A Leitora, de1892 - José Ferraz de Almeida Júnior |
Trabalhar
significa aprender e significa produzir: em ambos os sentidos, o trabalho
requer longa preparação, porque produzir é um resultado, e só aprende, em
matéria árdua e complexa, quem primeiro atravessou o simples e o fácil:
“devemos correr para o mar por meio dos regatos, e não de repente”, diz
S.Tomás. Ora, a leitura é o meio universal para aprender, e é a preparação
próxima ou remota para toda a produção.
Nunca
pensamos isoladamente: pensamos em sociedade, em colaboração imensa;
trabalhamos com os trabalhadores do passado e do presente. Graças à leitura,
pode comparar-se o mundo intelectual a uma sala de redação ou repartição de
negócios, onde cada qual encontra no vizinho a sugestão, o auxílio, a critica,
a informação, o ânimo de que carece. Portanto, saber ler e utilizar as leituras
são necessidade primordial que o homem de estudo não deve esquecer.
Primeira
regra: lede pouco. Em 1921, no jornal Le Temps, Paulo Souday que, pelo visto,
se queria vingar de mim nalguma coisa, agarrou-se a este preceito: "lede
pouco", e pretendeu descobrir nele laivos de ignorantismo. O leitor, se
leu o jornal, sabe o valor daquela crítica e, sem dúvida, Paulo Souday também o
sabia. Eu não aconselho a restringir parvamente a leitura: tudo quanto fica
dito protesta contra semelhante interpretação. Queremos formar um espírito
largo, praticar a ciência comparada, manter o horizonte aberto diante de nós, o
que não se consegue sem muita leitura. Mas muito e pouco só se opõem no mesmo
terreno. Aqui, é preciso muito absolutamente, porque a obra é vasta; mas pouco
em relação ao dilúvio de escritos de que a mais insignificante especialidade
sobrecarrega hoje bibliotecas e as almas.
Proscrevemos,
sim, a paixão de ler, a ânsia, a intoxicação por excesso de nutrição
espiritual, a preguiça disfarçada que prefere ao esforço a freqüentação fácil.
A "paixão" da leitura, de que tantos se prezam como de preciosa
qualidade intelectual, é tara, é paixão em tudo semelhante às demais paixões
que absorvem e perturbam a alma, retalhando-a de correntes confusas que lhe
esgotam as energias. Leia-se com inteligência, não com paixão. Vamos aos livros
como a dona de casa vai à praça, depois de cumpridas as ocupações quotidianas
de acordo com as leis da higiene e da boa administração. A dona de casa não vai
à praça com o mesmo intuito com que vai à noite ao cinema. O mesmo sucede com a
leitura: é questão, não de gozar e de se embriagar, mais de governar e
administrar bem a casa.
A leitura
desordenada não alimenta, entorpece o espírito, torna-o incapaz de reflexão e
concentração e, por conseguinte, de produção; exterioriza-o no seu interior, se
assim se pode dizer, e escraviza-o às imagens mentais, ao fluxo e refluxo das
ideias que ele se limita a contemplar na atitude de simples espectador. É embriaguez
que desafina a inteligência e permite seguir a passo os pensamentos alheios e
deixar-se levar por palavras, por comentários, por capítulos, Por tomos.
A série
de excitações assim provocadas arruina as energias, como a constante vibração
estraga o aço. Não esperemos trabalho verdadeiro de quem cansou os olhos e as
meninges a devorar livros; esse encontra-se, espiritualmente, em estado de
cefalalgia, ao passo que o trabalhador, senhor de si, lê com calma e suavidade somente o que quer reter, só retém o que
deve servir, organiza o cérebro e não o maltrata com indigestões absurdas.
Ide antes
dar um passeio, ler no livro imenso da natureza, respirar o ar fresco,
distrair-vos.
A. D. Sertillanges - Trecho de A Vida Intelectual
A. D. Sertillanges - Trecho de A Vida Intelectual
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