Padre Garrigou-Lagrange
Les Trois Âges de la Vie Interieur
Tradução: Rafael Horta
Fonte: A Grande Guerra
PECADOS DE IGNORÂNCIA
Com relação à vontade, a ignorância pode ser
antecedente, conseguinte ou concomitante. A ignorância
antecedente é aquela que não é de nenhuma forma voluntária e se chama
“moralmente invencível”. Por
exemplo: crendo atirar contra um leão, em uma espessa selva, um caçador mata um
homem, cuja presença não podia suspeitar. Neste caso não há pecado voluntário,
senão unicamente material.
A ignorância conseguinte é aquela que é voluntária, ao
menos indiretamente, pela negligência que existiu em inteirar-se do que podia e
deveria saber; se chama ignorância vencível, porque teria sido
possível livrar-se dela; assim é causa de pecado formal, indiretamente voluntário.
Por exemplo: um estudante de medicina, depois de vários anos de muito
vagabundar e estudar pouco, por influência ou casualidade recebe seu diploma de
doutor; como ignora quase tudo pertinente à arte da medicina, um dia acontece
que acelera a morte de um enfermo, em vez de curá-lo. Não há, neste caso,
pecado diretamente voluntário, porém indiretamente e que pode ser grave, já que
é possível chegar ao homicídio por imprudência ou grave negligencia.
A ignorância concomitante é aquela que não é voluntária,
porém de tal forma acompanha o pecado, que mesmo que se não existisse, se
pecaria do mesmo modo. É o caso, por exemplo, de um homem vingativo que deseja
matar seu inimigo, e um dia o mata sem saber, crendo ter matado uma cabra na
espessura do bosque; caso que manifestamente se difere dos dois anteriores.
Se segue daí que a ignorância involuntária ou
invencível não é pecado; mas a voluntária e vencível o é, e mais ou menos grave
segundo a gravidade das obrigações às que se falta. Tal ignorância não livra do
pecado, porque houve negligência; unicamente diminui a culpabilidade. A
ignorância involuntária ou invencível, em contrapartida, escusa totalmente do
pecado, suprime a culpabilidade.
A concomitante não livra do pecado, porque mesmo se
não existisse, se cometeria o mesmo pecado.
A ignorância invencível se designa com o nome
de “boa fé”; para que realmente se possa chamar invencível ou
involuntária, é preciso que moralmente não seja possível livrar-se dela. Não é
possível tal ignorância enquanto aos mais fundamentais preceitos da lei
natural: “se deve fazer o bem e evitar o mal”; “não faça aos outros o que não
quer que te façam”; “não matarás”; “não roubarás”; “adorarás a um só Deus”.
Mesmo que não seja pela ordem do mundo, pela vista do céu estrelado e o
conjunto da criação, a mente humana possui, ao menos, a probabilidade da
existência de Deus, ordenador e legislador supremo; e quando o homem chega a
essa probabilidade, está na obrigação estrita de ir mais adiante nessa
investigação; do contrário já não se mantém na boa fé verdadeira,
ou ignorância involuntária ou invencível. O mesmo se pode dizer de um
protestante que chega a convicção de que provavelmente o catolicismo é a
verdadeira religião; tem obrigação de informar-se com seriedade e pedir a luz a
Deus Nosso Senhor; do contrário, como disse Santo Afonso, comete pecado contra
a fé, ao negar-se empregar os meios necessários para chegar a ela.
Com frequência as pessoas piedosas não consideram
suficientemente os pecados de ignorância que muitas vezes cometem, por não
considerar, como poderiam e como seria sua obrigação, os deveres religiosos ou
os deveres de estado; ou também os direitos e qualidades dos demais;
superiores, iguais ou inferiores com quem tem que tratar. Porque somos
responsáveis, não somente dos atos desordenados que realizamos, mas também das
omissões do bem que poderíamos ter feito se tivéssemos verdadeiro zelo pela
glória de Deus e pela salvação das almas. Uma das causas dos males atuais da
sociedade está no esquecimento daquelas palavras do Evangelho: “Os pobres são
evangelizados”, e na indiferença dos que, possuindo coisas supérfluas, não se
preocupam com os que nada têm.
PECADOS DE DEBILIDADE
Chama-se pecado por debilidade ou fraqueza o que
provém de uma violenta paixão que arrasta a vontade ao consentimento. Assim se
diz no Salmo VI, 3: “Miserere mei, Domine, quaniam infirmus sum: Tende
piedade de mim, Senhor, porque sou fraco”. A alma espiritual é débil, com
efeito, quando sua vontade cede à violência dos movimentos da sensibilidade.
Perde assim a retidão do juízo prático e da eleição voluntária ou de eleição,
seja por medo, ira ou qualquer outra má inclinação. Pedro, durante a Paixão,
renegou cheio de medo, três vezes a Nosso Senhor.
Quando, por efeito de uma viva emoção ou paixão,
nos sentimos inclinados a um objeto qualquer, logo julga a inteligência que tal
objeto nos convém, e a vontade dá com facilidade seu consentimento, desprezando
a lei divina (1).
Mas temos que distinguir aqui a paixão chamada antecedente, que
precede o consentimento da vontade, e a conseguinte, que a
segue. A paixão antecedente diminui a culpabilidade, porque
diminui igualmente a liberdade do juízo e da livre eleição; isto se acha
especialmente nas pessoas muito impressionáveis. Pelo contrário, a
paixão conseguinte, ou voluntária, não diminui a gravidade do pecado,
antes a aumenta; ou melhor, é uma prova de que o pecado é
muito voluntário, posto que é a mesma vontade que suscita esse desordenado
movimento da paixão, como quando alguém se encoleriza para fazer ver sua má
vontade (2). De igual forma uma boa paixão conseguinte, como a Santa cólera de
Nosso Senhor, ao expulsar do Templo os vendedores, aumenta o
mérito, uma má paixão conseguinte aumenta o pecado.
O pecado da fraqueza é o da vontade que cede ao
impulso de uma paixão antecedente; sua gravidade diminui, porém isso não quer
dizer que nunca possa chegar a ser mortal. O é certamente quando a matéria é
grave e vai unida a um conhecimento e consentimento pleno; tal seria o caso do
homicida que comete o crime sob o impulso da ira (3).
É possível resistir, sobretudo no princípio, aos
movimentos desordenados das paixões; se se não lhe opõe essa resistência, nem
se reza como é devido, para obter o auxílio divino, a paixão já não é só antecedente,
mas se faz também voluntária.
O pecado de fraqueza, mesmo sendo mortal, é mais
digno de perdão que qualquer outro; porém “digno de perdão” de
nenhuma maneira quer dizer “venial” no sentido corrente desta
palavra (4).
Mesmo as pessoas piedosas devem ter muita atenção
neste assunto, porque podem produzir-se nelas movimentos de inveja não
reprimidos que poderia fazer cair em graves faltas; por exemplo, em juízos
temerários, palavras e atos externos que foram causa de graves divisões,
contrárias ao mesmo tempo à justiça e à caridade.
Seria grave erro pensar que só o pecado de malícia
pode chegar a ser mortal, porque só ele contaria com a suficiente advertência e
o pleno consentimento requeridos, junto com a matéria grave, para
constituir o pecado que dá morte a alma, fazendo-a merecedora da morte eterna.
Semelhante erro seria o resultado de uma profunda deformação da consciência, e
ainda contribuiria a aumentá-la. Recordemos
que no princípio é fácil resistir aos desordenados movimentos da paixão e que
devemos opor-lhes resistência e orar para fazê-lo assim, segundo as palavras de
Santo Agostinho recordadas pelo Concílio de Trento: “Deus nunca nos manda o
impossível, porém, ao impor-nos um preceito, nos ordena que façamos o que
podemos e que peçamos o que não podemos” (5).
PECADOS DE MALÍCIA
Diferente do pecado de ignorância e de fraqueza, o
de malícia é aquele que se escolhe o mal intencionalmente; os latinos
diziam “de indústria”, ou seja, com intenção, expressamente,
sem ignorância e mesmo sem paixão antecedente. Muitas vezes este pecado é
premeditado.
Isso não quer dizes que se queira o mal pelo mal;
porque o objeto da vontade é o bem e não pode querer o mal senão sob o aspecto
de um bem aparente.
Mas o que peca por malícia, com conhecimento de
causa e por má vontade, deseja intencionalmente um mal
espiritual (por exemplo, a perda da caridade ou da divina amizade) em troca de
um bem temporal. É claro que um pecado assim entendido difere, em gravidade, do
de ignorância e do de fraqueza ou debilidade.
Não se deve concluir daí que todo pecado de malícia
seja pecado contra o Espírito Santo. Este, que é um dos pecados mais graves de
malícia, tem lugar quando, por menosprezo se rechaça precisamente aquilo que
nos salvaria ou que nos livraria do mal; por exemplo; quando se combate a
verdade religiosa [objetivamente] conhecida (impugnatio Veritatis
agnitae), ou quando por inveja, deliberadamente, se entristece com as
graças e do adiantamento espiritual do próximo.
Frequentemente o pecado de malícia procede de algum
vício gerado por múltiplas faltas; mas também pode existir faltando este vício;
assim o primeiro pecado do Demônio foi um pecado de malícia, porém não
habitual, senão de malícia atual, de má vontade, de uma embriaguez de orgulho.
É evidente que o pecado de malícia é mais grave que
os de ignorância e de fraqueza, mesmo que estes sejam mortais. Por isso, mesmo
as leis humanas castigam com mais rigor o homicídio premeditado que o cometido
por paixão.
A principal gravidade dos pecados de malícia provém
de que não mais voluntários que os outros; de que geralmente procedem de um
vício gerado por faltas reiteradas, e de que, ao cometê-los, se antepõe um bem
temporal à divina amizade, sem a desculpa de ignorância ou de violenta paixão.
Nestas questões alguém pode se enganar de duas
maneiras distintas. Alguns se inclinariam a pensar que só o pecado
de malícia pode ser mortal; estes não compreendem bem a gravidade de certos
pecados de ignorância voluntária ou de que fraqueza, nos que, não obstante, existe
matéria grave, suficiente advertência e consentimento pleno.
Outros, pelo contrário, não compreendem
suficientemente a gravidade de certos pecados de malícia cometidos com toda a
frieza. Com afetada moderação e gesto de benevolência e tolerância, os que
assim combatem a verdadeira religião e tiram aos pequenos o pão da verdade
divina, podem pecar mais gravemente que o que blasfema e o que mata no ardor da
paixão.
A falta é tanto mais grave quanto é cometida com
mais vontade e mais conhecimento, e quando procede de mais desordenado amor de si
mesmo, que às vezes chega até o desprezo de Deus.
Pelo contrário, um ato virtuoso é mais ou menos
meritório segundo seja mais voluntário e livre e que seja inspirado pelo maior
amor de Deus e do próximo, amor que pode chegar até o santo desprezo de si
mesmo, como disse Santo Agostinho.
Assim acontece que o que ora com demasiado apego aos
consolos sensíveis, merece menos que quem persevera na oração sem esses
consolos, em contínua e profunda aridez; mas ao sair dessa prova, seu mérito
não desmerece se sua oração procede de uma caridade igual, que agora influi
felizmente em sua sensibilidade. Ademais,
um ato interior de puro amor tem mais valor aos olhos de Deus que uma multidão
de obras exteriores inspiradas em menor caridade fervorosa.
Em todas estas questões, quer se trate do bem quer
do mal, preciso é, sobretudo, atender ao elemento que radica em nossas
faculdades superiores: inteligência e vontade, ou seja, o ato de vontade
realizado com pleno conhecimento de causa. E desde este ponto de vista, assim
como um ato mal plenamente deliberado e consentido, como um pacto formal com o
Demônio, tem formidáveis consequências, do mesmo modo um ato bom, tal como a
oblação de si mesmo a Deus, realizada de maneira plenamente deliberada,
consentida e frequentemente renovada, pode ter ainda maiores consequências na
ordem do bem; porque o Espírito Santo é infinitamente mais poderoso que o
espírito do mal, e pode mais na ordem de nossa santificação, que aquele para
nossa perdição. É muito conveniente pensar nestas coisas diante da gravidade de
certos acontecimentos atuais. Como o amor de Jesus Cristo, ao morrer por nós na
Cruz, foi mais agradável a Deus que o tudo o que poderia desagradá-Lo todos os
pecados juntos, assim o Salvador é mais poderoso para salvar-nos, que o inimigo
do em para perder-nos. Neste sentido disse Jesus: “Não temais aquele
que matam o corpo, porém não podem matar a alma; antes, temei ao que pode
perder o corpo e a alma no inferno”. (Mt X, 28). O inimigo do bem
não pode, ao menos que nós o abramos as portas de nosso coração, penetrar no
intimo de nossas vontades, enquanto que Deus está dentro de nós mais
intimamente que nós mesmos, e pode levar-nos com força e suavidade aos mais
profundos e elevados atos livres, aqueles atos que são como uma “prévia” da
vida eterna.
Notas:
_________________________________________________________________
1 – Santo
Tomás, I, II, q. 58, a. 5; q. 57, a. 5, ad 3; q 77, a. 2.
2 – Santo
Tomás, I, II, q. 77, a. 6.
3 – I,
II, q. 77, a. 8.
4 –
Ibid., ad I.
5 – Conc.
Trid., ses. VI, cap. II (Denz., 804), ex Santo Agostinho, De Natura et gratia,
C. XLII, n° 50.
Nos
Corações de Jesus e de Maria!
Rafael
Horta
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