"Para dominar, é preciso antes de tudo convencer, ou ao menos, persuadir. A melhor forma de convencimento possível, aquela que mostra a adesão total e incondicional 'daquele que se deixou convencer', ocorre quando este perde a sua própria identidade. Quando um indivíduo qualquer realmente acredita no que querem que ele acredite ou faz o que querem que ele faça, está concluído o processo de 'persuasão do outro' (manipulação da mente)[1]."
Raphael de la Trinité
A requintada técnica do domínio
Podemos
afirmar que, em certo sentido, Maquiavel consagrou a hipocrisia como valor
supremo no contexto das relações sociais. Em termos contemporâneos, lançou as
bases fundamentais do que se entende hoje por propaganda.
De fato,
o conceito moderno de propaganda se equipara a uma publicidade sem escrúpulos
morais — nesse sentido, “hipócrita”, ou seja, uma mensagem “induzida”. Nos dias
atuais, muito se fala em “propaganda enganosa ou abusiva”. Há cerca de cinco
séculos, Maquiavel colocou em pauta, no circuito das nações europeias, esse
novo modo de divulgação feita com fins escusos.
Muito
tempo mais tarde, no período anterior à Revolução Francesa, outro filósofo —
este decididamente ímpio —, conhecido pelo pseudônimo de Voltaire, recorreria a
este escandaloso estratagema, apto a ludibriar as pessoas: “Menti, menti;
alguma coisa sempre ficará”.
Tempos
depois, em pleno século XX, outra personagem-chave tentaria, por meios
diversos, chegar aos meios intentos. Refiro-me a Goebbels, que se consagrou
pela despudorada frase: “Uma mentira dita cem vezes se torna verdade”.
Voltando à filosofia maquiavélica, devemos
ressaltar que a mesma correspondeu a uma ruptura com o ideal da Idade Média.
Afirmando que a política deve abstrair da Moral, o pensador florentino insurgiu-se
contra o Decálogo e a concepção cristã de sociedade.
Maquiavel
introduziu, no âmbito das relações sociais, a crematística. Segundo Aristóteles e Santo Tomás de Aquino, crematística é a arte de enriquecer cada
vez mais, quando a riqueza material representa o fim do homem e já não um meio
para viver dignamente; enquanto a “economia” é a virtude da prudência aplicada
à manutenção materialmente decorosa da família ou do lar doméstico, em ordem ao
Fim último[2].
Daí se
depreende haver um abismo entre a concepção humanista-renascentista de moral e
a moral católica, como sempre foi entendida.
Jamais
compreenderemos o sentido mais profundo da revolução maquiavélica se não
tivermos em mente que todo o contexto europeu era favorável à eclosão e
expansão dessas ideias.
“Em meados do século XVI”, afirma a conhecida
historiadora Barbara Tuchman, “foi possível falar de uma revolução, um
movimento político internacional, decidido a derrubar a visão medieval do mundo
e a substituí-la por algo novo[3]”.
Sem
dúvida, o novo padrão humano que emergia estava muito bem representado por
soberanos inescrupulosos e artistas de conhecimentos e talentos enciclopédicos.
Com relação a estes últimos pontos, Leonardo da Vinci e Leo Baptista Alberti
seriam os protótipos, ou figuras emblemáticas. Muito bem equipados do ponto de
vista intelectual, representavam o gênero “l’uomo universale”. Noutras
palavras, alguém que sabia discursar e debater sobre todas as coisas conhecidas
no Universo.
Com base
nesses pressupostos, podemos afirmar que Maquiavel teria sido verdadeiramente
anticatólico militante? Em certo sentido, sim.
Introduzindo
na vida corrente das nações um novo ideal de moralidade (ou seja, uma visão
amoral das coisas), ele foi o precursor do homem cúpido, ganancioso, utilitário
e materialista de nossos dias. Aliás, não seria errôneo afirmar que a
mentalidade atual levou ao ápice praticamente todas as concepções desse genial
e corrupto modelo intérprete da Renascença neopagã, que foi Maquiavel.
O labioso
florentino encarava a sua vida como uma batalha espiritual contra a Igreja e a
difusão da “mensagem” católica. Apregoando que todas as religiões não passariam
de facetas diversas de uma mesma “campanha publicitária” fadada ao insucesso,
cuja influência iria desaparecendo ao longo dos séculos, predizia que o
Cristianismo seria extinto muito antes do fim do mundo. Acreditava que os
bárbaros do Leste europeu (entre os quais, os povos que faziam parte dos
Impérios turco e russo), aliados ao descaso e frouxidão dos próprios cristãos
ocidentais, poriam fim, em dado momento, ao mundo católico de perfil
tradicional. Nenhuma de suas descabeladas profecias se cumpriu...
Sem
dúvida, como o Ocidente, nos séculos XV e XVI, estava abandonando o
teocentrismo em favor do antropocentrismo — “O homem como medida de todas as
coisas” —, a doutrina maquiavélica encontrou ampla aceitação nos círculos
europeus da época.
Tratava-se
de um período histórico em que muitos Papas (sob a influência do ressurgimento
do antigo paganismo greco-romano) atuavam mais como soberanos temporais do que
como Vigários de Cristo. Inserem-se, nesse quadro, por exemplo, entre muitos
outros, Alexandre VI e Júlio II, talvez os mais tristemente célebres Pontífices
daquele tempo. Ambos denotavam prezar mais a pátria terrena do que a celestial,
isto é, entre César e Cristo, entre o êxito político-social e a virtude cristã,
preferiam aquele. Com efeito, a “virtù” humanista preconizava o ideal de um
homem olímpico, à semelhança dos antigos deuses do Olimpo grego, que, de acordo
com as consagradas fábulas, seria dotado de dons naturais perfeitos
(principalmente de ordem intelectual) e deslumbrante perfeição anatômica. Tais
meios seriam instrumentos hábeis para o triunfo pessoal.
Para o
homem renascentista (que Maquiavel, a partir daí, encarnaria por excelência),
importava, sobretudo, alcançar máxima “fortuna” (boa sorte, felicidade completa) e “virtude” (plena força e poder material).
Como se torna fácil de ver, ambos os conceitos já estavam inteiramente
esvaziados de seu conteúdo cristão.
Ao passo
que, para o mundo medieval, ser afortunado equivalia a ter uma vida exemplar, a
qual, depois da morte, abriria os caminhos para a felicidade eterna, no
espírito de fruição e gozo (que caracterizavam o tipo moderno do humanista
renascentista), o termo fortuna passou
a significar êxito completo nos negócios temporais, sempre à margem de qualquer
consideração de ordem transcendente ou moral.
O mesmo
se pode afirmar no que diz respeito à nova ideia de virtude. Como sabemos, o significado etimológico da palavra é
“força”. Na Idade Média, era considerado virtuoso quem vencia os próprios
defeitos rumo à perfeição sobrenatural cristã, ou seja, à santidade de vida.
Já na
mente do homem renascentista — voluptuoso e interesseiro —, o mais importante
consistia em ter força (“virtù”) para realizar todos os planos de triunfo
mundano. Logo, nessa perspectiva, o êxito pessoal representaria tudo,
dispensando o resto.
Hoje
qualificamos de maquiavélico aquilo que é cheio de ardis, traiçoeiro e
tortuoso. Nada disso é falso. Contudo, muitas vezes esquecemos que Maquiavel
propõe a fórmula do êxito político, com abstração inteira da moral.
Por outro
lado, compete assinalar que, mesmo antes do advento do Cristianismo, uma
concepção de vida nos moldes do pensamento maquiavélico não encontraria
acolhida favorável na sociedade. A razão é muito simples: de modo geral, os
povos da Antiguidade consideravam que tudo era determinado pelo destino, pela
Necessidade. Para os antigos o Destino correspondia ao Logos — potência superior aos próprios deuses. É precisamente essa
força impessoal que, em sua obra decisiva — O
Príncipe —, Maquiavel designa como sendo a fortuna.
Ora,
segundo a concepção dos antigos (portanto muito anterior a Maquiavel), sendo
mais forte do que nós, a natureza nos supera. Por isso, em face desta,
cumpriria apenas assumir uma atitude de submissão e conformidade. Aqui se
insere, por exemplo, a impassibilidade dos estoicos em relação às adversidades
e desgostos da vida.
No
tocante ao Cristianismo, cabe fazer uma distinção. Segundo a visão católica do
universo, o mundo foi criado por Deus; e nada prevalece contra a vontade
divina, à qual devemos sujeição e obediência. Nesse sentido, o conceito de
Providência divina substitui o da Necessidade, que o mundo antigo tanto
prezava. Não obstante, cumpre ao homem lutar com todas as suas forças para secundar (mediante o concurso da graça)
a execução dos planos divinos.
O próprio
regime feudal, baseado em hierarquias e desigualdade de honras e funções,
também pode ser interpretado como uma longa perpetuação de uma ordem de coisas
desejada por Deus, embora as classes sociais estivessem longe de ser estanques.
Por exemplo, o monge Hildebrando, de origem camponesa, um dia viria a ser Papa
e santo: Gregório VII.
MAQUIAVEL, PRECURSOR DA MODERNIDADE
Entrando em cena
Maquiavel, a perspectiva filosófica passa a ser completamente nova; diversa até
a raiz. No entender do pensador florentino, pelo esforço da razão e força de
nossa vontade, conseguimos dominar aquilo que nos escraviza, para que tudo seja
utilizado em nosso proveito. Trata-se de tomar em mãos as forças da natureza,
dominando-as pela ciência. Por isso, o destino deve ser tido como um inimigo a
ser vencido. Resumindo, importa pensar em tudo e nada deixar ao acaso.
Em certo sentido, a
fortuna seria manhosa como a mulher, que, para se submeter às nossas ordens,
deve às vezes ser compelida ou até mesmo empurrada.
Dois elementos se
interpõem nesse caminho: em primeiro lugar, não conseguimos resistir às
propensões de nossa natureza. Em segundo, alguém que tenha sido bem sucedido
agindo habitualmente de uma determinada forma, jamais admitirá que deva proceder
de modo diferente. Provêm disso diferenças de fortuna: mudam-se os tempos, mas
não queremos modificar os nossos hábitos.
Maquiavel acrescenta,
como exemplo, o caso do Papa Júlio II. Conforme a sua análise, ao longo de todo
esse pontificado, Júlio II notabilizou-se por suas crises de furor e pela
impetuosidade de seu caráter. Caso vivesse noutras circunstâncias, que teriam
exigido outro estilo ou modo de ser, ele ficaria totalmente sem rumo, uma vez
que dificilmente alteraria o próprio caráter ou forma de conduta.
Para Maquiavel, de
fato, só possui valor algo que seja verdadeiramente útil ao homem.
Em suma, devemos
refletir e aperfeiçoar aquilo que somos
(ideal de homem renascentista), Corresponde ao oposto do ideal de perfeição
cristã, que nos incita a buscar aquilo
que devemos ser.
Desvencilhar-se do
imaginário ilusório (ou seja, afastar-se da ideia de que a ordem do mundo seja
algo desejado por Deus), eis o que permite que o homem faça uso dos meios
necessários para ser o artífice do próprio destino.
Convém, pois,
apresentar que Maquiavel propunha modelos ideais. Para ele, o príncipe moderno
por excelência, aquele que vive em perfeita consonância com a filosofia
(maquiavélica) da realidade era nada mais nada menos do que Cesar Borgia, filho
do Papa Alexandre VI, que o transformou em cardeal aos dezesseis anos.
Como sabemos, Cesar, duque de Gandia, era um
tirano cruel e famoso assassino. Graças à falsidade e dissimulação, conseguiu
ocultar os seus astuciosos e desleais propósitos ostentando uma máscara de
virtude.
Segundo consta,
Lorenzo, o Magnífico, grande príncipe florentino, seria o soberano mais
representativo da doutrina e espírito de Maquiavel. O autor de O Príncipe, em suas elucubrações e
devaneios, via em Lorenzo um papel-chave como concretização de suas ideias.
Para Maquiavel, a
moralidade não passa de uma ilusão para ludibriar os ingênuos. Só o que conta é
a realidade efetiva de cada coisa, isto é, a sua utilidade e eficácia na luta
contra todos os obstáculos que se interpõem ao pleno sucesso pessoal.
Essa total
desvinculação entre os atos humanos e os princípios morais — o importante é que
o homem atinja o fim a que se propôs —, nisso é que reside a essência do
pensamento de Maquiavel. Dessa perspectiva olímpica-humanista, de nada servem
as normas do bem-agir, nem a imaginação temperante, e sim, determinado objetivo
proposto, o qual deve ser atingido, ainda que por meios capciosos e
fraudulentos.
Eis a essência da
modernidade: “os fins justificam os meios”.
A degradação da vida
política, no mundo inteiro, é um dos sinais mais visíveis de que Maquiavel, com
suas pregações, estava no âmago do espírito moderno.
De fato, o seu
ensinamento relativista teve enorme influência: todos os principais filósofos
políticos e sociais que viriam depois (Hobbes, Locke, Rousseau, Stuart Mill,
Kant, Hegel, Marx, Nietzsche, Dewey) começaram por saudar a nova bandeira
hasteada pelo florentino, abrindo assim caminho para a degringolada moral que
presenciamos hoje.
[1]
NAHRA, Cinara. A Megera e o Príncipe. Princípios – Revista de Filosofia,
periódico anual. Departamento de Filosofia, CCHLA (Centro de Ciências
Humanas, Letras e Artes da UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do
Norte), EDUFRN – Editora da UFRN. Ano 04, nº 05, 1997. p. 42).
[3] BARBARA W. TUCHMAN,
Bible and Sword, New York, New York University Press, 1956, p. 54.
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