Fonte: A Ordem Natural
Esse trecho
foi retirado do livro A Vida Intelectual e pertence ao
capítulo VIII, que trata do Trabalho Criador. O livro é de
1920 e trata-se de uma aula de preparação para uma vida de estudos da
alta cultura. Mais que um manual, é também o testemunho de uma vida dedicada ao
conhecimento e à busca pela sabedoria. Com muita percepção, experiência e
didática, é um guia perfeito para quem se aventura
pelo tortuoso, mas prazeroso caminho do estudo
autodidata. Antonin-Gilbert Sertillanges, mais conhecido como A.D.
Sertillanges é um padre francês que nasceu em 1863 e morreu em 1948.
Discípulo de São Tomás de Aquino e, portanto, admirador também de Aristóteles.
Um gênio que deveria ser lido por todos.
***
Chegou o
momento de realizar. Não podemos passar a vida só a aprender e a preparar. Além
de que, aprender e preparar exige uma dose de preparação: para encontrar um
caminho é preciso enveredar por ele. A vida decorre em círculo. Órgão, que se
exerce, cresce e fortifica-se; órgão fortificado exerce-se mais vigorosamente. É preciso escrever ao longo da vida
intelectual. Escrevemos primeiramente para nós, para ver claro nos nossos
casos, para determinar melhor os pensamentos, para suster e avivar a atenção
que depressa esmorece se não for instigada pela ação, para estimular as
pesquisas necessárias para levar a cabo a produção, para reanimar o esforço que
se cansaria não vendo os resultados, enfim para formar o estilo e
adquirir um valor que completa todos os outros valores: a arte de escrever.
Escrevei e
publicai, desde que juízes competentes vos julguem capazes disso e desde que
vos sintais aptos para voar. O pássaro sabe muito bem quando há-de lançar-se no
espaço; melhor do que ele o sabe a mãe; apoiado em vós e numa prudente
maternidade espiritual, voai logo que puderdes. O contacto com o público obriga
o escritor a constante trabalho de aperfeiçoamento; os louvores merecidos
animam-no; as críticas fiscalizam-no; ser-lhe-á, por assim dizer, imposto o progresso,
em vez da estagnação que pode resultar do perpétuo silêncio. A paternidade
espiritual é sementeira de bens. Toda obra é manancial.
O P. Gratry
insiste muito na eficácia da escrita. Quer que se medite sempre com a pena na
mão e que a hora pura da madrugada seja consagrada a este contacto do espírito
consigo próprio. Devem tomar-se em consideração as disposições pessoais; mas é
certo que, para a maior parte, a pena, que corre, desempenha o papel do
treinador nos jogos desportivos. Falar,
é ouvir a alma e, nela a verdade; falar solitária e silenciosamente por meio de
escrita, é ouvir-se e sentir a verdade com a frescura de sensação dum homem
matinal que ausculta a natureza logo ao despontar do dia.
Em todas as
coisas, é preciso começar: “o
começo é mais que metade duma coisa” , disse Aristóteles. Quem não produz, habitua-se à
passividade; o medo de orgulho – porque o orgulho também gera o medo – ou a
timidez aumentam mais e mais; recuamos, cansamo-nos de esperar, tornamo-nos
improdutivos.
A arte de
escrever, dissemos, exige a longa e precoce aplicação que paulatinamente se
converte em hábito mental e constitui o que se chama o estilo. O meu “estilo”,
a minha “pena”, é o instrumento espiritual de que me sirvo para me dizer e
dizer a outrem o que ouso da verdade eterna; é qualidade do meu ser, vinco
interior, disposição do cérebro animado, sou eu envolvido de certo modo. “O
estilo é o homem”.
O estilo
forma-se, escrevendo; o mutismo diminui a personalidade. Se quereis ser alguém,
intelectualmente, precisais de saber pensar alto, pensar explicitamente, isto
é, formar, dentro e fora de vós, o vosso verbo. Chegou
a ocasião de dizer em breves palavras o que deve ser o estilo para corresponder
aos fins sugeridos aqui ao intelectual. Seria prudente não escrever, para ousar
dizer como se escreve. A humildade não oferece dificuldade, quando diante de
Pascal, La Fontaine, Bossuet, Montaigne, se sofreu a influência dum estilo
superior. Pelo menos ficamos conhecendo o ideal a que visamos e não alcançamos.
Podem-se explicar as qualidades do estilo em tantos artigos quantos se quiser;
tudo, porém, creio eu, se resume em três palavras, verdade, individualidade,
simplicidade, a não ser que se prefira sintetizar nesta única frase: escrever
verdade. O estilo é verdadeiro quando corresponde a uma necessidade do
pensamento e quando se mantém em contacto íntimo com as coisas. O discurso é
ato de vida: não deve representar um corte na vida. É o que sucede quando
caímos no artificial no convencional; Bergson diria no tout fait. Escrever por
um lado, e por outro viver vida espontânea e sincera, é ofender o verbo e a
harmoniosa unidade humana.
O “ discurso
de circunstância” é o tipo das coisas que se dizem porque é preciso
dizê-las, das coisas que só se pensam literariamente, gastando com elas aquela
eloqüência de que a verdadeira eloqüência zomba. Por isso o discurso de
circunstância muito freqüentemente não passa de discurso de ocasião. Pode
acontecer que seja genial, e temos exemplos de sobra em Demóstenes e Bossuet;
mas só o é, se a circunstância extrai do nosso íntimo o que de lá brotaria
igualmente por si, o que se prende com as opiniões pessoais, com o objeto das
meditações habituais.
A virtude da
palavra, falada ou escrita, é a abnegação e a retidão: abnegação que afasta a
personalidade, quando se trata de intercâmbio entre a verdade que fala dentro e
a alma que escuta: retidão que expõe sinceramente o que foi revelado na
inspiração e não lhe acrescenta palavras inúteis. “ Olha para o teu coração e
escreve” , diz Sidney. Quem assim escreve, sem orgulho nem artifício, como para
si só, fala, de fato, para a humanidade, se é que possui o talento de
pronunciar uma palavra verídica, na qual a humanidade se possa reconhecer como
sua inspiradora. A vida reconhece a vida. Se me contento com entregar ao
próximo um pedaço de papel impresso, talvez o próximo lance um olhar de
curiosidade, mas depressa se desfará dele; se, porém, sou árvore que oferece
folhas e frutos suculentos, se me dou com plenitude, então convencerei e, como
Péricles, deixarei o dardo cravado nas almas. Para obedecer às leis do
pensamento tenho de me mostrar perto das coisas ou, antes, no íntimo delas,
porque pensar é conceber o que é, e escrever verdade, ou por outra escrever de
acordo com o pensamento, é revelar o que é, e não enfiar frases. Por isso o
segredo de escrever consiste em colocar-se ardentemente diante das coisas, até
que elas vos falem e determinem os termos que as devem exprimir.
O discurso
deve corresponder à verdade da vida. O ouvinte é homem; logo o discursador não
deve ser sombra. O ouvinte mostra-nos uma alma que quer ser curada ou
iluminada: não lhe propineis só palavras. Enquanto desenrolais períodos, olhai
para fora e para dentro de vós e procurai sentir a correspondência entre a
vossa personalidade e a de quem vos escuta. A verdade do estilo afasta o molde.
Chamo molde a uma verdade antiga, a uma fórmula que passou para o uso comum, a
um lote de expressões outrora novas e que já o não são por terem perdido o
contacto com a realidade donde nasceram, por flutuarem no ar, vãos ouropéis que
tomam o lugar do autêntico ouro, o lugar de transcrição direta e imediata da
idéia. Como observa Paulo Valéry, o automatismo gasta as línguas. Para viver,
acrescenta o mesmo autor, temos de utilizar sempre a sintaxe “ em plena
consciência” , aplicando-nos a articular com vigilância todos os elementos,
evitando certos efeitos que espontaneamente se ingerem esperando a vez de se
fazerem valer. Semelhante pretensão é o motivo por que devemos apartar esses
parasitas, esses intrusos, esses maçadores. O estilo superior consiste em
descobrir os laços essenciais entre os elementos do pensamento, e na arte de os
exprimir com exclusão de qualquer balbucio acessório. “ Escrever como o orvalho
se deposita sobre a folha e as estalactites se suspendem do teto das grutas,
Como a carne deriva do sangue, como a fibra lenhosa se forma da seiva” (1): eis
o ideal. A pessoa orgulhosa e perturbadora estará ausente de semelhante
discurso; mas a personalidade da expressão só ganhará em nitidez e relevo. O
que sai de mim sem mim é necessariamente semelhante a mim. O meu estilo é o meu
rosto. O rosto tira da espécie os seus caracteres gerais, mas ostenta
individualidade empolgante e incomunicável; é único em toda a terra e em todos
os séculos; daí vem, em parte, o interesse do retrato. Ora o nosso espírito é
decerto muito mais original do que o rosto; mas ocultamo-lo por detrás das
generalidades adquiridas, das frases tradicionais, das alianças verbais que só
representam velhos hábitos em vez de representarem amor. Mostrá-lo tal qual é,
apoiando-nos nas aquisições que a todos pertencem, mas sem nos esquecermos de
nós, suscitará interesse inesgotável, será a arte.
O estilo,
que convém a um pensamento, é como o corpo que pertence à alma, como a planta
que provém da semente: tem arquitetura peculiar. Imitar é alienar o pensamento;
escrever sem caráter é declará-lo vago ou pueril. Nunca se deve escrever “à
maneira de...” , nem mesmo à maneira de si próprio. Para quê ter maneira? A
verdade não a tem afirma-se sempre nova. O som da verdade tem de ser pessoal a
cada um dos instrumentos. “ Os homens verdadeiramente superiores, escreve Júlio
Lachelier, foram todos originais, embora o não tivessem pretendido nem se
tivessem julgado tais; pelo contrário, procurando fazer das suas palavras e dos
seus atos a expressão adequada da razão, encontraram eles a forma particular de
a exprimir.” Todo o instrumento tem timbre. Se a maneira é afetação,
a originalidade verdadeira é fato de verdade que, em vez de enfraquecer,
reforça a impressão que o leitor, por seu turno, receberá. Não proscrevemos o
sentimento pessoal que tudo renova e glorifica, mas sim a vontade própria
contrária ao reino da verdade. Daí brota a simplicidade. Os floreados constituem
ofensa para o pensamento, a não ser que se empreguem como simples expediente
para encobrir o vácuo da mentalidade do escritor. No real não há floreados; só
há necessidades orgânicas. Não quer dizer que não haja na natureza nada de
brilhante; mas nela o brilhante é também orgânico, sustentado por substruções
que nunca falham.
Para a
natureza, a flor é tão grave como o fruto, e a folhagem tão grave como o ramo;
a árvore, que se firma na raiz, não faz mais do que manifestar o germe onde se
esconde a idéia da espécie. Ora, o estilo, quando é de mão de mestre, imita as
criações naturais. Uma frase, um trecho escrito devem ser como ramo vivo, como
os filamentos da raiz, como a árvore. Nada de mais, nada ao lado, tudo na curva
pura que vai do germe ao germe, do germe desabrochado no escritor ao germe que
deve desabrochar no leitor e propagar a verdade ou a bondade humana. O estilo
não é um fim; desvia-o e avilta-o o escritor que faz estilo só pelo estilo.
Amesquinha a verdade quem só se apega à “forma” , quem só é rimador em vez de
ser poeta, estilista em vez de escritor. Quem possuir o gênio do estilo, deve
levá-lo à perfeição, que é o direito de quanto existe. Todo escritor anseia ser
mestre no estilo, como o ferreiro é mestre na forja. Ora, qual o ferreiro que
se diverte em tornear volutas por prazer? O
estilo exclui a inutilidade; é economia no seio da riqueza; gasta o que é
preciso, poupa aqui, prodiga ali para a glória da verdade. O seu papel não é brilhar, mas
fazer aparecer: quando ele se apega, é que a sua glória reluz. “O belo corta o
supérfluo” , dizia Miguel Angelo, e Delacroix releva neste artista “ os
soberbos embutidos, as faces simples, os narizes sem minudências”. Mas nessa
simplicidade não deve passar despercebida a firmeza de contornos, como em
Miguel Angelo, em Leonardo e, sobretudo, em Velasquez, ao contrário do que
sucede v. g. em Van Dyck, o que é ainda uma lição. Uma vez que determinastes um
pensamento ou sentimento, expressai-o de sorte que todos vos compreendam, como
convém a um homem que fala a outros homens e procura atingir neles o que direta
ou indiretamente é órgão de verdade. “Um estilo completo é o que alcança todas
as almas e todas as faculdades das almas” (1).
Não sejais
escravos da moda. Dai água de nascente, não drogas de farmácia. Muitos
escritores, hoje, criam sistemas: ora um sistema é algo do artificial e o
artificial ofende a beleza. Cultivai a arte da omissão, da eliminação; da
simplificação: eis o segredo da força, que os mestres não se cansam de repetir,
como S. João Evangelista não se fartava de incular: “Amai-vos uns aos outros”.
A lei e os profetas, em matéria de estilo, é a inocente nudez que revela o
esplendor das formas vivas: pensamento, realidade, criações e manifestações do
Verbo.
Infelizmente,
é rara a inocência do espírito; quando existe, alia-se por vezes à nulidade.
Por isso, só duas espécies de espíritos parecem predispostos para a
simplicidade: os de pequena envergadura e os gênios; os restantes são obrigados
a adquiri-la laboriosamente; incomoda-os a própria riqueza e não sabem
reduzir-se.
( 1)
Emerson. Autobiographie, Edit. Régis Michaud, pag. 640, Paris, Colin.
A Vida Intelectual - Antonin-Gilbert Sertillanges
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