Fonte: SPES
[Jornal Sim Sim Não Não
nº. 168 e 169, Julho/Agosto
e Setembro/Outubro de 2009.]
Quando se
fala de transplante e doação de órgãos numa revista católica qualquer,
multiplicam-se as citações da Escritura ou dos Papas para ilustrar que um
católico deve ser favorável aos transplantes, que seriam uma manifestação de
caridade em relação ao próximo.
Quanto a
nós, gostaríamos de mostrar que, do ponto de vista moral, é impossível
responder à questão por um simples sim ou não, utilizando um princípio único (a
título de comparação, o enunciado do 5° mandamento é simples: “não matar”, mas
a compreensão é mais complicada quando se analisa o caso da legítima defesa, da
guerra e da pena de morte).
Para dividir
a análise dos problemas ligados aos transplantes e à doação de órgãos, o Papa
Pio XII distinguia:
•
autotransplante - doador e receptor são idênticos;
•
homotransplante - doador e receptor são da mesma espécie, e faz-se então a
subdivisão entre doador vivo ou doador morto;
• heterotransplante
- doador e receptor pertencentes a espécies diferentes;
Retomemos
rapidamente cada uma dessas três diferenças para mostrar os diversos princípios
morais relativos a cada caso.
1- O
autotransplante
Obviamente
relativo somente a tecidos, o autotransplante é regido pelo princípio de
totalidade.
O homem,
criatura de Deus, não é proprietário de seu próprio corpo. O corpo foi-lhe
confiado pelo Criador para ser usado para o bem. Sendo proprietário em usufruto
de seu corpo, o homem deve protegê-lo, conservá-lo e defendê-lo contra as
agressões exteriores.
Essa
administração correta pode levar a sacrificar uma parte do corpo para salvar o
todo. É o princípio de totalidade que Pio XII enunciava assim:
“[O princípio
de totalidade] afirma que a parte existe para o todo, e conseqüentemente o bem
da parte fica subordinado ao bem do conjunto; que o todo é determinante para a
parte e pode dispor dela de acordo com seu interesse. O princípio decorre da
essência das noções e das coisas e deve, por isso, ter valor absoluto (...). O
princípio de totalidade afirma apenas o seguinte: Onde se verifica a relação
entre todo e parte, na medida exata em que esta relação se verifica, a parte
fica subordinada ao todo, e este pode, em vista de seu próprio interesse,
dispor da parte” (Discurso no Congresso de Histopatologia, 14 de setembro de
1952).
O princípio de totalidade se aplica ao caso
de autotransplante na medida em que tecidos são retirados de um lugar do corpo
humano para curar um outro lugar ferido.
Alguns
exemplos: Lâminas de pele das costas para transplante em partes queimadas do
mesmo indivíduo, utilização de veias da perna para pontes coronárias, uso da
tíbia para reconstituição de uma cabeça de fêmur, etc.
2-
Homotransplante
No
autotransplante, o sacrifício de uma parte do corpo para benefício do todo se
justificava pelo princípio de totalidade que rege as relações de subordinação
das partes ao todo. No homotransplante, tal relação não existe, pois trata-se de
dois indivíduos distintos (o transplante é uma parte do doador e o todo
favorecido pelo transplante é o do receptor).
Deve-se
considerar aqui a questão do doador. A questão moral muda caso ele esteja vivo
ou esteja morto.
2a - Doador
vivo
Os homotransplantes
com doador vivo são em princípio moralmente lícitos, inferindo-se:
• das
considerações que Pio XII faz sobre a doação de sangue:
“Modelo de
toda caridade, [Jesus] é vosso modelo de modo particular. (...) Doar o próprio
sangue para a saúde de desconhecidos ou mesmo de ingratos que esquecerão ou
talvez nem procurem conhecer o nome e os traços do semblante de quem os salvou;
fazer dom de seu próprio vigor unicamente para comunicar ou dar a outros o
vigor que perderam; recuperar as próprias forças para recomeçar e renovar o
mesmo dom e o mesmo sacrifício: tal é a obra a que os senhores generosamente se
dedicaram.” (Discurso aos Doadores de Sangue, 9 de setembro de 1948).
• do decreto
do Santo Ofício sobre a cesariana:
“Quando a
bacia materna é de tal modo estreita que nem é possível recorrer ao parto
prematuro, é permitido recorrer ao aborto ou à cesariana no momento oportuno? À
primeira pergunta: não, conforme decreto de 14 de julho de 1895 relativo à
proibição do aborto. À segunda pergunta: nada impede a mulher de submeter-se à
operação cesariana em tempo oportuno” (Decreto do Santo Ofício, 4 de maio de
1898/D.S.3337).
Nesses dois
exemplos, um homem sacrifica uma parte de seu corpo (doando seu sangue) ou de
sua integridade corporal (submetendo-se à cesariana) para o bem do próximo
(respectivamente, quem recebe o sangue e a criança que vai nascer).
Permitidas
em virtude do princípio de caridade, os homotransplantes devem entretanto estar
inscritos em certos limites para serem moralmente lícitos, a saber, o respeito
à vida e à integridade funcional do doador. Dito de outra maneira: dispondo-se
a socorrer o receptor, o doador não pode voluntariamente ir contra a própria
vida ou a integridade de suas funções vitais.
Portanto,
são imorais as doações de órgãos vitais, simples ou duplos, necessários à vida
e à integridade funcional do doador (coração, fígado, pulmão).
2b - Doador
morto
Quando o
homotransplante é feito a partir de um doador morto, o caso é moralmente distinto.
Na verdade, como lembrava Pio XII a respeito da retirada de córnea de um
cadáver:
“Em relação
ao defunto de que se retira a córnea, não se faz atentado a nenhum dos bens ao
qual ele tenha direito, nem ao direito a seus bens:
• O cadáver
não é mais, no sentido próprio da palavra, um sujeito de direito; pois ele está
privado da personalidade que é quem pode ser sujeito de direito.
• A
extirpação não é tampouco a retirada de um bem, os órgãos visuais, na verdade,
(sua presença, sua integridade) não têm mais no cadáver o caráter de bens,
porque não lhe servem mais e não têm mais nenhuma relação a nenhum fim”
(Discurso aos Especialistas de Cirurgia de Olhos, 14 de maio de 1956).
Quer dizer
que não há nenhuma obrigação moral em relação ao cadáver de um homem? De modo
algum. Além do mais, o mesmo pontífice lembrava que as retiradas de órgão de um
cadáver poderiam tornar-se imorais a partir do momento em que o cadáver fosse
considerado como uma coisa ou um animal (id.), em que os direitos ou a
sensibilidade dos familiares do defunto fossem lesados ou em que fosse
negligenciada a oposição anteriormente formulada pelo interessado.
Na análise
que fazemos hoje, a questão é saber se o critério de morte cerebral é
suficiente para falar de cadáver, se a separação da alma e do corpo é devida à
destruição do cérebro ou à retirada de órgãos vitais em vista de transplante.
3-
Heterotransplante
A moralidade
do caso em que o doador é um animal e o receptor, um homem não decorre
obviamente nem do princípio de totalidade nem do princípio de caridade.
A moralidade
do princípio dos heterotransplantes se fundamenta no domínio sobre a natureza
que o homem recebeu do Criador.
Os
heterotransplantes se tornariam imorais se atentassem contra a identidade
psicológica ou genética do receptor.
Evitar as
simplificações
No início do
artigo evocamos a afirmação geral e confusa segundo a qual os dons de órgãos
deviam ser encorajados em nome da caridade. A breve descrição dos transplantes
que acabamos de fazer permite ao leitor perceber que o assunto é menos simples
do que parece e que uma resposta única para todos os casos é impossível.
Debrucemo-nos
agora sobre o caso específico dos transplantes de doador morto, concentrando
sobre o critério utilizado hoje em dia para declarar a morte cerebral de um
paciente.
4- Dados
médicos
Seguindo o
exemplo de Pio XII, comecemos por apresentar um resumo dos dados que a ciência
médica oferece sobre a questão do coma e da morte cerebral, e depois façamos
uma descrição dos diferentes critérios da morte e dos meios para
diagnosticá-la.
Para evitar
qualquer mal entendido, é necessário distinguir claramente o coma e a morte
encefálica (dados retirados de doctisimo.fr).
4a-O coma
O coma é a
abolição mais ou menos completa das funções da vida de relação (consciência,
mobilidade, sensibilidade) enquanto que as funções da vida vegetativa ficam
relativamente conservadas. O paciente, inconsciente, permanece deitado sem
mover-se e não sente nada.
O exame
neurológico completo (mobilidade, sensibilidade, reflexos, tônus, pupilas) e a
avaliação das funções vegetativas (respiração, pulso, tensão arterial,
temperatura) permite classificar o coma segundo a profundidade:
• coma estágio
1 - é o estágio de obnubilação. A possibilidade de comunicação com o doente
é reduzida: o paciente grunhe quando o médico lhe faz perguntas.
Os estímulos dolorosos provocam uma resposta correta: o paciente afasta mais ou
menos, segundo suas possibilidades, a mão do médico que o belisca. O
eletroencefalograma mostra um ritmo alfa lento com algumas ondas teta ou delta.
• coma estágio
2 - é o estágio do desaparecimento da capacidade de acordar. Não há
possibilidade de contato com o doente. A reação aos estímulos dolorosos está
sempre presente, mas de forma imperfeita. O eletroencefalograma mostra ondas
lentas difusas e atividade aos estímulos externos reduzida.
• coma estágio
3 - é o coma profundo. Não há mais nenhuma reação aos estímulos dolorosos.
As perturbações oculares e vegetativas aparecem, como respiração difícil. O
eletroencefalograma mostra ondas delta difusas sem reatividade aos estímulos
exteriores.
• coma estágio
4 - a vida só é mantida por meios artificiais. O eletroencefalograma
mostra um ritmo mais ou menos lento. No pior dos casos a linha aparece
horizontal. É um elemento primordial para a supervisão de um coma prolongado.
4b - A morte
encefálica
A morte encefálica,
ou morte cerebral, designa a interrupção brutal, definitiva e irremediável de
todas as funções do cérebro. As funções dos neurônios são destruídas, pois o
cérebro não é mais irrigado. A respiração e os batimentos cardíacos podem ser
mantidos artificialmente através de técnicas de reanimação.
A morte
encefálica não deve ser confundida com um estado de coma, no qual o sangue
irriga e oxigena o cérebro.
Os testes
clínicos analisam os reflexos do tronco cerebral e a capacidade do paciente
respirar espontaneamente ou não. O médico deverá assim, pesquisar a ausência
total de consciência e de atividade motriz espontânea, a ausência de todos os
reflexos do tronco cerebral e a ausência de respiração espontânea.
Os médicos
devem constatar sem ambigüidade: a não contração das pupilas diante de luz
brilhante, ausência de piscar das pálpebras quando a córnea é tocada, ausência
de reação aos estímulos dolorosos, ausência de reflexo de tosse ou de náusea
como conseqüência de introdução de cateter na traquéia, etc.
Dois tipos
de exames complementares estão disponíveis:
• dois
eletroencefalogramas com 4 horas de intervalo. Com duração de 30 minutos cada
um, esses exames registram a atividade cerebral. Uma linha horizontal atesta a
destruição cerebral, depois que foi excluída qualquer hipótese de intoxicação
medicamentosa ou baixa de temperatura do corpo;
• uma
angiografia cerebral, que consiste em injetar contraste nos vasos, para mostrar
ausência de vascularização do cérebro, testemunhando assim o estado de morte
encefálica.
Critérios de
constatação da morte
A morte
encefálica coincide com a destruição das funções do cérebro. Ora, sabe-se que
as células nervosas não se regeneram. O tempo que passa não muda em nada essa
realidade clínica. Se encerrássemos por aqui a questão ou se nos perguntássemos
se esses pacientes devem ter a vida conservada através do uso de meios
extraordinários, a discussão seria fácil.
Mas o
problema atual está em outra esfera. Trata-se de saber se é possível definir a
morte como a cessação irreversível e definitiva das operações cerebrais. Dizer
que um paciente se encontra em estado de morte cerebral é o mesmo que dizer que
cessou a união entre a alma e o corpo? Podemos duvidar disso, apesar de haver,
por exemplo, uma obra de medicina destinada aos estudantes que se preparam para
o concurso de “Internato Médico” na França (correspondente aos anos de
“Residência” no Brasil) afirmando: “A autópsia para retirada de órgãos tendo
em vista os transplantes só pode se efetuar num paciente ao mesmo tempo
juridicamente morto e biologicamente vivo”.
Tentemos
examinar sucessivamente as diferentes explicações dadas para justificar que o
estado de morte cerebral se identifica à separação da alma e do corpo, antes de
analisar a questão à luz tomista.
Explicações
insuficientes
1- O papel
do cérebro como centro de comando das funções orgânicas
A primeira
explicação dada pelos médicos para identificar o critério da morte cerebral com
a morte do indivíduo se baseia na seguinte constatação: o cérebro tem um papel
particular de comando e organização das outras funções orgânicas, entre outras
a respiração e o movimento cardíaco.
O papel
indispensável do cérebro é confirmado pelo fato de que várias funções do corpo
humano podem ser substituídas por máquinas (pulmão de aço, por exemplo, ou a
hemodiálise para a função renal ou ainda o marca passo) o que é impossível no
caso do cérebro.
Não se pode
negar que o cérebro, centro da atividade neurológica, tenha um papel crucial na
coordenação das funções orgânicas e que sua destruição deixe a saúde do
paciente num estado de grande instabilidade e de grande perigo. Seria ainda
necessário, entretanto, averiguar se no caso de tais pacientes em estado de
morte encefálica a instabilidade provém unicamente da destruição do cérebro ou
se outros distúrbios no corpo o levaram à morte encefálica.
Considerando
que os pacientes em estado de morte cerebral têm apenas duas possibilidades, a
morte provocada pelo desligamento dos aparelhos que mantêm as funções vitais ou
a autópsia em vista do transplante de órgãos, a ciência médica especializada na
área ainda se encontra num estágio altamente limitado.
Por outro
lado, o uso de tais máquinas não explica por si mesmo a manutenção das funções
orgânicas. A respiração artificial permite ao pulmão inspirar e expirar
mecanicamente, mas a troca de oxigênio e carbono feita a nível celular não
depende da máquina para continuar. É um fenômeno espontâneo que não é
assegurado pela máquina e que o corpo mantém mesmo após a necrose do centro de
comando neurológico.
Enfim, o
fato de não existir ainda uma máquina capaz de suprir as funções do cérebro não
quer dizer que tal máquina não possa ser inventada algum dia. Há um século, o
respirador artificial e o marca-passo não passavam de ficção científica e são
hoje realidades.
2- O
cérebro, sede da consciência
Outras
explicações lembram ainda que o cérebro é a sede da consciência. Estando o
cérebro destruído, o paciente perde toda a possibilidade de ter ou de voltar a
ter a consciência de si mesmo ou do ambiente que o rodeia. Ao perder a
consciência o paciente deixaria definitivamente todo vínculo com seu caráter de
pessoa humana. É próprio da filosofia moderna definir a pessoa e a vida humana
a partir da consciência. “Penso, logo existo” escrevia Descartes. “Não
penso, logo não sou” afirmam os defensores do estado de morte cerebral.
Sem querer
entrar num debate sobre os erros subjetivistas, dos quais o cartesianismo é um
magno representante, perguntamos que conclusões devem ser tiradas das premissas
acima em relação aos embriões, nos quais o cérebro não está totalmente formado,
dos fetos anencéfalos ou dos doentes em estado vegetativo.
3 - A alma
está no cérebro?
Considerar
que a alma humana reside no cérebro é uma idéia que aparece freqüentemente
ligada à explicação precedente. Morrendo o cérebro, a alma desapareceria,
restando somente um conjunto de tecidos humanos que poderia ser utilizado em
favor dos vivos à espera de transplantes.
O que
distingue os seres inanimados dos seres vivos é a presença do princípio de vida
chamado alma (anima). Todo ser vivo tem uma alma, apesar das características
desta alma serem diferentes quando se trata de um vegetal, de um animal ou de
um homem.
Como a alma
humana anima o corpo em sua totalidade, ela está presente em todo o corpo
humano. As faculdades da alma são diversas e utilizam as diferentes partes do
corpo como instrumentos. Podemos considerar que o cérebro tem uma relação privilegiada
com o exercício da faculdade intelectual.
Entretanto,
não podemos deduzir o desaparecimento da faculdade espiritual, e muito menos o
da alma a partir da destruição do instrumento corporal. O pianista que não tem
mais seu piano (perda do instrumento) não perde, no entanto, a capacidade que
tem para tocar piano. Se tal exemplo vale para uma capacidade adquirida (saber
tocar piano), quanto mais será válida para uma qualidade natural (a
inteligência).
A
identificação do cérebro com a inteligência é, portanto, falsa e, a fortiori, também a identificação do cérebro com a alma. O cérebro é um órgão
corporal e não se confunde nem total nem parcialmente com a alma espiritual.
4 -
Distinção entre organismo humano e pessoa humana
Outros ainda
diagnosticam no paciente em estado de morte cerebral uma perda de “humanidade”.
O doente seria ainda um organismo humano, mas não mais uma pessoa humana, pois
o que faz dele uma pessoa humana é seu cérebro. Essa concepção do homem se
apóia numa dicotomia entre o corpo e alma como se eles fossem duas substâncias
acidentalmente ligadas uma à outra. Pela destruição de seu cérebro o homem
seria privado de sua personalidade humana mesmo se seu corpo continuasse
especificamente humano.
Ora, a união
entre o corpo e a alma é substancial.
O corpo é
humano porque está ligado a uma alma humana e está vivo porque a alma se
encontra nele de maneira atual.
Assim como
não se poderia falar de pessoa potencial tratando-se de um embrião, pois
pode-se alegar que ele ainda não fez nenhum ato de consciência pessoal, também
não poderíamos dissociar o corpo humano da pessoa humana quando certas funções
superiores (inteligência, consciência, etc.) não podem mais ser exercidas.
5 - O estado
de morte cerebral é irreversível
Finalmente,
alguns crêem ser suficiente apoiar-se no caráter irreversível do estado de
morte cerebral para poder proceder à retirada de órgãos em vista de um
transplante. Já que o processo de morte cerebral que se instalou é
irreversível, isso seria suficiente para dispor dos órgãos para transplante.
Baseado na experiência dos médicos e nas estatísticas, a irreversibilidade é um
prognóstico do resultado fatal da doença ou do estado do doente.
Essa
previsão, confirmada ou não, não nos diz nada sobre a permanência da alma num
corpo. Declarar o caráter irreversível de uma doença ou de um estado do
paciente é suficiente para declará-lo como morto?
Caroline
Aigle, que tinha um câncer (que deveria levá-la à morte) diagnosticado no
início de abril de 2007 com um prognóstico fatal a curto prazo, estava viva ou
morta quando deu à luz ao filho Gabriel em agosto de 2007? A resposta é
evidente.
A
irreversibilidade de um prognóstico fatal não nos diz nada sobre a união atual
da alma e do corpo.
Reflexões
tomistas sobre o ser vivo
Quando Santo
Tomás define a vida e, portanto, correlativamente, a morte, ele retoma a
definição (analógica) de Aristóteles: “Vita est motus ab intrinseco - A vida
é um movimento que vem do interior.”
O que
distingue os seres inanimados dos seres animados é que o princípio de seu
movimento vem do interior e não lhes é imposto do exterior. Quando uma pedra se
move, é porque ela foi movimentada por alguém ou por alguma coisa (força de
atração). Quanto ao ser vivo, ele tem em si mesmo a fonte de seu movimento (deslocamento,
nutrição, crescimento, reprodução).
Os
instrumentos que funcionam nas técnicas de reanimação não contradizem de modo
algum esse princípio. Na verdade; como vimos, esses instrumentos não explicam o
caráter espontâneo de certas operações fisiológicas (troca de gases no pulmão).
Por outro lado, ninguém negará a qualidade de vivo ao portador de um marca
passo ou de uma bomba de insulina, cujas atividades são sustentadas
artificialmente.
A afirmação
de Pio XII segundo a qual “a vida humana continua tanto tempo quanto suas
funções vitais - diferente da simples vida dos órgãos - se manifestem
espontaneamente ou mesmo com a ajuda de processos artificiais” é perfeitamente
justificada.
Passando da definição da vida à da alma,
que é seu princípio, e cuja separação do corpo assinala a morte, Santo Tomás
diz que “anima est actus primus corporis vitam habentis in potentia - a alma
é o primeiro ato de um corpo em potência para ter a vida”.
É pela alma
que o corpo existe e vive: ela é o seu ato primeiro. A esse ato primeiro,
segue-se toda uma série de atos segundos que serão as faculdades da alma e o
exercício dessas mesmas faculdades.
Para que a
alma informe (seja responsável pela forma, pela organização) o corpo e
constitua com ele uma unidade substancial, é necessário que exista certa
proporção entre a alma e o corpo. A matéria deve estar suficientemente disposta
para ser e permanecer informada (organizada) pela alma. A morte é precisamente
o momento quando o corpo fica de tal modo desorganizado que a alma não pode
mais informá-lo (ser responsável por sua forma, por sua organização) e
separa-se dele. Não se trata portanto de uma simples falta de capacidade para
exercer certas funções, mas de uma perda radical do princípio de animação.
A morte é a
separação da alma e do corpo. Essa separação não é objeto de nenhum
conhecimento direto, nem de nenhuma evidência. A morte se manifesta, então,
através de sinais exteriores que a ciência médica procura relatar de maneira
cada vez melhor à medida em que progride. Mas o momento preciso da morte será
sempre um mistério para o homem. Só nos fica a possibilidade de constatar a
morte uma vez que ela já tenha acontecido.
Enquanto os
sinais inequívocos da morte não forem conhecidos, a suposição fica com a vida:
“In dubio pro vita - na dúvida, [opta-se] pela vida”.
Que fazer
com os doentes?
Para
concluir, debrucemo-nos sobre os doentes, de quem não nos esquecemos por nenhum
instante ao longo dessa análise.
O que fazer
com os doentes em estado de morte cerebral?
Seguindo a
distinção clássica entre meios ordinários e meios extraordinários, ninguém é
obrigado a utilizar meios extraordinários para conservar a vida e a saúde. A
apreciação do caráter ordinário ou extraordinário dos meios pode variar segundo
as épocas, os países, as culturas e as pessoas. Mas se, numa situação dada, a
vida do paciente só pode ser conservada por meios extraordinários, é lícito
suspender o uso de tais meios.
Fazendo
isso, abandonando um tratamento desproporcional, o paciente, sua família ou o
pessoal médico não cometem nenhuma falta moral. Eles simplesmente deixam a
natureza, que chegou ao termo de sua carreira mortal, cumprir sua obra. “Tu
és pó e ao pó retomarás” (Gen. III, 19). Essa impotência diante da doença e
da morte traz à luz os limites da ciência médica, mesmo se esses limites têm
sido sempre obrigados a recuar.
O uso de
meios ordinários e o abandono de meios extraordinários situam o homem de bem e
o verdadeiro cristão sobre um cume de virtude entre dois erros opostos: o
homicídio ou o suicídio por omissão (quando os meios ordinários não são
utilizados) e a obsessão terapêutica (quando os meios extraordinários são
usados sem que haja esperança razoável de restabelecimento para o paciente). In medio
stat virtus.
O que fazer
com os doentes à espera de um transplante?
Quando o
transplante é moralmente lícito, é permitido recorrer a ele.
Quando o
transplante supõe um atentado grave à integridade funcional do doador, até mesmo
à sua vida, nada poderia legitimar moralmente o transplante.
Que os
pacientes para quem não existe nenhum tratamento moralmente lícito preparem-se
para a eternidade, seguros de terem feito o que é humanamente possível para
conservar o corpo que o Criador lhes deu em usufruto.
Que os
homens dedicados à arte de curar continuem buscando meios lícitos para salvar
os pacientes confiados a seus cuidados pelo divino Médico.
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