DESTAQUE
Algumas coisas não mudam, sendo a obra
de séculos.
*** * ***
![]() |
Vilarejo de Saint-Céneri-le-Gérei, imagem ilustrativa. |
Mais do que
qualquer país ocidental, a França tem resistido à modernidade, pelo menos na
forma como pensa a si mesma
Algumas semanas atrás, estava na
França, onde era proprietário de uma casa num vilarejo já há quase 20 anos, que
agora planejava vender. Uma corretora tinha dado uma olhada na propriedade e
fizemos uma reunião para discutir como proceder. Ela entrou na cozinha, cheia
de energia e convicção, e com um apelo passional:
— Monsieur Cohen, o que está fazendo?!
Você não deve ter em conta vender esta casa!
Olhei admirado para ela, um pouco
incrédulo.
— Você não pode vendê-la. Este é um lar
de família. Você sabe disto no momento em que entra. Sente nas paredes. Respira
isto em todos os cômodos. Sente nos ossos. Esta é uma casa que você deve manter
para os filhos. Vou ajudá-lo a vender, se você insistir, mas meu conselho é
para que não o faça. Você estaria cometendo um erro.
Isto foi,
digamos assim, um momento cultural, um daqueles instantes em que uma porta se
abre e você contempla, senão a alma de um país, ao menos um território que é
distinto e profundo, e quase certamente tem um significado maior do que as
manchetes e estatísticas que são supostamente para
capturar o estado de uma nação, neste caso, uma chamada França, cujo mal-estar
tornou-se objeto de fascinação. Tentei imaginar um corretor americano ou
britânico, confrontado com uma oportunidade potencialmente lucrativa, decidindo
começar a proposta com uma chamada sincera para não vender o imóvel, porque era
um lugar de algo importante, ou insubstituível. Eu ficaria sem reação. Não
poderia descrever isto. Não haveria circunstâncias em que o autointeresse, ou
pelo menos a obrigação profissional, não iria prevalecer. O preço seria
preeminente, juntamente com as condições de mercado e prazos. No entanto, neste
vilarejo francês, ao longo de uma mesa de cozinha de madeira, posicionada em um
chão de pedra, a definição de interesse econômico sobreposto à intuição
emocional parecia um afloramento natural do solo e do espaço.
Eu pensei neste ocorrido outro dia,
quando o primeiro-ministro francês, Manuel Valls, um socialista modernizador,
enfrentou um voto de confiança na Assembleia Nacional sobre mais um plano para
cortar gastos públicos, tornar o mercado de trabalho mais flexível, e romper
com o impasse francês de alto desemprego, um inchado setor estatal e auxílios
que podem ter o efeito perverso de tornar o trabalho na economia oficial uma
proposição não atraente. “O que importa, hoje, é a eficácia, e não ideologia”,
disse Valls.
Ele prevaleceu, apesar de 32 membros do
próprio partido se absterem em protesto contra um percebido ataque aos
princípios socialistas. Mais do que qualquer outro partido de centro-esquerda
na Europa, os socialistas franceses tiveram problemas para se libertar da
bagagem ideológica mal-adaptada à competição global do século 21. Mais do que
qualquer outro país ocidental, a França tem resistido à modernidade, pelo menos
na forma como pensa a si mesma. Assim, a minha sensação ouvindo Valls falar
sobre a “eficácia” poderia ser resumida em duas palavras: Boa sorte!
O primeiro-ministro é contra algo mais
profundo do que a resistência dos sindicatos trabalhistas ou do próprio
partido: uma cultura que vê a premiação de eficiência como algo quase vulgar.
Eficácia não tinha lugar na minha conversa com a corretora. A eficácia não surge
enquanto contemplo açougueiros franceses envolvendo frango com bacon ou
preparando um corte de carne com talhos ágeis. Eficácia não é a regra nos hábitos de compras franceses. Encontra-se em
um distante movimento tirado de longas conversas entre lojistas e clientes.
Eficiência para os franceses é uma medida pobre da boa vida, assim como fazer
um dinheirinho com a venda de uma casa empalidece diante da expressão do
sentimento sobre o que ela pode representar. Se isso é
bom ou ruim, pouco importa. Geralmente é ruim para a economia francesa. Também
é um fato da vida.
Esses
distintos componentes culturais das nações são provavelmente subestimados, como
globalização e homogeneização criam a impressão de que os mesmos padrões ou
sistemas podem ser perseguidos por toda parte. Eu costumava ser impaciente com tal pensamento. Os russos precisam de um
czar! Os egípcios, de um faraó! Os franceses precisam entrar em greve! Não, eu
iria pensar, os russos e os egípcios e os franceses são como todo mundo: eles
querem ser livres. Eles querem governança com o consentimento dos governados.
Eles não querem suas vidas submetidas a regras arbitrárias, ou viver menos bem
do que poderiam sem czares, e faraós e greves. Agora eu sinto que eu estava
errado sobre isso. A globalização iguala a adaptação às diferenças
intransponíveis, tanto quanto ela iguala a mudança. Algumas coisas não mudam, sendo a obra de séculos.
Alguns dias depois da minha reunião,
estava tomando uma cerveja com meus filhos em um café francês. A conta foi €
14. A garçonete estava indo passar um cartão de crédito, quando então viu que
eu tinha um nota de € 10.
— Apenas me dê isso — disse ela. —Não
se preocupe com o restante.
Roger Cohen é
colunista do “New York Times”
Fonte: O Globo
Fonte: O Globo
Nenhum comentário:
Postar um comentário