmação constitui grave condenação da neoescolástica, como anotamos no mencionado artigo “Grave lapso teológico do Padre Federico Lombardi”.
i.    O anúncio do amor salvífico de Deus é prévio à obrigação moral e religiosa”. ─ O que fica insinuado nessa frase não é tanto a antecedência temporal do “anúncio do amor salvífico de Deus” em relação às obrigações morais e religiosas, mas é sobretudo a ideia modernista de que realmente importante é o amor de Deus, ao passo que as obrigações morais e religiosas são relativas, podendo até variar segundo a consciência de cada qual.
j.    “Os dicastérios romanos, quando não bem entendidos, correm o risco de se tornar organismos de censura. É impressionante ver as denúncias de falta de ortodoxia que chegam  a Roma”. ─ Essa declaração revela, de um lado, o zelo dos fieis católicos, que os leva a batalhar pela pureza da Fé. E, de outro lado, que seu autor parece adotar a norma liberal do politicamente correto de nossos dias, segundo a qual toda censura é má. A Santa Igreja sempre ensinou que, em princípio, a censura é indispensável à preservação da Fé.
k.   “Ainda não foi feita uma profunda teologia da mulher [...]. Qual deve ser o papel da mulher na Igreja?”. ─ Como já nos perguntamos no mesmo artigo “Grave lapso teológico do Padre Federico Lombardi”, não é verdade que tal afirmação sugere uma modernização do papel da mulher na Igreja, favorecendo em tese a posição dos que querem até a ordenação sacerdotal de mulheres?
l.    Considero preocupante o risco de ideologização do antigo Ordo da Missa, a sua instrumentalização”. ─ Para o bom entendedor, essa frase manifesta o fundo do pensamento do Papa Francisco sobre a Missa tradicional. Não se vê que seja possível pôr à margem, com uma simples palavra ligeira, os graves problemas de Fé, e portanto de consciência, que a Missa nova suscita. 
m. “Deus se encontra no hoje. Deus se manifesta numa revelação histórica, no tempo. O tempo inicia os processos, o espaço os cristaliza. Deus se encontra no tempo, nos processos em curso”. ─ Essa formulação induz à tese modernista de que a Revelação não terminou com a morte do último dos Apóstolos; tese essa que, por sua vez, leva à evolução intrínseca do dogma.
n.   Nesse procurar e encontrar a Deus em todas as coisas fica sempre uma zona de incerteza. Deve ser assim. Se uma pessoa diz que encontrou a Deus com certeza total e nisso não aflora uma margem de incerteza, então as coisas não vão bem. Para mim, essa é uma chave importante”. ─ Está aí, pelo menos insinuada, a profissão de uma Fé que admite incertezas.
o.   Não devemos confundir a genialidade do tomismo com o tomismo decadente. Eu, infelizmente, estudei a filosofia com manuais de tomismo decadente”. ─ Para quem tem uma noção da história do tomismo, ainda que sumária, essa declaração constitui uma condenação genérica e total da magnífica neoescolástica dos séculos XIX e XX.

9] Diante dessas passagens da Civiltà Cattolica, vê-se que, quanto ao mérito, nada ou pouco significa a retirada da entrevista ao La Repubblica do site vaticano. E vê-se também como é precária a afirmação do Pe. Lombardi de que o texto supresso teria “equívocos”, por isso não exprimindo com exatidão o pensamento papal. Equívocos, quando realmente existem, são por natureza ocasionais, circunstanciais, aleatórios, de modo tal que, se numerosos deles, num texto longo, caminham todos na mesma direção, como é aqui o caso, não se haveria de falar em equívocos, mas em algo de bem diverso.

Está se perdendo a “italianità” tradicional da Santa Sé

10] Há séculos a Santa Sé tem seus modos de proceder profundamente marcados pelo espírito italiano. De forma muito especial, esse estilo peninsular se revela na diplomacia clássica do Vaticano, sábia, silenciosa, sóbria, altamente eficiente. Esse modo de ser e agir traz em si um savoir-faire extraordinário, que sabe harmonizar as virtudes entre si opostas, como a justiça e a misericórdia, a magnificência e o espírito de pobreza. Sabe distinguir, compreende que a verdade está nas nuances. É uma escola de seriedade, de humildade, de organicidade, de habilidade, do senso das conveniências e medidas. No passado, grandes figuras estrangeiras, como o Cardeal Merry del Val, Secretário de Estado de São Pio X, souberam assimilar em si e no seu proceder esse magnífico espírito italiano. Em teologia, o mesmo ocorreu com o alemão Cardeal Franzelin, com o francês Cardeal Billot e com tantas outras personalidades insignes.

11] Infelizmente, a internacionalização do Colégio Cardinalício e da Cúria Romana nem sempre está mantendo em sua integridade e pureza os valores dessa italianitàmultissecular. Assim, despontam cá e lá, em espíritos das mais diversas nacionalidades, manifestações do esto pro lege voluntas, bem como de certa espontaneidade vistosa e pouco refletida, erigida por alguns como norma básica da vida social. Veja-se, por exemplo, nesse episódio das duas entrevistas papais, como desde o início a questão foi mal encaminhada, com ofensas a verdades da Fé e tradições curiais, podendo-se recear que se tenha tornado inevitável, em futuro próximo, a eclosão de uma crise mais pesada.

12] Com muita razão, o ilustre professor Pietro De Marco escreveu, a propósito da crise provocada pelas duas aludidas entrevistas do Papa Francisco, que, ”para quem não seja propenso à prosa relativista desta modernidade tardia”, um dos “sinais preocupantes” da situação de hoje é “a falta de controle, por pessoas de confiança, mas sábias e cultas, e italianas, dos textos destinados à circulação, talvez pelo convencimento papal de que isso não é necessário (3).

Breve esclarecimento e conclusão

13] A fim de evitar mal-entendidos, deixo claro que a italianità de que falo – sóbria, lúcida, ágil, orgânica, católica – talvez seja hoje rara, nos meios vaticanos como na Itália em geral. E, ademais, caberia perguntar se tal italianità autêntica é conciliável com o modernismo, o qual, negando a verdade objetiva (ver neste site: Garrigou-Lagrange, citado em meu artigo “Sentir com a Igreja é sentir com o Vaticano II?), não pode exprimir-se convenientemente na lógica aristotélica, à luz dos primeiros princípios da escolástica, de maneira racional, séria, clara e transparente.

14] Que Nossa Senhora do Divino Amor, padroeira da cidade de Roma, conceda suas melhores graças ao Papa Francisco, bem como preserve a autêntica italianitàna vida vaticana, e faça com que sem delongas seja o modernismo extirpado dos meios católicos, como o há necessariamente de ser, dado o dogma da indefectibilidade da Santa Igreja, em que todos cremos com Fé verdadeira que inadmite dúvida.
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NOTAS:


3   Artigo “Un messagio ‘liquido’”, de 7.10.13 -  http://chiesa.espresso.repubblica.it/articolo/1350619 ─ Pietro De Marco, historiador e sociólogo, é professor na Faculdade de Florença e na Faculdade de Teologia da Itália Central.

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