domingo, 12 de maio de 2013

Questões embaraçosas sobre os réprobos - Objeções à Fé



Nota do blog: Foram introduzidas 
algumas modificações no texto 
para melhor compreensão.




1-             POR QUE NÃO HÁ UMA SEGUNDA ‘OPORTUNIDADE’ PARA OS RÉPROBOS SE CONVERTEREM?


Como explicar a misericórdia de Deus, uma vez que Ele não concede mais uma chance para que os réprobos possam converter-se? Por exemplo, Deus não poderia postergar indefinidamente a morte do pecado, até o momento em que este afinal se converta?
Como se resolve esse aparente impasse?

A duração do Inferno não conhece fim. Longe de ser um fator arbitrário da parte de Deus, a duração incessante do Inferno se apresenta como decorrência lógica da ordem das coisas.

Com efeito, a fé e a razão ensinam que a alma humana, por sua natureza mesma, é imortal. Isto implica que, entrando a alma num estado de castigo após a separação do corpo, este estado será tão duradouro quanto o respectivo sujeito; será, pois, incessante, a menos que a alma mesma, ou o próprio Deus, acarretem mudança em tal situação. Todavia:


a) Por parte do réprobo exclui-se a possibilidade de mudança. A passagem da desgraça do Inferno para a bem-aventurança do Céu supõe que o condenado quisesse deixar de odiar a Deus para amá-Lo. Isto, porém, não se verifica, nem se pode verificar, em absoluto. A alma é dependente do corpo tanto no seu processo intelectivo como no volitivo. É o que faz que somente quando unida ao corpo neste mundo é que a alma possa mudar suas disposições e paixões. O réprobo, embora muito sofra, de modo nenhum quer, nem pode querer (por sua constituição psicológica natural), deixar a causa de seu mal-estar, que é a rebelião contra Deus. De certo modo compraz-se em viver em revolta contra o Soberano Senhor.

Deus, por sua parte, não intervém nesta obstinação, mas respeita-a, já que é a atitude livremente abraçada por uma criatura feita para ser livre. Não força a criatura a participar de uma vida (comunhão com Deus) que ela rejeita. Tal é a atenção que o Criador tributa à livre opção do homem; não o quer rebaixar, tratando-o como máquina ou como criancinha. Constranger a criatura livre seria, sim, propriamente um castigo infligido por Deus, seria ferir a maior dignidade do homem. Ademais, o réprobo não suportaria conviver na sociedade de Deus, não suportaria um colóquio com o Amor, que ele odeia.


b) Da parte de Deus, embora o perdão não seja dado a quem não o queira, poder-se-ia ao menos esperar que o Senhor aniquilasse o réprobo.

Sem dúvida, Deus poderia pôr termo à desgraça do condenado pelo aniquilamento. Todavia isto seria menos condizente com a Sabedoria divina. O Senhor criou o homem para ser, e ser sempresempre feliz).

A modalidade de ser feliz, Deus a entregou à livre opção do homem; este a pode frustrar. Contudo, o bem fundamental que é serexistir, Deus quis tomá-Lo aos Seus exclusivos cuidados; o Criador dá-nos os bens irrevogavelmente; não o retira, mesmo que o homem não cumpra a sua parte, abusando do dom do Benfeitor. O homem existirá sempre, como Deus planejou bondosamente, mesmo que, em conseqüência de uma livre opção sua,  não exista felizE esta existência imortal, ainda que vivida num estado de desgraça, não deixa de ser um bem; continua a representar um valor no conjunto das criaturas, não constitui um absurdo, a tal ponto que deva ser aniquilado. O réprobo, justamente por sua desventura, proclama que Deus é bom; a sua dor provém precisamente do fato de que ele reconhece em Deus a Perfeição Máxima; do seu modo, pois, ela afirma veementemente a grandeza e a Bondade do Criador. Por conseguinte, tem um significado positivo na perspectiva do universo.

É por isto que Deus conserva a existência do réprobo; embora destituída de sentido para o indivíduo, é muito expressiva no conjunto da criação; entra no coro de louvor que todas as criaturas, cada qual na sua modalidade, cantam a Deus; ao passo que os e justos reconhecem a Perfeição Divina e, percebendo-se familiares a ela, se sentem sumamente felizes, os réprobos reconhecem igualmente a Perfeição Divina, mas, percebendo-se incompatibilizados com ela, se sentem sumamente infelizes. Por uma disposição estupenda da Sabedoria, o Inferno representa o modo próprio das criaturas, mesmo rebelando-se contra Deus, realizarem, não obstante, o fim comum preestabelecido a todo ser: proclamar a glória do Criador.

O tempo de conversão, estabelecido por Deus, é o tempo em que cada qual permanece em seu corpo biológico. Esse é o tempo plenamente suficiente. E não existe uma extensão desse tempo, como reencarnação, porque morremos uma só vez, depois da morte vem o Juízo, como está escrito:

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“E, como aos homens está ordenado morrerem uma vez, vindo depois disso o juízo, (Hebreus 9 ,27)” “Porque teremos de comparecer diante do tribunal de Cristo. Ali cada um receberá o que mereceu, conforme o bem ou o mal que tiver feito enquanto estava no corpo. (II Coríntios 5,10)” 
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Mas o curioso é que o Livre Arbítrio perdura enquanto permanecemos na terra. Quando vivemos mais tempo, atua também durante mais tempo também como aliado da nossa salvação, como observamos na parábola do Senhor:

E dizia esta parábola: Certo homem tinha uma figueira plantada na sua vinha, e foi procurar nela fruto, não o achando; disse ao vinhateiro: Eis que há três anos venho procurar fruto nesta figueira, e não o acho. Corta-a; por que ocupa ainda a terra inutilmente? E, respondendo ele, disse-lhe: Senhor, deixa-a este ano, até que eu a escave e a esterque; e se der fruto, ficará e, se não der, depois a mandarás cortar. (Lucas 13,6-9) 

Entretanto, em alguns casos, tempo maior, pode significar perdição, como está escrito:

Com efeito, se aqueles que renunciaram às corrupções do mundo pelo conhecimento de Jesus Cristo nosso Senhor e Salvador, nelas se deixam de novo enredar e vencer, seu último estado torna-se pior do que o primeiro. (II Pedro 2,20) 

Deus quer que sejamos felizes livremente.

A felicidade, Deus a quer para nós, mas devemos escolhê-la; às vezes escolhemos a direção errada (quando rejeitamos Deus), ou seja, a felicidade depende de cada pessoa;

O ser não depende de nós, pois não somos nosso próprio princípio, e é por isso que Deus não vai aniquilar o réprobo.

Também podemos pensar assim: Deus quer que existamos. Se por causa de nossa escolha para o inferno, Deus "mudar" de vontade fazendo que com os réprobos não existam, Deus seria, de certa maneira, vencido por um ato volitivo nosso; isso é impossível.

Muitos se esquecem de que o Inferno tem sentido, não por visar à correção do homem, mas para a proclamação da Perfeição de Deus. Para que o homem moderno admita esta asserção, é preciso que se desembarace do modo de ver antropocêntrico que domina nossa mentalidade e se coloque num ângulo visual teocêntrico. O mundo não foi feito primariamente para promover a felicidade do homem, mas para afirmar a glória de Deus; este é o seu fim principal, que justifica plena e soberanamente a existência de qualquer criatura.

O Senhor, porém (e isto é importante) quis fazer com que a glorificação do Criador incluísse em si a felicidade do homem, caso este aceitasse livremente o plano de Deus. Contudo, mesmo quando não a aceita, o homem nunca deixaa de proclamar a glória de Deus, embora o faça num estado de rebeldia e infelicidade. De fato, a Santidade, o Amor, a Verdade e a Justiça são valores independentes da bem-aventurança particular do homem, embora sejam os constitutivos normais desta bem-aventurança, sempre prontos a promovê-la.

Se alguém em pecado mortal vier a morrer, para que se salve, é preciso que diga a Deus "perdão Senhor", em algum momento antes da sua morte, com arrependimento perfeito na alma (pesar profundo de ter ofendido a Deus por ser Deus quem é, ou seja, sumamente bom e amável e digno de ser amado sobre todas as coisas).

Às vezes, quando se prolonga a vida, as chances de o pecador empedernido se converter serão muito menores. Na verdade, quanto mais tempo ele viver no pecado, mais difícil será a sua conversão.

É preciso lembrar que o Cristianismo — ao contrário, por exemplo, do que afirma o espiritismo — no ensina: sem as boas obras ninguém se salva, mas, além de praticá-las, é necessário exercer o nosso livre arbítrio, isto é, escolhermos fazer tudo por amor a Deus.

Esta escolha, nós fazemos através das nossas obras, no dia a dia, mas também pode manifestar-se — embora seja raro — num arrependimento completo, a exemplo do "bom ladrão", que estava ao lado de Jesus na cruz.

A contrição do coração é a peça chave. Certa vez um bandido colocou uma arma engatilhada em minha cabeça, lembrei que não estava em estado de graça e, de maneira automática, disse:

- Nossa Senhora da Boa Morte, rogai por nós.

Isso pode ter sido um ato de contrição perfeita, não pelo ato em si (que é bem diferente dos exemplos de ato de contrição que os catecismos apresentam), mas por representar a contrição interna, aquela que parte do coração.

A contrição deve ter como objeto o arrependimento dos pecados, seja por amor a Deus (perfeita), seja por medo do Inferno ou outro motivo (imperfeita ou atrição). No caso de um arrependimento para poder receber a Eucaristia (uma vergonha do pecado), considero que tal contrição foi imperfeita e, dentro do sacramento da Penitência, ela já atende aos requisitos para o perdão. Todavia, se não houve detestação dos pecados cometidos, mas uma mera confissão dos pecados por causa da vontade comungar, a pessoa não está perdoada (falta um dos elementos essenciais do sacramento da Penitência); sendo assim, não pode comungar.

Contrição é uma dor interior e detestação do pecado que se cometeu, com o propósito de não mais pecar no futuro.

Por esta definição vemos que a contrição abrange dois elementos:

a) um sentimento da alma;

b) um ato de vontade.

O primeiro elemento diz respeito ao passado: considera o homem culpado, a sua falta; vê quanto contraria e injuria a bondade divina; vê quanto é feia e horrenda intrinsecamente; vê quantos castigos espantosos provoca. E fica profundamente aflito. Mas, vale notar, tal dor não tem de ser necessariamente externada por um padecimento sensível.

O segundo elemento diz respeito ao porvir. A coerência e a lógica mandam que tomemos resoluções para o futuro. Não detestaria seu pecado quem estivesse pronto a cometê-lo de novo (o que é diferente de dizer que, de um ponto de vista natural, saiba que, infelizmente, é provável volte a pecar no futuro).

Visto isso a respeito dos réprobos, alguém pode ainda perguntar: por que criou Deus tais indivíduos que Ele sabia haveriam de se condenar?

Deus quis criar seres mais dignos do que os irracionais; quis, portanto, que houvesse também criaturas inteligentes e livres, os mais fiéis reflexos da Perfeição Divina. Este ato magnânimo da bondade divina implicava naturalmente um grande “risco”: dar a liberdade de arbítrio a seres limitados era “sujeitar-se” a ver o livre arbítrio empregado com deficiência, isto é, para a prática do mal. De fato, é o que mais ocorre no decorrer da História... A rigor, Deus poderia impedir que esse risco existisse, não permitindo, por exemplo, que o “poder agir mal” se tornasse uma realidade.

Se o impedisse, porém, faria obra menos digna da bondade divina, já que estaria mutilando um dom outorgado. Com efeito, é harmonioso que cada uma das naturezas criadas, no Universo, atue e desdobre todas as suas potencialidades; por conseguinte, é conveniente que, no plano da natureza humana, onde há seres livres, capazes de optar ou pelo bem ou pelo mal, alguns, de fato, optem pelo bem, outros pelo mal. Dito em outras palavras: pertence à ordem normal das coisas que, ao lado dos santos, bons administradores dos dons de Deus, haja indivíduos deficientes, maus dispensadores do seu livre arbítrio.

E Deus, na obra da criação, quis fazer justamente o normal, não o anormal. Eis porque não criou unicamente indivíduos que se salvassem; teria como que mutilado a natureza humana considerada no conjunto de suas potencialidades. Mais uma vez: tudo isso só pode ser entendido numa perspectiva teocêntrica.




*** * ***




2- Os réprobos podem nos infernizar como os demônios?




Tanto Pe. Gabriele Amorth como o Pe. J.A. Fortea respondem pela afirmativa: sim, têm o poder de infestar.

O lugar de pena dos demônios até o dia do juízo é o ar (S. Th., I, q.64, a.4) , e sofrem em sua vontade (não nos sentidos, porque não podem sofrer dor sensível), por saberem que a prisão do inferno lhes é destinada (S. Th., I, q.64, a.4, ad.3). Por isso podem infernizar (exercer ação infernal), porque lhes cabe povoar o ar tenebroso, isto é, a atmosfera.

Santo Tomás dá a entender que, mesmo após o juízo, a dor dos demônios será uma dor da vontade, embora não menor do que a dor das almas condenadas.

"Como se vê, quando falamos do Além, sempre gaguejamos. Sabemos tão pouca coisa que o próprio Santo Tomás nos convida a levar em consideração a revelação privada dos santos. Tinha de formular essa premissa, embora com todas as questões que levanta, para valorizar ao máximo os dados da Revelação e as regras de comportamento que a Revelação nos sugere, sem nos espantar demasiado com o que não conhecemos."

(Padre Gabriele Amorth, Exorcistas e Psiquiatras, 2ª  edição, Editora Palavra e prece).

O anjo pode mover-se de um local para outro, embora não esteja, como o corpo, contido em um lugar, num espaço delimitado; é melhor dizer que o anjo que é que o contém, como a alma contém o corpo, e não o contrário (S. Th., I, q.52, a.1).

Uma alma do céu pode aparecer, sim, e Deus pode permitir que uma alma do inferno apareça. Contudo, para tomar a forma de um corpo, seria preciso que o ser tenha poder sobre a matéria (S. Th., I, q.51, a.2), e, nesse caso, só os anjos possuem.

A alma de Samuel apareceu a Saul, e outros santos também apareceram a pessoas vivas

O autor de Eclesiástico diz que foi Samuel quem apareceu naquela sessão de Saul com a necromante (Eclo 46,23).

No entanto, essa espécie de aparições, como a de Samuel, ou como de todas as pessoas que tiveram visões do inferno e das almas que lá estavam, não deveriam ser classificadas propriamente como uma visão, ao pé da letra.

Noutros termos, alguém pode ter uma visão de São Francisco de Assis, porque Deus sabe que tal visão teria um significado para mim... Ele poderia até me dizer algo, mas na verdade não seria a alma dele que teria saído do céu para vir até o nosso mundo conversar com essa pessoa. O sentido é outro: é que Deus concedeu, àquela pessoa, a graça de uma visão espiritual.

Já os anjos, estes sim, podem realmente vir até ao nosso mundo, como foi com Nossa Senhora e com Tobias, por exemplo.

Nossa Senhora não é anjo, e não há nenhum impedimento para que as próprias almas apareçam aos vivos. Mas há um impedimento para que uma alma possua um corpo, já que uma alma separada não é um anjo, e são os anjos que têm poder sobre a matéria, inclusive para tomar a forma de corpos.

Consta, num dos livros da série “Explicação histórica, dogmática, moral, litúrgica e canônica do catecismo”, do Abade Ambrosio Guillois — obra honrada com um Breve do Papa Pio IX —, que os mortos podem voltar do outro mundo e aparecer aos homens. Não há nada nisto, de acordo com o Abade Guillois, que exceda a onipotência de Deus ou repugne à sã razão (Tomo I, págs. 449-450).

Diz Bergier: “Deus pode, decerto, depois que a alma se separa do corpo, fazê-la aparecer de novo; restituir-lhe o mesmo corpo, que anteriormente era o seu, ou atribuir-lhe outro, e repor a pessoa em estado de exercer as mesmas funções que exercia antes da morte. Este meio de instruir os homens [...] é um dos mais admiráveis que Deus possa empregar” (Bergier, Diccion. de theologia, palavra Apparições).

A seguir, o Abade Guillois dá os seguintes exemplos: Moisés e Elias, no monte Tabor; Jeremias aparecendo a Judas Macabeu, acompanhado do santo pontífice Onias, e lhe dando uma espada de ouro; Samuel aparecendo diante de Saul, rei de Israel; e também alguns outros exemplos colhidos da obra de santos e Padres da Igreja.

Os exemplos do Velho Testamento, como Samuel, Jeremias, Onias e Moisés (com exceção de Elias, que se encontra provavelmente transladado para o paraíso terrestre), podem ser justificados pelo fato de que tais almas, até aquele instante, estavam no limbo.

A alma humana não tem nenhum poder sobre a matéria, porque a relação da alma com o corpo é de outra ordem; a alma é a forma do corpo. Se a alma se relacionasse com o corpo da mesma forma que o demônio, seria impossível a possessão (S. Th., I, q.52, a.3).

Não é verdade que a experiência esteja acima da razão. Isso seria empirismo, e leva aos erros do agnosticismo moderno.

As almas dos falecidos não estão na nossa atmosfera tenebrosa; estão no céu ou nos infernos. Os demônios povoam o ar tenebroso. Os santos que defenderam isso têm como base as Escrituras:

"Pois não é contra homens de carne e sangue que temos de lutar, mas contra os principados e potestades, contra os príncipes deste mundo tenebroso, contra as forças espirituais do mal (espalhadas) nos ares". (Ef 6,12)


Assim entenderam Santo Agostinho e Santo Tomás, conforme citação da Suma.

A parábola do rico e de Lázaro, por sua vez, ilustra a prisão que é o inferno, para as almas condenadas.

O ar tenebroso também é um lugar de pena para os demônios, como é o Inferno.

"O Senhor disse-lhe: De onde vens tu? Andei dando volta pelo mundo, disse Satanás, e passeando por ele". (Livro de Jó 1,7).

Parece que a alma separada não pode ter outra vida, a não ser a intelectiva, como mostra Manuel Correa de Barros:

"Já vimos que em todas as atividades da alma animal ou vegetativa intervém o corpo; todas elas devem portanto cessar na alma separada. Pelo contrário, a inteligência é independente da matéria, no seu ato supremo de conhecimento; correlativamente, como depois veremos, é também independente da matéria o ato livre da vontade. A atividade intelectual, nos seus aspectos cognitivo e afetivo, pode portanto exercer-se depois de separada a alma do corpo, e é a única que se pode assim exercer. A vida da alma depois da morte é vida da inteligência.

(...)

Lembram três modos possíveis, que, aliás, não se excluem. A alma, separada do corpo, pode ter o conhecimento intuitivo da sua própria natureza, que atualmente só conhece por reflexão sobre a sua atividade. Pode ser-lhe dado conhecer a essência doutras inteligências separadas, Anjos, ou outras almas como ela. Pode, finalmente, receber de Deus as ideias, infusas, como se diz na Escola" 
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E, como ele mesmo diz, cada alma se diferencia pela "relação essencial, para com certo e determinado corpo, que foi o seu"; o que nos faz entender que realmente a alma não pode possuir outro corpo.

A alma separada recebe as ideias infusas, mas tem dificuldade com esse modo de conhecimento, que é comum aos anjos. É como se ela estivesse engatinhando no mundo espiritual. Como comparar uma alma separada com um anjo?

O ar tenebroso é o nosso ar, e se chama assim, porque os demônios não ocupam todo o ar, mas parte dele, entendendo, é claro, a forma como um anjo ocupa lugar, que é segundo os moldes que já expliquei acima.

Deve-se levar em conta também que São Tomás acreditava numa cosmologia diferente da nossa. Para ele havia vários céus acima do ar atmosférico (S. Th., I, q.68, a.4). Essa ideia não é totalmente refutável, pois de fato a atmosfera se divide em camadas, e além dela há o espaço sideral.

O Aquinate menciona várias teorias: primeiro a de Crisóstomo, que vê em céus no plural, uma mera expressão idiomática hebraica, e a seguir as de Basílio e Damasceno, que opinam que há vários céus. Mas, segundo ele, essa diferença de opiniões é mais verbal do que real.

Aponta também que a palavra céu, na Escritura, tem várias acepções: corpo sublime, luminoso em ato ou em potência e livre de corrupções por natureza: céu empíreo, céu aquoso ou cristalino e céu sideral, dividido em oito esferas — a esfera das estrelas fixas e as esferas dos planetas. A seguir, de acordo com as várias acepções da palavra "céu", enuncia outras divisões, como a do Damasceno: céu aéreo (sublunar), céu sideral e o "terceiro céu".

E, porque este céu é composto de fogo e ar, menciona-se também a opinião de Rábano, que divide o fogo em duas regiões, ígneo e olimpo, e o ar em duas regiões, etéreo e aéreo. Assim, esses quatro céus, unidos a outros três, totalizam sete céus, segundo Rábano. Por último, fala-se em céu no sentido metafórico de graus de sublimidade e luz espiritual, e, assim, há três gêneros de visões sobrenaturais, a corporal, a imaginária e a intelectual.

O ar tenebroso é um lugar de pena para os demônios, segundo São Tomás, porque eles levam o Inferno dentro de si.

*** *** ***

Levanta-se, em conexão, com esta, outra questão pertinente.
Pode-se afirmar que a morte seria algo "antinatural" ao ser humano? (cf. S. Th., IaIIae, q.85, a.6.)

Em presença da Onipotência divina, não causa surpresa que seja desse modo, isto é, que haja morte. Contudo, a ideia parece repugnar à razão humana. Com efeito, sabemos que existe uma unidade profunda entre alma e corpo. Desfazer essa unidade equivale à morte.

Outras indagações: por que os réprobos ficam, por assim dizer presos ou acorrentados (não se sabe onde!), enquanto os demônios se acham soltos? É para submeter-nos à prova. S. Tomás responde isso no artigo da Suma referido acima.  Ele também diz que alguns estão no inferno, para atormentar as almas dos condenados. Nesse caso, há demônios no inferno e outros no ar, como há anjos que estão no céu e outros em companhia das almas santas.

Por acaso haveria algum "ar jubiloso" onde se localizam os anjos bons? Nossos anjos da guarda vivem em algum "ar feito de júbilo e bem-estar?”

A expressão "ar tenebroso" designa apenas uma classificação de nosso intelecto. Entretanto, nada impede que um demônio se desloque pelos ares. Os anjos podem se situar em meio ao espaço (claro, contendo o espaço e não sendo contido por ele, algo que é uma maneira distinta de como os corpos materiais se situam no espaço). Também pode haver neles movimento contínuo nesse espaço (isto é, deslocando-se de um ponto a outro, passando pelo meio), como pode haver movimento descontínuo (deslocando-se de um ponto a outro, sem passar pelos pontos intermediários) [cf. S. Th., I, q.53, a.2)]

Claro, esse modo de os anjos conterem o espaço é diferente do modo como a alma contém o corpo, pois não pode haver duas causas perfeitas e diretas de um mesmo efeito (dois anjos não podem conter um mesmo local, ou estar num mesmo local). Do contrário, não haveria possessão demoníaca (I, q.52, a.3, ad.3).

Na verdade, não se diz que o ar tenebroso seria o único lugar onde estão os demônios até o dia do juízo, e sim que há também demônios no inferno. Simplesmente afirmamos que há esses dois lugares de tormento para os demônios. Já, quanto aos anjos, tanto podem estar no céu, como podem ser enviados para proteger ou auxiliar os santos aqui na terra.

Alguém poderia objetar que não há razões para que os demônios estejam todos encerrados no inferno, posto que, em razão da dor dos demônios, não se faz necessário que estejam fisicamente num lugar material, ou numa condição que lhes impeça o movimento. A dor das almas no inferno parece consistir, segundo o Compendium theologiae, exatamente numa limitação do movimento.

Acontece que, ao tentar e instigar os homens, os demônios participam do plano da salvação. Assim, é preciso que não estejam limitados em seus movimentos. Caso os demônios estivessem limitados em seus movimentos, ou seja, encerrados no cárcere do inferno, tentariam os homens apenas por ordem divina, e isso não parece concebível (não estamos falando aqui na má inspiração que provocam, mas de uma ordem positiva para que o demônio saia do inferno). Ao contrário, algumas vezes tentam os homens por sua própria iniciativa.

A título de complementação, seria mais correto afirmar, baseado em Santo Tomás, que a dor dos demônios consiste precisamente numa limitação da vontade.

Esse tomar corpos, por parte dos anjos, seria análogo ao papel que executamos quando fazemos bonecos ou fantoches, pois um ser espiritual não informa um corpo como nossa alma espiritual, ou seja, não atua na matéria da mesma maneira que atuamos. Santo Tomás diz que os anjos podem tomar corpos, mas não podem dar-lhes vitalidade (I, q.51, a.3).

Recordemos a passagem referente ao primeiro Segredo de Fátima. Corresponde à visão do inferno, que tiveram os Três Pastorzinhos:

"Nossa Senhora mostrou-nos um grande mar de fogo que parecia estar debaixo da terra. Mergulhados em esse fogo os demónios e as almas, como se fossem brasas transparentes e negras, ou bronzeadas com forma humana, que flutuavam no incêndio levadas pelas chamas que d'elas mesmas saiam, juntamente com nuvens de fumo, caindo para todos os lados, semelhante ao cair das faulhas em os grandes incêndios sem peso nem equilíbrio, entre gritos e gemidos de dor e desespero que horrorizava e fazia estremecer de pavor. Os demónios distinguiam-se por formas horríveis e asquerosas de animais espantosos e desconhecidos, mas transparentes e negros".

Eles viam uma imagem, algo que lhes penetrava intelecto adentro.
Há também uma realidade de fé pouco contemplada pela catequese das revelações privadas: os réprobos sofrem penas diferentes. O próprio limbo, onde ficam as crianças sem batismo, não é outra coisa senão uma espécie de franja ou borda do inferno.

O II Concílio de Lião e o de Florença expressam a mesma fórmula, nestes termos: os que morrem com pecados pessoais, ou só com o original, descem imediatamente ao inferno, para serem castigados, se bem que com penas diferentes.

Inocêncio III diz que a pena para o pecado original é a perda da visão beatífica, e a pena para os pecados atuais é o suplício eterno.

Além disso, Pio VI condenou com diversas censuras a tese jansenista que entendia o limbo como um terceiro lugar, intermediário entre a bem-aventurança e a condenação (ao que os jansenistas chamavam de "fábula pelagiana").

Isso não significa que o limbo das crianças não seja compatível com um estado de felicidade natural. Pelo contrário, é inteiramente compatível com isso, de acordo com Santo Tomás. Ao contrário dos demais condenados, que sofrem diferentes graus de tristeza por causa da pena de dano, as almas das crianças que morrem com o pecado original (em razão de não terem recebido o batismo), não sofrem tristeza nenhuma.

Aliás, assim como a tristeza pela pena de dano pode dar-se em diversos graus, pode não haver tristeza pela pena de dano no caso das almas que estão no limbo.

Essa mesmíssima fórmula foi repetida em dois concílios e por um Papa, portanto, faria parte dos ensinamentos do  Magistério ordinário contínuo, sendo, pois, dogma, mesmo não havido proclamação solene.

A primeira referência está incluída na profissão de fé de Miguel Paleólogo, no II Concílio de Lião (D-464, DH 857), a segunda na Carta Nequaquam sine dolore, de João XXII aos armênios (D-493a, DH 926), e a terceira, no Decreto para os gregos, do Concílio de Florença (D-693, DH 1306).

João XXII é ainda mais enfático:

"Ensina a Igreja Romana que as almas daqueles que saem do mundo em pecado mortal ou só com o original, baixam imediatamente ao inferno, para serem, sem embargo, castigadas com penas distintas e em lugares distintos".

Da profissão de Miguel Paleólogo:

"As almas, pois, daqueles que morrem em pecado mortal ou com só o original, descem imediatamente ao inferno, para serem castigadas, todavia com penas desiguais. A mesma Sacrossanta Igreja Romana firmemente crê e firmemente afirma que, além disso, comparecerão todos os homens com seus corpos no dia do juízo ante o tribunal de Cristo para dar conta de seus próprios atos".

Da Bula Laetentur coeli (sobre a união com os gregos), do Concílio Florentino:

"Mas as almas daqueles que morrem em pecado mortal atual, ou com só o original, baixam imediatamente ao inferno, para serem castigadas, se bem que com penas diferentes".

Note-se que João XXII vai além, ao dizer: "com penas distintas e em lugares distintos".

Algumas edições antigas acrescentam ainda: "as almas das crianças sofrem de fato no limbo a pena da perda da felicidade eterna, não [a pena] dos sentidos ("nimirum puerorum animas poena damni, non sensus, in limbo afficiendas"). Esta, porém, é uma nota marginal inserida mais tarde no texto da bula, como aparece claramente na edição de F. Segurra.

Não podemos confundir o limbo com o lugar onde ficam os que cometem pecados pessoais. Ambos ficam em lugares distintos e com penas distintas. Mas o limbo não pode ser um lugar intermediário entre a bem-aventurança e a condenação, pois essa visão do limbo foi condenada no XV (XVI) Sínodo de Cartago:

"Cân. 3. Igualmente foi decidido: Quem afirmar que o Senhor disse: "Na casa de meu Pai há muitas moradas" [ Jo 14,2 ] no sentido de que no reino dos céus haverá algum lugar intermédio ou qualquer outro lugar onde possam viver felizes as crianças que deixaram esta vida sem o batismo, sem o qual não podem entrar no Reino dos céus que é a vida eterna, seja anátema. De fato, já que o Senhor diz: "Quem não renascer pela água e pelo Espírito Santo não entrará no reino dos céus" [ Jo 3,5 ], qual católico pode duvidar que será partícipe do diabo aquele que não mereceu ser co-herdeiro de Cristo? Pois quem faltar no lado direito, sem dúvida irá para o esquerdo".
 (DH 224).

Os teólogos modernos não questionam que quem morre com o pecado original fica excluído da visão beatífica. O que  dizem ― e que já era tese abraçada por alguns teólogos ― é que Deus tem meios de purificar a pessoa do pecado original no instante antes da morte. É de fé que, se alguém morrer com o pecado original, está excluído da visão beatífica.

É dogma que as pessoas que morrem em pecado original baixam ao inferno para serem castigadas, se bem que com penas diferentes dos que morrem com pecados pessoais. O limbo não é dogma, pela seguinte razão: é possível que ninguém morra com o pecado original. Os teólogos aventam a possibilidade de haver um outro meio extrassacramental de redimir o pecado original, um meio só conhecido por Deus



No limbo dos patriarcas — “os infernos”, segundo o Credo — havia dor?


Dor sensível não havia, sem dúvida, pois ali só havia a pena de dano. Se houvesse pena de sentido, o limbo dos patriarcas não se distinguiria do purgatório. Todavia, alguns teólogos pensam que a pena de dano pode ocasionar certa tristeza, não para as crianças que estão no limbo dos infantes, por exemplo, mas para os demais condenados e para quem está no purgatório. Mas o que diferencia uma tristeza ocasionada pela pena de dano da dor que sentem as almas na pena dos sentidos?

A alma não pode ser atormentada como é o corpo, e ambas são dores espirituais, mas se admite que a dor pela pena de dano seja uma dor esperançosa, ocasionada pela ausência de algo que se espera, ao passo que a dor pela pena dos sentidos é uma dor desesperada e ocasionada por um fator positivo que impede o movimento da alma e lhe causa sofrimento. Logicamente, que depois da ressurreição, a pena de sentido incidirá também sobre o corpo ressuscitado e incorruptível do condenado.

Além da pena de dano e da pena de sentido, há também a pena do remordimento da consciência, também chamada pena do verme da consciência, numa alusão metafórica (Mc 9,48). Essa pena consiste na dor moral que está intrinsecamente unida, tanto à pena de dano, quanto à de sentido. No entanto, há um modo distinto de expressar-se com relação a esse tema, pois, segundo alguns, a pena de dano consiste unicamente na privação da visão beatífica, e a dor que provém dessa privação faria parte da pena dos  sentidos.

Isso explica melhor de que forma as almas das crianças que estão no limbo não sofrem dor pela pena de dano. A pena de sentido estende-se para além do fogo material, pois a alma também pode ser atormentada pela companhia de outros condenados, e também pelos demônios.

Se a sorte dos que morrem com pecados mortais e com só o original é a mesma, distinguindo-se somente na pena que cada qual recebe, como se expressou o magistério da Igreja de sempre, isso significa que esse é o estado definitivo, tanto de um, quanto de outro. Com a morte, termina o estado de passagem, ou seja, o estado de merecer ou desmerecer. Ninguém pode ser redimido depois da morte, mesmo após a ressurreição. Os ressuscitados não retornam ao estado de trânsito da vida (passagem do tempo para a eternidade). A noção de pena não é inapropriada, se se entende como pena negativa ou privativa. O pai que castiga seu filho, privando-o de algo que lhe era devido, não deixa com isso de penalizá-lo, e a visão beatífica correspondia à natureza humana tal como foi criada em Adão. Agora, que as almas do limbo sejam ditosas, isto é, estejam em posse de seu fim natural, nada obsta ao que foi dito.

Existe um nível de comparação entre as almas do limbo das crianças e os demais condenados, e existe um nível de dessemelhança entre ambos. Negar, pura e simplesmente, tais particularidades seria afrontar textos dogmáticos.

Isso não impede a tradicional divisão dos infernos em inferno dos condenados, limbo das crianças, limbo dos de nossos antepassados (Antigo Testamento) e purgatório. Os dois últimos são lugares temporários, pois os que estavam ou estão nele, se acham unidos a Cristo pela fé e pela caridade, ao contrário das almas que morreram só com o pecado original (S. Th., III, q.52, a.7).

A noção de pena é inapropriada se não for muito bem entendida em seu devido contexto.

Nossa natureza, em Adão, tinha um plus, algo além. Em termos de felicidade natural, a felicidade do Limbo já sacia. Por isso, no estado do Limbo, que em si mesmo é uma pena, as almas que lá estão não o percebem como tal. E isto por um postulado da própria Justiça divina: não seria conveniente que um indivíduo, pessoalmente inocente, experimentasse o castigo devido a uma "carência" de sua natureza.

Uma vontade reta e ordenada só deseja o que lhe é possível ou o que está na linha de sua natureza; ora, como a visão beatífica é sobrenatural, excedendo o alcance das forças humanas, não é objeto de desejo por parte das almas do Limbo, as quais, por conseguinte, não se sentem frustradas por não gozarem dessa visão. Ao contrário, têm consciência de gozar de tudo que sua natureza possa desejar e se alegram pela sorte dos bem-aventurados.

A dar-se crédito a Santo Tomás, o Purgatório já existia antes da descida de Cristo aos infernos, porque discute se Cristo liberou de lá algumas almas (S. Th., III, q.52, a.8), e, de fato, liberou aquelas que estavam devidamente purificadas (ad.1).

Quanto ao limbo dos patriarcas, como saber se ocorre a pena do tormento ou de sentido? Santo Tomás dá a entender na objeção 1 (da mesma questão 52) que não se verifica. Ele diz:

"Mas não concedeu o benefício de liberação aos condenados, como acima se tem dito (a.6). Fora destes, não há ninguém que esteja sujeito às dores do castigo, senão os que se acham no purgatório".

A dor do verme da consciência (Mc 9,48) é a dor do remordimento da consciência, que sentem os condenados, isto é a consciência de que se está sendo castigado pelos pecados que cometeu. Isto é, segundo Santo Tomás, um arrependimento relativo, pois se arrepende de ter cometido tal pecado, não pelo mal em si, mas pelo castigo que dele se obteve.

Ao contrário da maioria dos teólogos, há alguns que não consideram que a vontade dos condenados seja mudada para pior, como castigo. Eles não odeiam seus parentes, não querem sua danação (Lc 16,27-31), e aqui não há motivo de forçar uma interpretação sem sentido como faz Reinaldo de Piperno no Suplemento da Suma Teológica (q.98, a.4, ad.1).

Deus também não odeia os condenados, a não ser no sentido de analogia, e pode-se dizer que Deus os ama, enquanto os mantém na existência (S. Th., I, q.20, a.2, ad.4). Os réprobos, segundo Santo Tomás, odeiam a Deus somente pelos efeitos, que são contrários à sua vontade (II-II, q.34, a.1).

Deus, quando faz cria algo para a existência, faz para amá-la, pois, ao contrário das criaturas, Deus não age movido por paixões sensíveis, nem nele se dá o amor eletivo como se dá nos anjos (I, q.60, a.2; cf. q.63, a.2).

Tampouco se pode dizer que Deus ama os réprobos só com amor de concupiscência, como ama os seres irracionais, no sentido de que os deseja, não para Si próprio, que não tem necessidade de nada, mas para a utilidade dos seres racionais (I, q.20, a.2, ad.3). Ele os ama também com amor de amizade, enquanto os quer subsistentes, e deseja para alguns um castigo menor do que para outros.

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